O rito
zairense é “até agora o único rito inculturado da Igreja latina aprovado após o
Concílio Vaticano II” e configura um “processo de inculturação litúrgica no
Congo” e “um convite a valorizar os diferentes dons do Espírito Santo, que são
uma riqueza para toda a humanidade”.
É este, em
síntese, o teor do sublinhado pelo Santo Padre no prefácio ao livro “O Papa Francisco
e o ‘Missal Romano para as dioceses do
Zaire’”, coordenado pela Irmã Rita Mboshu Kongo, das Filhas de Maria
Santíssima Corredentora e professora de Teologia espiritual e formação à vida
consagrada na Pontifícia Universidade Urbaniana, publicado pela LEV (Livraria
Editora Vaticana),
apresentado neste dia 2 de dezembro, cuja intenção é dar a conhecer em profundidade
os diferentes aspetos do “Missal Romano
para as dioceses do Zaire”, aprovado em 1988 pela Congregação para o Culto
Divino, e em que o Sumo Pontífice reflete sobre a inculturação da liturgia, a
qual deve tocar o coração dos/as que vivem na Igreja local. O texto, que chegará
às livrarias no dia 9 de dezembro, tem a contribuição da predita religiosa e as
de Maurizio Gronchi, Jean-Pierre Sieme Lasoul, Oliver Ndondo e Silvina Perez.
Esta publicação
ocorre no 1.º primeiro aniversário da Eucaristia celebrada pelo Papa em rito
zairense por ocasião do 25.º aniversário do nascimento da Capelania católica
congolesa em Roma e tem em anexo o Ritual desta Missa e algumas imagens da
celebração.
O volume tem
como subtítulo “Um rito promissor para
outras culturas”, pelo que, no dizer de Francisco, este rito é um “exemplo
de inculturação litúrgica”, numa referência à Exortação Apostólica Pós-Sinodal
de 2020 “Querida Amazónia”, onde se
fala explicitamente em “reunir na liturgia muitos elementos próprios da
experiência dos indígenas no seu íntimo contacto com a natureza e estimular
expressões nativas em canções, danças, ritos, gestos e símbolos”.
Na verdade, como
acentua o Papa, “o Concílio Vaticano II já tinha solicitado este esforço de
inculturação da liturgia nos povos indígenas, mas passaram-se mais de 50 anos e
fizemos poucos progressos nesta direção”, pelo que este rito sugere “um caminho
promissor” para “a eventual elaboração de um rito amazónico, enquanto são
percebidas as exigências culturais de uma determinada área do contexto
africano, sem perturbar a natureza do Missal Romano, como garantia de
continuidade com a tradição antiga e universal da Igreja”. Assim, Bergoglio
Papa espera que este trabalho “possa ajudar a caminhar nesta direção”.
O Pontífice sublinha
como na celebração, segundo o rito zairense, “vibra uma cultura e uma
espiritualidade animadas por canções religiosas no ritmo africano, com o som
dos tambores e de outros instrumentos musicais que constituem um verdadeiro
progresso no enraizamento da mensagem cristã na alma congolesa”. Trata-se de “uma
celebração jubilosa” e “um verdadeiro lugar de encontro com Jesus”, na linha da Evangelii
gaudium.
Sobre a
importância da inculturação, o Papa assinala que “todo o povo, depois de ter
feito a experiência pessoal do encontro transformador com Cristo, procura
invocar Deus, que Se revelou através de Jesus Cristo com as suas palavras, com
a sua linguagem religiosa, poética, metafórica, simbólica e narrativa”. E foi “nesta
dinâmica que a Conferência Episcopal do Congo forjou uma personalidade própria
querendo rezar a Deus, não por procuração ou com palavras emprestadas de
outros, mas assumindo toda a especificidade espiritual e sociocultural
do povo congolês, com as suas transformações”. E o livro frisa a necessidade
de ir a algo que toque “o mundo cultural das pessoas”, pois “a liturgia”,
segundo o Bispo de Roma, “deve tocar o coração dos membros da Igreja local e
ser sugestiva”. E, referindo-se à Exortação Apostólica sobre o anúncio do
Evangelho no mundo atual (Evangelii gaudium) – texto programático do Pontificado – o Papa recorda
que “o cristianismo não tem um modelo cultural único”, mas, “permanecendo
plenamente si mesmo, em total fidelidade ao anúncio do Evangelho e à tradição
eclesial, terá também o rosto das muitas culturas e povos em que é acolhido e
enraizado”. Assim, nos diversos povos que experienciam o dom de Deus segundo a
sua própria cultura “a Igreja”, vinca o Pontífice, “exprime a sua autêntica
catolicidade” mostrando “a beleza deste rosto multiforme”. E “o
Espírito Santo embeleza a Igreja mostrando-lhe novos aspetos da Revelação e
dando-lhe um rosto novo”.
Há um ano,
mais precisamente a 1 de dezembro, os católicos africanos tiveram um dia
histórico, já que, pela primeira vez, um papa celebrou missa na Basílica de São
Pedro seguindo o uso do zairense da forma comum do Rito Romano.
“Zaire” é o nome
dum importante rio africano e o antigo nome da República Democrática do Congo. E
o uso zairense do Rito Romano (denominado
informalmente de “rito zairense”) foi aprovado pelo Decreto Zairensium
Dioecesium, da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos
Sacramentos, em 1988, no
pontificado de São João Paulo II.
Assim, a
predita celebração foi presidida, como se disse, pelo Papa Francisco por
ocasião do aniversário de 25 anos da fundação da capelania católica da
comunidade congolesa de Roma, tudo em conformidade com o Missal autorizado para
as dioceses congolesas.
Esta missa nada tem de lamentável ou de
abusivo algumas “missas afro” celebradas por alguns padres no
Brasil, pois os cantos e movimentos rítmicos em nada ferem o espírito de
reverência e o recolhimento da tradição litúrgica católica. Até nos
momentos de alegria há sobriedade e
bom senso. O exercício de inculturação
é feito conforme as orientações estabelecidas por São Paulo VI. Nada de abusos litúrgicos, como: pessoas a
rodopiar ou danças coreografadas diante do altar; pessoas com trajes imodestos (mulheres
com ombros nus, por exemplo); homenagens a
figuras de caráter duvidoso (como Zumbi dos Palmares); apresentação de grupos de capoeira; sincretismo, com farto uso de
elementos que fazem referência aos Orixás (como o uso de colares de contas – “guias”) e exibição de gestos típicos dos terreiros de umbanda
e candomblé. Ao invés, os movimentos rítmicos usados pelos que incorporam a
procissão de entrada e o momento da apresentação das ofertas não são de dança vigorosa, mas de “movimentos
subtis”, conforme disse o cardeal Arinze na sua palestra explicativa.
Na verdade,
a dança, como entendida nos continentes europeu e americano, não é parte da
liturgia, ao passo que, na África e na Ásia, pode ser. Aliás, quem não recorda
as missas nos estádios africanos presididas por São João Paulo II e por Bento
XVI?
A Constituição
conciliar Sacrosanctum Concilium (SC) permite adaptações na liturgia que absorvam elementos da cultura de cada povo,
no quadro do processo de inculturação. Leiamos:
“Não é desejo da Igreja impor, nem mesmo na Liturgia,
a não ser quando está em causa a fé e o bem de toda a comunidade, uma forma
única e rígida, mas respeitar e procurar desenvolver as qualidades e dotes de
espírito das várias raças e povos. A Igreja considera com benevolência tudo o
que nos seus costumes não está indissoluvelmente ligado a superstições e erros;
e, quando é possível, mantém-no inalterável, por vezes chega a aceitá-lo na
Liturgia, se se harmoniza com o verdadeiro e autêntico espírito litúrgico. (…) Mantendo-se
substancialmente a unidade do rito romano, dê-se possibilidade às legítimas
diversidades e adaptações aos vários grupos étnicos, regiões e povos, sobretudo
nas Missões, de se afirmarem, até na revisão dos livros litúrgicos; tenha-se
isto oportunamente diante dos olhos ao estruturar os ritos e ao preparar as
rubricas.” (SC nn. 37.38).
Porém, São João Paulo II advertia
os Bispos do Regional Sul I, em 2003, dizendo:
“Não é possível descurar aqui a consideração da cultura afro-brasileira
(...). Trata-se da delicada questão de aculturação, especialmente nos ritos
litúrgicos, no vocabulário, nas expressões musicais e corporais típicas da cultura
afro-brasileira. (...) É evidente, porém, que se estaria distanciando da
finalidade específica da evangelização acentuar um destes elementos formadores
da cultura brasileira, isolá-lo deste processo interativo tão enriquecedor, de
modo quase a tornar-se necessária a criação de uma nova liturgia própria para
as pessoas de cor. Seria incompreensível
dar ao rito litúrgico uma apresentação externa e uma estruturação – nas vestes, na linguagem, no canto, nas cerimónias
e objetos litúrgicos – baseada
nos assim chamados cultos afro-brasileiros, sem a rigorosa aplicação de
um discernimento sério e profundo acerca da sua compatibilidade com a Verdade
revelada por Jesus Cristo.”.
Nenhum padre tem o direito de inventar nada na liturgia da Missa. A autoridade competente é a Congregação para o
Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. E o Bispo de cada diocese pode
agir como regulador, mas nos limites estabelecidos pela autoridade da Igreja,
não tendo o direito de autorizar qualquer inovação litúrgica que leve o povo ao
sincretismo.
E dizia
Bento XVI aos Bispos da CNBB, em 2010, aquando da Visita Ad Limina
Apostolorum:
“Vemos os elementos da cultura africana a ser colocados a serviço da
liturgia, e não usando a missa para fazer exaltação da cultura africana. Todos
estão reverentes, não há ninguém a rodopiar, não há ninguém a usar colares ou
indumentárias de crenças pagãs. Não
é uma missa afro, é uma missa de Rito Latino celebrada dignamente por
africanos.”.
Por outro
lado, o n.º 40 da SC estipula que, “como
em alguns lugares e circunstâncias é urgente fazer uma adaptação mais profunda”,
deve “a competente autoridade eclesiástica
territorial” considerar “com muita prudência e atenção o que, neste aspeto, das
tradições e génio de cada povo, poderá oportunamente ser aceite na Liturgia” e
propor “à Sé Apostólica as adaptações julgadas úteis ou necessárias”, podendo
ela “dar, se for necessário”, à autoridade eclesiástica territorial “a
faculdade de permitir e dirigir as experiências prévias que forem precisas em
alguns grupos que sejam aptos para isso e por um tempo determinado”; e, “como
as leis litúrgicas criam em geral dificuldades especiais quanto à adaptação,
sobretudo nas Missões, haja, para a sua elaboração, pessoas competentes na
matéria de que se trata”.
Ora, o rito zairense, aprovado pela Santa Sé, é
uma variante do rito romano. É usado há décadas na República Democrática do
Congo mostrando como se pode celebrar a Missa em profunda sintonia com a
sensibilidade cultural e religiosa típica das tradições africanas: canto, dança
ritual, oração, pregação dialogada, paramentos próprios e momentos de comunhão
com os antepassados e com a natureza – elementos que encontram a plenitude na
pessoa de Cristo e cujas especificidades estão em contacto direto com a
sensibilidade cultural daquele povo.
É um dos ritos litúrgicos latinos ou ocidentais,
utilizados pela Igreja Católica de Rito Latino, diferentes dos ritos orientais.
Os ritos litúrgicos latinos desenvolveram-se
numa zona da Europa ocidental e do norte da África onde o latim era
a língua da educação e da cultura, e distinguem-se dos utilizados pelas Igrejas
orientais, desenvolvidos na Europa oriental e no Médio Oriente (predomínio
da língua grega). Há vários
ritos latinos, como o romano (o mais utilizado), o ambrosiano (ou milanês), o bracarense, o galicano, o moçárabe,
o dos Cartuxos e o Uso Anglicano.
Antigamente
havia muitos outros ritos litúrgicos ocidentais latinos, que foram substituídos
pelo Rito Romano nas reformas litúrgicas dos concílios de Trento e do Vaticano
II. Atualmente, o rito litúrgico mais conhecido e utilizado na Igreja Católica
de Rito Latino e mesmo na Católico-Romana universal é o romano, com duas formas
reconhecidas: a Missa do Vaticano II, pelo Missal de São Paulo VI, que
é a forma ordinária, mais utilizada; e a Missa Tridentina, pelo Missal de
São Pio V, na edição de 1962, que é uma forma extraordinária. Para lá do rito
romano padronizado nestas formas, há várias variantes deste rito, destacando-se
o Uso Anglicano.
Possa e queira
o dicastério liderado por Sarah organizar o rito amazónico, tão necessário
hoje!
2020.12.02 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário