quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

O rito zairense, “caminho promissor” para um rito amazónico

 

O rito zairense é “até agora o único rito inculturado da Igreja latina aprovado após o Concílio Vaticano II” e configura um “processo de inculturação litúrgica no Congo” e “um convite a valorizar os diferentes dons do Espírito Santo, que são uma riqueza para toda a humanidade”.

É este, em síntese, o teor do sublinhado pelo Santo Padre no prefácio ao livro “O Papa Francisco e o ‘Missal Romano para as dioceses do Zaire’”, coordenado pela Irmã Rita Mboshu Kongo, das Filhas de Maria Santíssima Corredentora e professora de Teologia espiritual e formação à vida consagrada na Pontifícia Universidade Urbaniana, publicado pela LEV (Livraria Editora Vaticana), apresentado neste dia 2 de dezembro, cuja intenção é dar a conhecer em profundidade os diferentes aspetos do “Missal Romano para as dioceses do Zaire”, aprovado em 1988 pela Congregação para o Culto Divino, e em que o Sumo Pontífice reflete sobre a inculturação da liturgia, a qual deve tocar o coração dos/as que vivem na Igreja local. O texto, que chegará às livrarias no dia 9 de dezembro, tem a contribuição da predita religiosa e as de Maurizio Gronchi, Jean-Pierre Sieme Lasoul, Oliver Ndondo e Silvina Perez.

Esta publicação ocorre no 1.º primeiro aniversário da Eucaristia celebrada pelo Papa em rito zairense por ocasião do 25.º aniversário do nascimento da Capelania católica congolesa em Roma e tem em anexo o Ritual desta Missa e algumas imagens da celebração.

O volume tem como subtítulo “Um rito promissor para outras culturas”, pelo que, no dizer de Francisco, este rito é um “exemplo de inculturação litúrgica”, numa referência à Exortação Apostólica Pós-Sinodal de 2020 “Querida Amazónia”, onde se fala explicitamente em “reunir na liturgia muitos elementos próprios da experiência dos indígenas no seu íntimo contacto com a natureza e estimular expressões nativas em canções, danças, ritos, gestos e símbolos”.

Na verdade, como acentua o Papa, “o Concílio Vaticano II já tinha solicitado este esforço de inculturação da liturgia nos povos indígenas, mas passaram-se mais de 50 anos e fizemos poucos progressos nesta direção”, pelo que este rito sugere “um caminho promissor” para “a eventual elaboração de um rito amazónico, enquanto são percebidas as exigências culturais de uma determinada área do contexto africano, sem perturbar a natureza do Missal Romano, como garantia de continuidade com a tradição antiga e universal da Igreja”. Assim, Bergoglio Papa espera que este trabalho “possa ajudar a caminhar nesta direção”.

O Pontífice sublinha como na celebração, segundo o rito zairense, “vibra uma cultura e uma espiritualidade animadas por canções religiosas no ritmo africano, com o som dos tambores e de outros instrumentos musicais que constituem um verdadeiro progresso no enraizamento da mensagem cristã na alma congolesa”. Trata-se de “uma celebração jubilosa” e “um verdadeiro lugar de encontro com Jesus”, na linha da Evangelii gaudium.

Sobre a importância da inculturação, o Papa assinala que “todo o povo, depois de ter feito a experiência pessoal do encontro transformador com Cristo, procura invocar Deus, que Se revelou através de Jesus Cristo com as suas palavras, com a sua linguagem religiosa, poética, metafórica, simbólica e narrativa”. E foi “nesta dinâmica que a Conferência Episcopal do Congo forjou uma personalidade própria querendo rezar a Deus, não por procuração ou com palavras emprestadas de outros, mas assumindo toda a especificidade espiritual e sociocultural do povo congolês, com as suas transformações”. E o livro frisa a necessidade de ir a algo que toque “o mundo cultural das pessoas”, pois “a liturgia”, segundo o Bispo de Roma, “deve tocar o coração dos membros da Igreja local e ser sugestiva”. E, referindo-se à Exortação Apostólica sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual (Evangelii gaudium) – texto programático do Pontificado – o Papa recorda que “o cristianismo não tem um modelo cultural único”, mas, “permanecendo plenamente si mesmo, em total fidelidade ao anúncio do Evangelho e à tradição eclesial, terá também o rosto das muitas culturas e povos em que é acolhido e enraizado”. Assim, nos diversos povos que experienciam o dom de Deus segundo a sua própria cultura “a Igreja”, vinca o Pontífice, “exprime a sua autêntica catolicidade” mostrando “a beleza deste rosto multiforme”. E “o Espírito Santo embeleza a Igreja mostrando-lhe novos aspetos da Revelação e dando-lhe um rosto novo”.

Há um ano, mais precisamente a 1 de dezembro, os católicos africanos tiveram um dia histórico, já que, pela primeira vez, um papa celebrou missa na Basílica de São Pedro seguindo o uso do zairense da forma comum do Rito Romano.

“Zaire” é o nome dum importante rio africano e o antigo nome da República Democrática do Congo. E o uso zairense do Rito Romano (denominado informalmente de “rito zairense”) foi aprovado pelo Decreto Zairensium Dioecesium, da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, em 1988, no pontificado de São João Paulo II.

Assim, a predita celebração foi presidida, como se disse, pelo Papa Francisco por ocasião do aniversário de 25 anos da fundação da capelania católica da comunidade congolesa de Roma, tudo em conformidade com o Missal autorizado para as dioceses congolesas.

Esta missa nada tem de lamentável ou de abusivo algumas “missas afro” celebradas por alguns padres no Brasil, pois os cantos e movimentos rítmicos em nada ferem o espírito de reverência e o recolhimento da tradição litúrgica católica. Até nos momentos de alegria há sobriedade e bom senso. O exercício de inculturação é feito conforme as orientações estabelecidas por São Paulo VI. Nada de abusos litúrgicos, como: pessoas a rodopiar ou danças coreografadas diante do altar; pessoas com trajes imodestos (mulheres com ombros nus, por exemplo); homenagens a figuras de caráter duvidoso (como Zumbi dos Palmares); apresentação de grupos de capoeira; sincretismo, com farto uso de elementos que fazem referência aos Orixás (como o uso de colares de contas – “guias”) e exibição de gestos típicos dos terreiros de umbanda e candomblé. Ao invés, os movimentos rítmicos usados pelos que incorporam a procissão de entrada e o momento da apresentação das ofertas não são de dança vigorosa, mas de “movimentos subtis”, conforme disse o cardeal Arinze na sua palestra explicativa.

Na verdade, a dança, como entendida nos continentes europeu e americano, não é parte da liturgia, ao passo que, na África e na Ásia, pode ser. Aliás, quem não recorda as missas nos estádios africanos presididas por São João Paulo II e por Bento XVI?

A Constituição conciliar Sacrosanctum Concilium (SC) permite adaptações na liturgia que absorvam elementos da cultura de cada povo, no quadro do processo de inculturação. Leiamos:

“Não é desejo da Igreja impor, nem mesmo na Liturgia, a não ser quando está em causa a fé e o bem de toda a comunidade, uma forma única e rígida, mas respeitar e procurar desenvolver as qualidades e dotes de espírito das várias raças e povos. A Igreja considera com benevolência tudo o que nos seus costumes não está indissoluvelmente ligado a superstições e erros; e, quando é possível, mantém-no inalterável, por vezes chega a aceitá-lo na Liturgia, se se harmoniza com o verdadeiro e autêntico espírito litúrgico. (…) Mantendo-se substancialmente a unidade do rito romano, dê-se possibilidade às legítimas diversidades e adaptações aos vários grupos étnicos, regiões e povos, sobretudo nas Missões, de se afirmarem, até na revisão dos livros litúrgicos; tenha-se isto oportunamente diante dos olhos ao estruturar os ritos e ao preparar as rubricas.” (SC nn. 37.38).

Porém, São João Paulo II advertia os Bispos do Regional Sul I, em 2003, dizendo:

Não é possível descurar aqui a consideração da cultura afro-brasileira (...). Trata-se da delicada questão de aculturação, especialmente nos ritos litúrgicos, no vocabulário, nas expressões musicais e corporais típicas da cultura afro-brasileira. (...) É evidente, porém, que se estaria distanciando da finalidade específica da evangelização acentuar um destes elementos formadores da cultura brasileira, isolá-lo deste processo interativo tão enriquecedor, de modo quase a tornar-se necessária a criação de uma nova liturgia própria para as pessoas de cor. Seria incompreensível dar ao rito litúrgico uma apresentação externa e uma estruturaçãonas vestes, na linguagem, no canto, nas cerimónias e objetos litúrgicosbaseada nos assim chamados cultos afro-brasileiros, sem a rigorosa aplicação de um discernimento sério e profundo acerca da sua compatibilidade com a Verdade revelada por Jesus Cristo.”. 

Nenhum padre tem o direito de inventar nada na liturgia da Missa. A autoridade competente é a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. E o Bispo de cada diocese pode agir como regulador, mas nos limites estabelecidos pela autoridade da Igreja, não tendo o direito de autorizar qualquer inovação litúrgica que leve o povo ao sincretismo.

E dizia Bento XVI aos Bispos da CNBB, em 2010, aquando da Visita Ad Limina Apostolorum:

Vemos os elementos da cultura africana a ser colocados a serviço da liturgia, e não usando a missa para fazer exaltação da cultura africana. Todos estão reverentes, não há ninguém a rodopiar, não há ninguém a usar colares ou indumentárias de crenças pagãs. Não é uma missa afro, é uma missa de Rito Latino celebrada dignamente por africanos.”.

Por outro lado, o n.º 40 da SC estipula que, “como em alguns lugares e circunstâncias é urgente fazer uma adaptação mais profunda”, deve “a competente autoridade eclesiástica territorial” considerar “com muita prudência e atenção o que, neste aspeto, das tradições e génio de cada povo, poderá oportunamente ser aceite na Liturgia” e propor “à Sé Apostólica as adaptações julgadas úteis ou necessárias”, podendo ela “dar, se for necessário”, à autoridade eclesiástica territorial “a faculdade de permitir e dirigir as experiências prévias que forem precisas em alguns grupos que sejam aptos para isso e por um tempo determinado”; e, “como as leis litúrgicas criam em geral dificuldades especiais quanto à adaptação, sobretudo nas Missões, haja, para a sua elaboração, pessoas competentes na matéria de que se trata”.

Ora, o rito zairense, aprovado pela Santa Sé, é uma variante do rito romano. É usado há décadas na República Democrática do Congo mostrando como se pode celebrar a Missa em profunda sintonia com a sensibilidade cultural e religiosa típica das tradições africanas: canto, dança ritual, oração, pregação dialogada, paramentos próprios e momentos de comunhão com os antepassados e com a natureza – elementos que encontram a plenitude na pessoa de Cristo e cujas especificidades estão em contacto direto com a sensibilidade cultural daquele povo.

É um dos ritos litúrgicos latinos ou ocidentais, utilizados pela Igreja Católica de Rito Latino, diferentes dos ritos orientais. Os ritos litúrgicos latinos desenvolveram-se numa zona da Europa ocidental e do norte da África onde o latim era a língua da educação e da cultura, e distinguem-se dos utilizados pelas Igrejas orientais, desenvolvidos na Europa oriental e no Médio Oriente (predomínio da língua grega). Há vários ritos latinos, como o  romano (o mais utilizado), o ambrosiano (ou milanês), o  bracarense, o galicano, o moçárabe, o dos Cartuxos e o Uso Anglicano.

Antigamente havia muitos outros ritos litúrgicos ocidentais latinos, que foram substituídos pelo Rito Romano nas reformas litúrgicas dos concílios de Trento e do Vaticano II. Atualmente, o rito litúrgico mais conhecido e utilizado na Igreja Católica de Rito Latino e mesmo na Católico-Romana universal é o romano, com duas formas reconhecidas: a Missa do Vaticano II, pelo Missal de São Paulo VI, que é a forma ordinária, mais utilizada; e a Missa Tridentina, pelo Missal de São Pio V, na edição de 1962, que é uma forma extraordinária. Para lá do rito romano padronizado nestas formas, há várias variantes deste rito, destacando-se o Uso Anglicano.

Possa e queira o dicastério liderado por Sarah organizar o rito amazónico, tão necessário hoje!

2020.12.02 – Louro de Carvalho

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