terça-feira, 15 de dezembro de 2020

2021, o Ano de São José – um presente para a Igreja

Por convocação do Papa Francisco e para a condigna celebração do sesquicentenário da declaração do Esposo de Maria como Padroeiro da Igreja Católica, ficará o ano de 2021 como o “Ano de São José”. Para tanto, o Pontífice fez publicar a Carta Apostólica “Patris corde(Com coração de Pai), do passado dia 8 de dezembro – em que pretende “deixar ‘a boca, como diz Jesus, falar da abundância do coração’ (Mt 12,34), para partilhar” connosco “algumas reflexões pessoais sobre esta figura extraordinária, tão próxima da condição humana de cada um de nós” –, o Decreto da Penitenciaria Apostólica, que anuncia o “Ano de São José”, desde 8 de dezembro de 2020 até 8 de dezembro de 2021, e a relativa à concessão do dom de Indulgências especiais.

Na verdade, pelo decreto Quemadmodum Deus, de 8 de dezembro de 1870, do Papa Beato Pio IX, foi atribuído a São José o título de “Padroeiro da Igreja Católica ou “Guardião da Igreja Universal”. E Francisco regista outras referências a São José da parte de outros Sumos Pontífices, designadamente: Leão XIII, que O relacionou com o mundo do trabalho; Venerável Pio XII, que O apresentou como “Padroeiro dos operários”; São Paulo VI, que anota que a sua paternidade se exprimiu “em ter feito da sua vida um serviço, um sacrifício, ao mistério da encarnação e à conexa missão redentora; em ter usado da autoridade legal sobre a Sagrada Família para lhe fazer dom total de si mesmo, da sua vida, do seu trabalho; em ter convertido a sua vocação humana ao amor doméstico na oblação sobre-humana de si mesmo, do seu coração e de todas as capacidades no amor colocado ao serviço do Messias nascido na sua casa”; e São João Paulo II, que O denominou de “Guardião do Redentor”. Recorda que o povo cristão O invoca como “Padroeiro da boa morte”.

Menciona São João Crisóstomo para dizer que a grandeza de José consistiu em ter-se colocado “inteiramente ao serviço do plano salvífico”; e o escritor Jan Dobraczyński, que narrou a vida de São José em forma de romance no livro “A Sombra do Pai”, expondo sugestivamente a figura de José como sendo, para Jesus, a sombra do Pai celeste na terra: guarda-O, protege-O, segue os seus passos sem nunca se afastar d’Ele

No quadro da paternidade de José, o Papa desenvolve os seguintes apelativos: pai amado, pai na ternura, pai na obediência, pai no acolhimento, pai com coragem criativa, pai trabalhador, pai na sombra. E, para desenvolver cada um destes itens, cita abundantemente os evangelistas Mateus e Lucas, o apóstolo Paulo, santos, sumos pontífices e um escritor leigo; releva as mensagens que José recebeu em sonhos; traça o percurso de José no acompanhamento de Maria, como esposo dedicado, e de Jesus, como verdadeiro pai, que “se faz”, como guardião e protetor, como educador pela ternura e pelo trabalho, como fiel cumpridor dos deveres humanos e religiosos, como homem totalmente fiel e obediente a Deus e facilitador na realização do mistério, sempre na discrição, sem a procura de qualquer sede de protagonismo, eficaz, mas silencioso.   

A Carta apostólica traz as marcas da pandemia de covid-19, que – escreve Francisco – “nos fez compreender a importância das pessoas comuns, as que, longe dos holofotes, exercitam quotidianamente a paciência e infundem a esperança, semeando corresponsabilidade”, como José, “o homem que passa desapercebido, o homem da presença quotidiana discreta e escondida”. E, no entanto, o seu é “um protagonismo sem paralelo na história da salvação”. Com efeito, José expressou a sua paternidade ao ter convertido a sua vocação humana “na oblação sobre-humana de si mesmo ao serviço do Messias”. E, por isto, foi e é “sempre muito amado pelo povo cristão”. Nele, “Jesus viu a ternura de Deus”, que nos leva a “aceitar a nossa fraqueza”, através da qual se realiza a maior parte dos desígnios divinos. Na verdade, Deus “não nos condena, mas acolhe-nos, abraça-nos, ampara-nos e perdoa-nos”. José, pai na obediência a Deus junta o seu ‘Fiat’ ao ‘Fiat’ de Maria em prol da encarnação e redenção, salva Maria e Jesus e ensina seu Filho a “fazer a vontade do Pai”, cooperando com o “grande mistério da Redenção”. Como “pai no acolhimento”, “acolhe Maria sem colocar condições prévias”, gesto importante ainda hoje, como afirma Francisco, “neste mundo onde é patente a violência psicológica, verbal e física contra a mulher”. E o Esposo de Maria é aquele que, confiante no Senhor, acolhe na sua vida os acontecimentos que não compreende com um protagonismo “corajoso e forte”, que deriva “da fortaleza que nos vem do Espírito Santo”.

Através de São José, Deus repete-nos: “Não tenhais medo”, pois “a fé dá significado a todos os acontecimentos, felizes ou tristes”. E o acolhimento praticado pelo pai de Jesus “convida-nos a receber os outros, sem exclusões, tais como são”, com “predileção especial pelos mais frágeis”.

Por outro lado, a “Patris corde” evidencia “a coragem criativa” de José, que “sabe transformar um problema em oportunidade, antepondo sempre a sua confiança na Providência”. Enfrenta os “problemas concretos” da sua família, como fazem as outras famílias do mundo, em especial as migrantes. Como protetor de Jesus e de Maria, “não pode deixar de ser o Guardião da Igreja”, da sua virginal maternidade e do Corpo de Cristo: todo necessitado é “o Menino” que José continua a guardar e de quem se pode aprender a “amar a Igreja e os pobres”.

Honesto construtor (téktôn), não mero carpinteiro, o Esposo de Maria ensina-nos “o valor, a dignidade e a alegria” de “comer o pão fruto do próprio trabalho”. A propósito desta aceção do pai legal de Jesus, o Papa lança um apelo a favor do trabalho, que se tornou uma  “urgente questão social” até em países com certo nível de bem-estar. Com efeito, “é necessário”, escreve o Papa Bergoglio, “tomar renovada consciência do significado do trabalho que dignifica”, que se torna “participação na própria obra da salvação” e “oportunidade de realização” para si mesmos e para a própria família, “núcleo originário da sociedade”. Por isso, o Pontífice exorta a todos a que redescubram “o valor, a importância e a necessidade do trabalho”, para “dar origem a uma nova ‘normalidade’, em que ninguém seja excluído”. E, face ao agravamento do desemprego mercê da pandemia de covid-19, Francisco pede a todos que se empenhem para que se possa dizer: “Nenhum jovem, nenhuma pessoa, nenhuma família sem trabalho!”.

O Papa chama a atenção para algo importante: “Não se nasce pai, torna-se tal”. Na verdade, é preciso esforço para se cuidar “responsavelmente” dum filho assumindo a responsabilidade pela sua vida. E isto é muito importante, pois, atualmente, “muitas vezes os filhos parecem ser órfãos de pai” que seja capaz de “introduzir o filho na experiência da vida”, sem o prender “nem subjugar”, mas tornando-o “capaz de opções, de liberdade, de partir”. E, neste sentido, José recebeu o apelativo de “castíssimo”, o oposto a “detentor da posse”, pois “soube amar de modo extraordinariamente livre”, “soube descentralizar-se” para colocar no centro da sua vida Jesus e Maria. Assim, a sua felicidade está, não apenas no serviço, mas sobretudo no “dom de si mesmo”: nunca frustrado e sempre confiante. Permanece em silêncio, sem lamentações, mas realizando “gestos concretos de confiança”. É figura exemplar num mundo que “precisa de pais e rejeita os dominadores”, como rejeita quem confunde “autoridade com autoritarismo, serviço com servilismo, confronto com opressão, caridade com assistencialismo, força com destruição”.

É de registar que a nota 10 da “Patris corde” revela o seguinte hábito de Francisco:

Todos os dias, há mais de 40 anos, depois das Laudes, recito uma oração a São José tirada dum livro francês de devoções, do século XIX, da Congregação das Religiosas de Jesus e Maria, que expressa devoção, confiança e um certo desafio a São José: “Glorioso Patriarca São José, cujo poder consegue tornar possíveis as coisas impossíveis, vinde em minha ajuda nestes momentos de angústia e dificuldade. Tomai sob a vossa proteção as situações tão graves e difíceis que Vos confio, para que obtenham uma solução feliz. Meu amado Pai, toda a minha confiança está colocada em Vós. Que não se diga que eu Vos invoquei em vão e, dado que tudo podeis junto de Jesus e Maria, mostrai-me que a vossa bondade é tão grande como o vosso poder. Ámen.”.

É ainda de relevar, como vinca o Papa, que a missão específica dos Santos é sobretudo a de “interceder por nós diante de Deus, como fizeram Abraão e Moisés, como faz Jesus, ‘único mediador’ (1Tm 2,5), que junto de Deus Pai é o nosso ‘advogado’ (1 Jo 2,1), ‘vivo para sempre, a fim de interceder’ por nós (Heb 7,25; cf Rm 8,34).”. Assim, os Santos ajudam todos os fiéis “a tender à santidade e perfeição do próprio estado”, sendo a sua vida “uma prova concreta de que é possível viver o Evangelho”. Com efeito, à semelhança de Jesus que disse: ‘Aprendei de Mim, porque sou manso e humilde de coração’ (Mt 11,29), “os Santos são exemplos de vida que havemos de imitar”, como nos exorta Paulo ao rogar-nos que sejamos seus imitadores (cf 1Cor 4,16) e como nos diz São José “através do seu silêncio eloquente”.

E, estimulado pelo exemplo de tantos Santos e Santas, Santo Agostinho autodesafiava-se: “Então não poderás fazer o que estes e estas fizeram?”. E, chegando à conversão definitiva, exclamou: “Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei!.

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A este respeito, o sacerdote jesuíta Bruno Franguelli aponta ao Vatican News que Francisco deu um grande presente à Igreja com esta carta “cheia de afeto”, que “nasce do coração paternal” do Papa, que deseja, por ela, “chegar ao coração de todos os católicos, convidando cada um a conhecer melhor o pai adotivo do Senhor e a sua importância no plano salvífico de Deus”.

Reconhecendo que a Tradição Cristã sempre teve especial atenção ao “sim” de Maria, mas nem sempre teve a mesma consciência da importância do “sim” de José, o comentador frisa que “foi crucial a aceitação de José para que o plano da Salvação de Deus pudesse ser realizado”. A Escritura não escamoteia as dificuldades que José teve de enfrentar face ao anúncio da gravidez da futura esposa sem ter contacto com homem algum. O Evangelho dá a José o título de “justo” (Mt 1,19), termo raríssimo e concedido a pouquíssimas personagens na Sagrada Escritura. Com efeito, o termo equivale a “santo”, atributo reservado a Deus. Assim, fica patente “a integridade, os valores e a santidade de vida de José”, fiel observador dos mandamentos e preceitos da Torah. Por isso, na sua obediência a Deus, escuta a voz do anjo e não teme aceitar Maria como esposa e assumir o Filho de Deus como seu próprio filho.

A vida de São José e de Maria não era fácil. Tiveram as dificuldades mais diversas. Eram pobres. E José, um artesão, “ganhava pouco e, como muitos pais de família, viveu a angústia de não poder dar conforto e segurança aos seus”. E a tristeza exponenciou-se ao ver a esposa dar à luz na gruta de Belém, lugar paupérrimo, de frio e miséria. Após o nascimento de Jesus, obedeceu ao anjo e conduziu a família ao Egito para proteger o recém-nascido da perversidade de Herodes. E, nesta migração, é de imaginar o pobre José em busca dum emprego para oferecer o mínimo para a família em terra estrangeira. E o Papa lembra na Patris Corde tantos pais que não conseguem oferecer nem mesmo o básico aos filhos.

José retorna a Nazaré e lá é um “pai presente”: ensina o menino a trabalhar, a entender a dura realidade da vida. E o Papa sublinha que “o facto de Jesus ser tão respeitoso com as mulheres, homem de oração e próximo aos mais sofredores, nos pode revelar tanto da figura do pai que teve, com quem aprendeu tudo isso”. Com efeito, Jesus não nasceu já pronto: a Escritura “revela que Jesus teve de aprender gradualmente”. No episódio do encontro de Jesus aos doze anos no Templo de Jerusalém revela-se-nos que “retornou a Nazaré e era obediente ao Pai e à Mãe” e que ele “crescia em estatura, sabedoria e graça diante de Deus e dos homens” (cf Lc 2,52). Assim, José, a partir da sua obediência a Deus e na escuta atenta de Deus, cria o filho, acolhendo e acompanhando. Era “um pai presente”.

O Papa sublinha a carência que temos de esposos e pais como José. Não compreendeu tudo, mas acolheu tudo. Não se impôs na vida do filho, mas acompanhou-o na escolha do seu próprio caminho. O pouco que sabemos de José é suficiente para reconhecermos a importância ímpar que teve na vida de Jesus e no plano da Salvação. E o Beato Pio IX, ao declarar São José patrono universal da Igreja, quis dizer que, assim como o guardião da família de Nazaré foi capaz de proteger o Filho de Deus, também está habilitado e disponível para proteger a Igreja que é extensão do Corpo Místico de Cristo.

Por fim, o comentador refere que a missão de José no escondimento e na missão oculta tem tanto a dizer aos homens de hoje e que o Papa faz menção de tantos homens e mulheres que, de maneira especial, durante a pandemia, arriscam as suas vidas para protegerem as pessoas vítimas desta enfermidade e cuidar delas. Assim, a Carta Apostólica Patris corde e o Ano de São José são um convite a cada um de nós para conhecermos e imitarmos o homem justo e santo, que, “mesmo sem compreender tudo, acolheu tudo”.

Prosit!

2020.12.15 – Louro de Carvalho


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