terça-feira, 8 de dezembro de 2020

“Alegra-te, cheia de graça, o Senhor contigo”

 

É a tradução literal da saudação do anjo Gabriel a Maria “Khaîre, kekharitôménê, ho Kýrios metá soû(Lc 1,28), na perícopa do Evangelho (Lc 1,26-38) tomada para a celebração Eucarística da Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria – verdade cuja definição foi sugerida no Concílio de Basileia (1439) e que foi proclamada pelo Beato Pio IX a 8 de dezembro de 1854, através da bula Ineffabilis Deus.

Repare-se que o conceito bíblico de conceção abrange toda a existência, pelo que a imaculada conceição de Maria, não se cinge ao momento concecional, mas atinge toda a sua vida.

Depois, o mensageiro (ággelos) do Senhor exortou a que a inundada da graça divina não temesse, pois achou graça diante de Deus (khárin parà tôi Theôi), pelo que irá conceber e dar à luz um filho, a quem porá o nome de Jesus (o Salvador), porque Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo. E, quando o mensageiro disse, ante a sua pergunta “como será isso, pois não conhece varão (ándra), que será o Espírito Santo (Pneûma Hágion) quem induzirá a geração daquele que se chamará Filho de Deus (hyiòs Theoû), a Virgem exclamou: “idoù hê doúlê Kyríou; génoitó moi katà tò rhêm sou” – eis a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra (Lc 1,38).

Fica, assim, neste dia solene, a ressoar no coração dos crentes e no seio da comunidade eclesial o “fiat”, o “génoitó”, o “faça-se”, proferido por Maria replicando o “faça-se” criador do Génesis e anunciando a obra da nova criação, tarefa de Cristo, por Quem tudo foi feito (cf Jo 1,3; Cl 1,16).

A cheia de graça, mercê da “redenção precedente” operada por Cristo, contradiz e ultrapassa, com o seu “génoitó”, a ratoeira ardilosa em que a serpente fez cair a ‘curiosa’ mulher do Génesis, persuadida da sua autossuficiência e enredada nas malhas das solicitações da sedução.   

O contraste entre a postura de Maria e o de Eva percebe-se pela releitura da perícopa bíblica assumida como 1.ª leitura desta solenidade (Gn 3,9-15.20), que integra o relato javista de Gn 2,4b-3,24, texto do séc. X a.C., sobre a origem da vida e do pecado, que terá aparecido em Judá na época do rei Salomão. Não é uma reportagem de acontecimentos passados nos alvores da humanidade, mas uma catequese a vincar que na origem da vida e do homem está Deus, o Senhor, e que na origem do mal e do pecado estão as opções erradas do homem.

A reflexão sobre a origem da vida e do mal que desfeia o mundo está concebida num esquema tripartido, com duas situações opostas e uma realidade-charneira em torno da qual gravitam a primeira e a terceira. A primeira (cf Gn 2,4b-25) oferece-nos a criação do paraíso e do homem, em espaço de felicidade, onde tudo é bom e o homem, vive em comunhão total com o criador e com as outras criaturas (o homem e as demais criaturas são “obra muito boa” – Gn 1,31). A segunda (cf Gn 3,1-7) apresenta o pecado do homem e da mulher, mostrando como as opções erradas do homem introduziram fatores de desequilíbrio, destruição e morte na comunhão do homem com Deus e com o resto da criação. A terceira (cf Gn 3,8-24) mostra-nos o homem e a mulher confrontados com as consequências das suas opções erradas que atingem o homem e toda a criação.

Na ótica do javista, Deus criou o homem para a felicidade. Por isso, ele pergunta como surgiu o egoísmo e a violência que assombram o mundo. E a resposta é que o homem, que Deus criou livre e feliz, fez escolhas erradas e introduziu na criação boa dinamismos de sofrimento e morte.

A perícopa em referência pertence à terceira situação do predito esquema e as personagens intervenientes são Deus (que “passeia no jardim à brisa do dia” – v. 8a), Adão e Eva (que se esconderam de Deus por entre o arvoredo do jardim – v. 8b).

Antes de acusar, Deus – acusador e juiz – investiga os factos. Logo à primeira questão lançada por Deus ao homem, “onde estás?”, a resposta é de culpabilidade: escondeu-se por medo, pois desobedecera. Depois, à interrogação retórica se comera da “árvore da ciência do bem e do mal” (que significa o poder de decisão à margem ou á revelia do criador) –, o homem empurra a responsabilidade culposa para a mulher, que o tentou, e também para Deus, que lha deu por consorte. Quer dizer, o homem pecou, mas não reconheceu a culpa e rompeu com Deus e com o seu semelhante.

Por seu turno, a mulher alegou em sua defesa que foi enganada pela serpente. Ora, a serpente, que estava ligada aos rituais de fertilidade e de fecundidade entre os povos cananeus, cultos que fascinavam os israelitas, fica apresentada como símbolo de tudo o que afasta de Deus o homem. E a resposta da “mulher” confirma tudo o que até agora estava sugerido: a humanidade que Deus criou prescindiu de Deus, ignorou as suas propostas e enveredou por outros caminhos, achando que podia, no egoísmo e autossuficiência, encontrar a verdadeira vida à margem de Deus e prescindindo das suas propostas. Obviamente Deus condena os falsos e enganosos cultos e tentações que seduziam os israelitas e os puseram fora da esfera da Aliança e dos preceitos.

Esta narrativa desvenda todas as nossas inúteis estratégias de defesa fazendo-nos ver como nós nos escondemos de nós mesmos e de Deus, e como alijamos facilmente as nossas culpas sobre os outros, quando era justo e terapêutico assumirmos e confessarmos lhanamente a nossa culpa.

É usual entender-se que esta página expõe o facto da entrada do mal no coração do homem e no mundo, mas do que se trata é da importância da relação do homem com Deus, sendo que o mal entra no mundo quando o homem quebra esta relação e se desliga de Deus. Por isso, toda a Escritura se ocupa em mostrar que a resposta ao mal não é apenas o bem, mas o santo; não o homem fechado sobre si, autossuficiente e autorreferencial, mas totalmente aberto e voltado para Deus, de quem por amor tudo recebe e se recebe, e completamente voltado para os outros, a quem tudo entrega por amor, a exemplo de Maria. Na verdade, como dizia o Padre Porfírio Sá, quem não se encontra com os irmãos nunca se encontrará com Deus.

O catequista parte do facto de a serpente ser um miserável animal, que passa a vida a morder o pó da terra, para pintar a condenação radical de tudo o que leva o homem a afastar-se da rota de Deus. Assim, o hagiógrafo explica etiologicamente como a serpente inspira horror aos humanos e toda a gente lhe procura “esmagar a cabeça”, mas a interpretação judaica e cristã vê aqui uma profecia messiânica, um protoevangelho: Deus anuncia que um “filho da mulher” (o Messias) acabará com as consequências do pecado e reinserirá a humanidade na dinâmica da graça.

Não se trata de um pecado cometido nos primórdios da humanidade pelo primeiro homem e pela primeira mulher (Adão e Eva são designações simbólicas do ser humano no masculino e no feminino), mas da universal inclinação para o mal da parte de todos os homens e mulheres de todos os lugares e tempos. E o autor material do texto só quer ensinar que a raiz de todos os males está no facto de o homem prescindir de Deus e construir o mundo a partir do critério da sua autossuficiência.

Ora, a atitude de Maria é a da total disponibilidade para Deus. Na verdade, a superabundância da graça deve-a a Deus, mas o seu mérito está na disponibilidade de serviço à Palavra – ao invés de Adão e de Eva, que se fincaram na sua autossuficiência, no medo e no alijamento da culpa.

Ficaram estabelecidas inimizades entre a serpente e a mulher, entre a descendência de uma e da outra. E a cabeça da serpente será esmagada. E a pergunta é: “Quem lhe esmagará a cabeça”? A mulher ou a sua descendência? E o texto latino da Nova Vulgata esclarece:

Inimicitias ponam inter te et mulierem et semen tuum et semen illius; ipsum conteret caput tuum, et tu conteres calcaneum eius” – Estabelecerei inimizades entre ti e a mulher e entre a sua descendência e a descendência dela; esta esmagará a tua cabeça e tu tentarás morder o seu calcanhar (Gn 3,15).

Ao invés da Vulgata Clementina, o sujeito de esmagar a cabeça é neutro, “ipsum” (o próprio), referido a “sémen” (descendência); não é o feminino “ipsa” (a própria), referível a “mulier” (mulher).

Assim, quem esmagará a cabeça da serpente é Cristo, a descendência da mulher, a Eva de outrora, mas, agora, a descendência de Maria. É importante rever o texto de Paulo (Gl 4,4), que diz expressamente que “Deus enviou o seu Filho feito de mulher(genómenon ek gynaikós), cumprindo assim o protoevangelho de Gn 3,15. Jesus é a predita e vitoriosa descendência de mulher. E Maria, por graça divina e por fidelidade sua à Palavra de Deus, é associada pelo Senhor à sua nova obra: a redenção operada através da Páscoa de Cristo. Maria transita de indefetível “cheia de graça” a humilde serva do Senhor e, sabendo do estado de Isabel, partiu apressada (Lc 1,39) para a ajudar e partilhar as Boas Novas. Maria será mais bem entendida se A virmos situada no mistério de Cristo. Como sua Mãe e, sobretudo, fiel à Palavra (cf Lc 11,27-28), coopera na concretização do plano de salvação de Deus em prol de todos os homens, como fica plenamente explicitado no hino da Carta aos Efésios (Ef 1,3-6.11-12), tomada para 2.ª leitura desta estupenda solenidade. Na verdade, “Deus escolheu-nos para sermos santos” (Ef 1,4) e para nos dar, por Jesus Cristo, a nossa verdadeira identidade, a filiação divina (hyiothesía) (cf Ef 1,5; Rm 8,14.16-17; Gl 4,6-7), que nos faz “membros da família de Deus” (Ef 2,19), “filhos de Deus” (1Jo 3,2), “filhos no Filho”, unidos na ordem do amor, logo irmãos. Não somos meros continuadores de Cristo, mas os seus contemporâneos e irmãos (cf Mt 28,10; Jo 20,17). Entrando, por graça, na casa de Deus (Ef 4,19), andaremos sempre na sua presença. Ele é o Deus Santo que nos santifica.

E, tal como se enquadra Maria no mistério de Cristo, também Ela se configura com relevante papel no mistério da Igreja. Ela é o protótipo da Igreja e seu membro exemplar como discípula orante, insigne cooperadora e companheira de Cristo (“não têm vinho”; “fazei o que Ele disser” – Jo 2,3.5) e, sobretudo, a mãe espiritual da Igreja (vd Jo 19,27; LG 53), a serva do Senhor e da humanidade. O que significa que também a Igreja recebe da santidade e missão de Cristo o seu ser, missão, capacidade de serviço e poder participado de esmagar a cabeça da serpente.

Por isso, como diz o Bispo de Lamego, Dom António Couto, citando a conclusão do rito bizantino, a oração que abre a celebração deste Dia, “Fazendo memória da Toda Santa, imaculada, sobre bendita, gloriosa Senhora nossa, Mãe de Deus e Sempre Virgem Maria, juntamente com todos os Santos, consagramo-nos nós e toda a nossa vida a Cristo Deus”, responderemos em assembleia eclesial: “A Ti, Senhor!”.

E o cantor do Salmo 98 incita que que entoemos com ele, desde o santuário do nosso coração e em consonância com toda a criação, um cântico novo de fidelidade do amor ao Deus que vem para julgar amando. Por outro lado, urge que a Senhora, imaculada na sua conceção e em toda a sua vida – vemos com a sua índole imaculada se liga quer à virgindade, quer à maternidade (é toda a sua existência) – nos ajude a ser mais filhos de Deus, mais irmãos uns dos outros, mais zelosos na santidade e missão pessoais e eclesiais, saindo de nós mesmos e tornando-nos mais orantes, oradores (com a palavra, o silêncio e a vida) e servidores. Por Maria a Jesus e por Maria ao mundo todo!

2020.12.08 – Louro de Carvalho

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