É a tradução
literal da saudação do anjo Gabriel a Maria “Khaîre, kekharitôménê, ho Kýrios metá soû” (Lc 1,28), na perícopa do Evangelho (Lc 1,26-38) tomada para a celebração Eucarística da Solenidade da
Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria – verdade cuja definição foi sugerida
no Concílio de Basileia (1439) e que foi proclamada
pelo Beato Pio IX a 8 de dezembro de 1854, através da bula Ineffabilis
Deus.
Repare-se
que o conceito bíblico de conceção abrange toda a existência, pelo que a
imaculada conceição de Maria, não se cinge ao momento concecional, mas atinge
toda a sua vida.
Depois, o
mensageiro (ággelos) do Senhor exortou a que a inundada da graça divina
não temesse, pois achou graça diante de Deus (khárin parà tôi Theôi), pelo que irá conceber e dar à luz um filho, a quem
porá o nome de Jesus (o Salvador), porque Ele
será grande e será chamado Filho do Altíssimo. E, quando o mensageiro disse, ante
a sua pergunta “como será isso, pois não conhece varão (ándra), que será o Espírito Santo (Pneûma
Hágion) quem induzirá a geração daquele que
se chamará Filho de Deus (hyiòs Theoû), a Virgem
exclamou: “idoù hê doúlê Kyríou; génoitó
moi katà tò rhêm sou” – eis a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua
palavra (Lc 1,38).
Fica, assim,
neste dia solene, a ressoar no coração dos crentes e no seio da comunidade
eclesial o “fiat”, o “génoitó”, o “faça-se”, proferido por Maria replicando o “faça-se” criador do Génesis e anunciando a obra da nova criação,
tarefa de Cristo, por Quem tudo foi feito (cf Jo 1,3; Cl 1,16).
A cheia de
graça, mercê da “redenção precedente” operada por Cristo, contradiz e
ultrapassa, com o seu “génoitó”, a
ratoeira ardilosa em que a serpente fez cair a ‘curiosa’ mulher do Génesis,
persuadida da sua autossuficiência e enredada nas malhas das solicitações da
sedução.
O contraste entre a postura de Maria e o de
Eva percebe-se pela releitura da perícopa bíblica assumida como 1.ª leitura desta
solenidade (Gn 3,9-15.20), que integra o relato javista de Gn 2,4b-3,24, texto
do séc. X a.C., sobre a origem da vida e do pecado, que terá aparecido em Judá
na época do rei Salomão. Não é uma reportagem de acontecimentos passados nos
alvores da humanidade, mas uma catequese a vincar que na origem da vida e do
homem está Deus, o Senhor, e que na origem do mal e do pecado estão as opções
erradas do homem.
A reflexão sobre a origem da vida e do mal que desfeia o
mundo está concebida num esquema tripartido, com duas situações opostas e uma
realidade-charneira em torno da qual gravitam a primeira e a terceira. A
primeira (cf Gn 2,4b-25) oferece-nos a criação do paraíso e
do homem, em espaço de felicidade, onde tudo é bom e o homem, vive em comunhão
total com o criador e com as outras criaturas (o homem e as demais criaturas são “obra muito boa” –
Gn 1,31). A segunda (cf Gn 3,1-7) apresenta o pecado do homem e da
mulher, mostrando como as opções erradas do homem introduziram fatores de
desequilíbrio, destruição e morte na comunhão do homem com Deus e com o resto
da criação. A terceira (cf
Gn 3,8-24) mostra-nos o
homem e a mulher confrontados com as consequências das suas opções erradas que
atingem o homem e toda a criação.
Na ótica do javista, Deus criou o homem para a felicidade. Por
isso, ele pergunta como surgiu o egoísmo e a violência que assombram o mundo. E
a resposta é que o homem, que Deus criou livre e feliz, fez escolhas erradas e
introduziu na criação boa dinamismos de sofrimento e morte.
A perícopa em referência pertence à terceira situação do
predito esquema e as personagens intervenientes são Deus (que “passeia no jardim à brisa do
dia” – v. 8a), Adão e
Eva (que se esconderam de
Deus por entre o arvoredo do jardim – v. 8b).
Antes de acusar, Deus – acusador e juiz – investiga os
factos. Logo à primeira questão lançada por Deus ao homem, “onde estás?”, a resposta é de culpabilidade:
escondeu-se por medo, pois desobedecera. Depois, à interrogação retórica se
comera da “árvore da ciência do bem e do mal” (que significa o poder de decisão à margem ou á revelia
do criador) –, o homem
empurra a responsabilidade culposa para a mulher, que o tentou, e também para
Deus, que lha deu por consorte. Quer dizer, o homem pecou, mas não reconheceu a
culpa e rompeu com Deus e com o seu semelhante.
Por seu turno, a mulher alegou em sua defesa que foi enganada
pela serpente. Ora, a serpente, que estava ligada aos rituais de fertilidade e
de fecundidade entre os povos cananeus, cultos que fascinavam os israelitas,
fica apresentada como símbolo de tudo o que afasta de Deus o homem. E a resposta
da “mulher” confirma tudo o que até agora estava sugerido: a humanidade que
Deus criou prescindiu de Deus, ignorou as suas propostas e enveredou por outros
caminhos, achando que podia, no egoísmo e autossuficiência, encontrar a verdadeira
vida à margem de Deus e prescindindo das suas propostas. Obviamente Deus condena
os falsos e enganosos cultos e tentações que seduziam os israelitas e os
puseram fora da esfera da Aliança e dos preceitos.
Esta
narrativa desvenda todas as nossas inúteis estratégias de defesa fazendo-nos
ver como nós nos escondemos de nós mesmos e de Deus, e como alijamos facilmente
as nossas culpas sobre os outros, quando era justo e terapêutico assumirmos e
confessarmos lhanamente a nossa culpa.
É usual
entender-se que esta página expõe o facto da entrada do mal no coração do homem
e no mundo, mas do que se trata é da importância da relação do homem com Deus,
sendo que o mal entra no mundo quando o homem quebra esta relação e se desliga
de Deus. Por isso, toda a Escritura se ocupa em mostrar que a resposta ao mal
não é apenas o bem, mas o santo; não o homem fechado sobre si, autossuficiente e
autorreferencial, mas totalmente aberto e voltado para Deus, de quem por amor
tudo recebe e se recebe, e completamente voltado para os outros, a quem tudo
entrega por amor, a exemplo de Maria. Na verdade, como dizia o Padre Porfírio
Sá, quem não se encontra com os irmãos nunca se encontrará com Deus.
O catequista parte do facto de a serpente ser um miserável
animal, que passa a vida a morder o pó da terra, para pintar a condenação radical
de tudo o que leva o homem a afastar-se da rota de Deus. Assim, o hagiógrafo
explica etiologicamente como a serpente inspira horror aos humanos e toda a
gente lhe procura “esmagar a cabeça”, mas a interpretação judaica e cristã vê
aqui uma profecia messiânica, um protoevangelho: Deus anuncia que um “filho da
mulher” (o Messias) acabará com as consequências do
pecado e reinserirá a humanidade na dinâmica da graça.
Não se trata de um pecado cometido nos primórdios da
humanidade pelo primeiro homem e pela primeira mulher (Adão e Eva são designações simbólicas
do ser humano no masculino e no feminino), mas da universal inclinação para o mal da parte de todos os
homens e mulheres de todos os lugares e tempos. E o autor material do texto só
quer ensinar que a raiz de todos os males está no facto de o homem prescindir
de Deus e construir o mundo a partir do critério da sua autossuficiência.
Ora, a
atitude de Maria é a da total disponibilidade para Deus. Na verdade, a
superabundância da graça deve-a a Deus, mas o seu mérito está na disponibilidade
de serviço à Palavra – ao invés de Adão e de Eva, que se fincaram na sua
autossuficiência, no medo e no alijamento da culpa.
Ficaram
estabelecidas inimizades entre a serpente e a mulher, entre a descendência de
uma e da outra. E a cabeça da serpente será esmagada. E a pergunta é: “Quem lhe
esmagará a cabeça”? A mulher ou a sua descendência? E o texto latino da Nova
Vulgata esclarece:
“Inimicitias ponam inter te et mulierem
et semen tuum et semen illius; ipsum conteret caput tuum, et tu conteres calcaneum eius” – Estabelecerei inimizades entre ti e a mulher e entre a
sua descendência e a descendência dela; esta esmagará a tua cabeça e tu
tentarás morder o seu calcanhar (Gn 3,15).
Ao invés da
Vulgata Clementina, o sujeito de esmagar a cabeça é neutro, “ipsum” (o próprio), referido a “sémen” (descendência); não é o feminino “ipsa” (a própria), referível a “mulier” (mulher).
Assim, quem
esmagará a cabeça da serpente é Cristo, a descendência da mulher, a Eva de
outrora, mas, agora, a descendência de Maria. É importante rever o texto de
Paulo (Gl 4,4), que diz expressamente que “Deus enviou o seu Filho feito
de mulher” (genómenon ek gynaikós), cumprindo
assim o protoevangelho de Gn 3,15. Jesus é a predita e vitoriosa descendência
de mulher. E Maria, por graça divina e por fidelidade sua à Palavra de Deus, é
associada pelo Senhor à sua nova obra: a redenção operada através da Páscoa de
Cristo. Maria transita de indefetível “cheia de graça” a humilde serva do
Senhor e, sabendo do estado de Isabel, partiu apressada (Lc 1,39) para a ajudar e partilhar as Boas Novas. Maria será mais
bem entendida se A virmos situada no mistério de Cristo. Como sua Mãe e, sobretudo,
fiel à Palavra (cf Lc 11,27-28), coopera na
concretização do plano de salvação de Deus em prol de todos os homens, como
fica plenamente explicitado no hino da Carta aos Efésios (Ef
1,3-6.11-12), tomada
para 2.ª leitura desta estupenda solenidade. Na verdade, “Deus escolheu-nos para
sermos santos” (Ef 1,4) e para nos
dar, por Jesus Cristo, a nossa verdadeira identidade, a filiação divina (hyiothesía) (cf Ef 1,5; Rm 8,14.16-17; Gl 4,6-7), que nos faz “membros da família de Deus” (Ef 2,19), “filhos de Deus” (1Jo 3,2), “filhos no Filho”, unidos na ordem do amor, logo irmãos.
Não somos meros continuadores de Cristo, mas os seus contemporâneos e irmãos (cf Mt
28,10; Jo 20,17). Entrando,
por graça, na casa de Deus (Ef 4,19), andaremos
sempre na sua presença. Ele é o Deus Santo que nos santifica.
E, tal como
se enquadra Maria no mistério de Cristo, também Ela se configura com relevante
papel no mistério da Igreja. Ela é o protótipo da Igreja e seu membro exemplar
como discípula orante, insigne cooperadora e companheira de Cristo (“não têm
vinho”; “fazei o que Ele disser” – Jo 2,3.5) e, sobretudo, a mãe espiritual da Igreja (vd Jo 19,27; LG 53), a serva do Senhor e da humanidade. O que significa
que também a Igreja recebe da santidade e missão de Cristo o seu ser, missão, capacidade
de serviço e poder participado de esmagar a cabeça da serpente.
Por isso,
como diz o Bispo de Lamego, Dom António Couto, citando a conclusão do rito
bizantino, a oração que abre a celebração deste Dia, “Fazendo memória da Toda Santa, imaculada, sobre bendita, gloriosa
Senhora nossa, Mãe de Deus e Sempre Virgem Maria, juntamente com todos os
Santos, consagramo-nos nós e toda a nossa vida a Cristo Deus”,
responderemos em assembleia eclesial: “A
Ti, Senhor!”.
E o cantor
do Salmo 98 incita que que entoemos com ele, desde o santuário do nosso coração
e em consonância com toda a criação, um cântico novo de fidelidade do amor ao Deus
que vem para julgar amando. Por outro lado, urge que a Senhora, imaculada na
sua conceção e em toda a sua vida – vemos com a sua índole imaculada se liga
quer à virgindade, quer à maternidade (é toda a sua existência) – nos ajude a ser mais filhos de Deus, mais irmãos
uns dos outros, mais zelosos na santidade e missão pessoais e eclesiais, saindo
de nós mesmos e tornando-nos mais orantes, oradores (com a
palavra, o silêncio e a vida) e
servidores. Por Maria a Jesus e por Maria ao mundo todo!
2020.12.08 –
Louro de Carvalho
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