À beira
do Natal, o 4.º domingo do Advento propõe-nos a meditação dum trecho do 2.º
Livro de Samuel (2Sm 7,1-16), em que ressalta
que Deus vem morar no meio de nós e, como acentua Dom António Couto, Bispo de
Lamego, “não num Templo de pedra, mas num Templo de tempo, podendo assim
caminhar connosco sempre, como já fez com David, e quer continuar a fazer
connosco”, pelo que “nós construímos o espaço, enquanto os judeus construíram o
tempo”.
Os Livros de Samuel reportam-nos um importante momento da
história veterotestamentária (finais do séc. XI e princípios do séc. X a.C.): a constituição de Israel como Povo,
no sentido pleno do termo. Com efeito, as tribos do Norte (Israel) e do Sul (Judá)
reúnem-se em torno dum único rei (David)
e duma capital (Jerusalém). David, que se tornara rei de Judá por
volta de 1012 a.C., foi instado, alguns anos depois, pelas tribos de Israel
para reinar sobre elas. Após a união, David elegeu para capital uma cidade
geograficamente bem situada e, sobretudo, neutral, que não criasse tensões
entre o norte e o sul nem despertasse rivalidades mútuas entre as tribos. A
cidade encontrada para tal foi Jerusalém, a cidade inexpugnável dos jebuseus. E
o rei, prescindindo dos exércitos de Israel e de Judá, para que nenhum dos
reinos reivindicasse o título de propriedade sobre a nova cidade, reuniu um
comando de profissionais, que a conquistaram aos jebuseus por volta do ano 1005
a.C., ficando a ser a Cidade de David, para onde, mais tarde, o rei fez
transportar a “Arca da Aliança” (o sinal visível da presença de Deus no meio do povo), convertendo a nova capital em
cidade santa para todas as tribos.
Em Jerusalém, a “Arca” postulava um Templo para lhe dar
abrigo e que David pensou em edificar. Porém, o profeta Natã, que, a princípio
concordou, veio depois, em nome de Deus, opôs-se, visto que a ideia do Templo,
em termos proféticos, era tida como uma ofensa a Deus, por aparentar uma
tentativa de O enclausurar em vez de aceitar a sua condução. Javé é visto pelos
teólogos, principalmente pelos deuteronomistas, como um Deus “nómada”, que
acompanha o Povo pelos caminhos da vida e da história – como o próprio Senhor faz
questão de recordar, para se encontrar com os homens, sem um lugar fixo,
limitado e fechado.
Por isso, David não construirá o Templo. Porem, se David não
pode oferecer “estabilidade” ao Senhor, o Senhor promete construir uma casa propícia
a David, garantindo estabilidade ao rei e ao povo. A partir da dupla aceção semântica
do termo “bait” (“casa”), utilizável para significar a casa
de pedra (“Templo”) e a casa como “família”, “dinastia”
e “descendência”, o teólogo deuteronomista esclarece que David não vai
construir uma “casa” para Deus, mas Deus vai construir uma “casa” para David. É
a “Aliança davídica”, que constitui a família de David como depositária da
promessa divina e garantia dum futuro de segurança, prosperidade e paz.
Ora, esta “Aliança” garante quatro dados fundamentais: a especial
relação entre Deus e a descendência de David, expressa em termos de filiação (“serei para ele um pai e ele será
para mim um filho” – 2Sm 7,14a); o cuidado e condução do Povo pelos caminhos da vida e da história por
parte do Senhor através dos reis descendentes de David (cf 2Sm 7,8.12.16); a prosperidade, paz e justiça para
o Povo de Deus (cf 2Sm
7,10); e a perpetuidade da
dinastia e da nação (cf 2Sm
7,16).
É uma “promessa” que releva a fidelidade de Deus ao seu Povo,
num amor nunca desmentido e recorrentemente provado na história, e a sua índole
de Deus peregrino, permanentemente a caminho com o seu Povo e que, ao longo
dessa caminhada, se vai revelando como a rocha segura e firme na qual o Povo de
Deus encontra a salvação.
A profecia de Natã constitui, assim, o ponto de partida do
“messianismo régio”: a promessa de Deus extravasa o filho e sucessor de David (Salomão) para a figura do rei ideal, que dará
cumprimento às aspirações e esperanças que o Povo depositava na dinastia
davídica. E a promessa decorrente desta profecia tornar-se-á, com o fluir do
tempo, um dos itens basilares da fé de Israel e constituirá, sobretudo em
tempos dramáticos de crise e angústia nacional, um capital de esperança que
ajudará o Povo a enfrentar as vicissitudes da história passando a sonhar com um
Messias, da descendência de David, que trará um futuro de liberdade,
abundância, fecundidade, paz e bem-estar infindos.
Em referência ao desejo de Deus vir morar connosco, que se vai
concretizar, à figura da Arca da Aliança e à consumação da promessa davídica,
vem a jeito o texto
evangélico deste dia (Lc 1,26-38) que
evidencia a Anunciação, segundo as Igrejas do Ocidente, ou a Evangelização,
segundo as do Oriente.
O mensageiro
da alegria vem a casa de Maria e saúda-a: “Alegra-te,
Cheia de graça” (Khaîre, kekharitôménê), “o Senhor contigo”
(ho Kýrios metá soû), “não tenhas
medo” (mê phoboû). E Dom António Couto anota que, anos mais tarde, as
mulheres que vão ao túmulo de Jesus ouvirão idêntica melodia: “Alegrai-vos” (Mt 28,9: Khaírete), “não tenhais medo” (Mt 28,5.10:
mê phobeîsthe) – o que tem de se repercutir em nós, seguidores e
testemunhas do obreiro da Nova Aliança.
Na boca do anjo afloram termos e expressões veterotestamentários
de contextos de eleição, vocação e missão. Assim, o termo “khaîre”, mais que saudação, é o eco dos anúncios de salvação à Filha
de Sião – figura delicada que personifica o Povo de Israel, em cuja fraqueza se
apresenta e representa a salvação oferecida por Deus e que Israel deve testemunhar
diante dos outros povos (cf 2 Rs 19,21-28; Is
1,8;12,6; Jr 4,31; Sf 3,14-17); a expressão “kekharitôménê” significa que Maria é objeto da predileção e amor de Deus;
e a expressão, “ho Kýrios metá soû” aparece com frequência nos
relatos de vocação no AT (Antigo Testamento) (cf Ex 3,12 – Moisés; Jz 6,12 – Gedeão; Jr 1,8.19 – Jeremias) e serve para
assegurar ao vocacionado a assistência de Deus na missão pedida. Estamos, pois,
ante o relato de vocação de Maria: a visita do anjo apresenta à jovem de Nazaré
a proposta de Deus, a qual exige dela uma resposta inequívoca.
Epidermicamente,
a figura central da cena é Maria, que sintoniza com a Palavra de Alegria que Lhe
vem de Deus. Não esboçando qualquer reação à presença do anjo, Ela fica
perturbada com o teor da Palavra salutatória que lhe cai no ouvido e no coração
e sobretudo com o conteúdo da mensagem angélica: “Conceberás no ventre e darás à luz um filho a quem porás o nome de
Jesus” (sylêmpsê en gatrì kaì téxê hyón, kaì
kaléseis tò ónoma autoû Iêsoûn: Lc 1,31).
A redundância
“conceber no ventre”, como refere Dom António Couto, é intencional e só é dita de
Maria por duas vezes (Lc 1,31 e 2,21) para a pôr
em sintonia com o Deus do “ventre das misericórdias” (Lc 1,78), ao passo que de Isabel só se diz que “concebeu” (Lc 1,36). Na verdade, o mesmo anjo Gabriel anunciara a Zacarias
no Templo a fecundidade de Isabel, que era estéril e já de idade avançada, e o
nascimento de João atendendo à oração (Lc 1,13), algo que sucedera algumas vezes no AT, ao passo que,
na desconhecida e humilde Nazaré (Lc 1,26), “anuncia a Maria o inaudito, sem precedentes na
história de Israel”: o Filho que vai nascer (Lc 1,31) não é fruto de desejo ou prece de Maria, não cumpre
nenhum projeto, espera ou expectativa de Maria, nenhuma programação ascendente.
Ao invés, Ela confessa nunca ter projetado tal hipótese: “Como poderá isso acontecer, pois não conheço homem?” (Pôs éstai toûo,epeì ándra ou ginôskô?: Lc
1,34). Assim, ficamos a saber que “Jesus
é fruto da iniciativa surpreendente, livre e gratuita de Deus”: é obra da
condescendência ou sincatábase divina.
De tal sorte
assim é que, face à interrogação da jovem, Gabriel garante que o
Espírito Santo a cobrirá com a sua sombra. Este é o Espírito que foi derramado
sobre os juízes (Oteniel – cf Jz 3,10;
Gedeão – cf Jz 6,34; Jefté – cf Jz 11,29; Sansão – cf Jz 14,6.19), os reis (Saul – cf 1Sm 11,6; David – cf 1Sm 16,13), e os profetas (cf Maria, a profetisa irmã de Aarão – cf Ex 15,20; os
anciãos de Israel – cf Nm 11,25-26; Ezequiel – cf Ez 2,1; 3,12; o Tritoisaías –
cf Is 61,1), para que fossem uma presença eficaz da salvação de Deus no
meio do mundo. E a “sombra” ou “nuvem” leva-nos à “coluna de nuvem” (cf Ex 13,21) que acompanhava a marcha do Povo de Deus pelo deserto,
indicando o caminho para a Terra Prometida. Agora, apesar da fragilidade de
Maria, Deus vai, através dela, fazer-se presente no mundo para oferecer a
salvação a todos os homens.
Face à explicação
do mensageiro, Maria responde: “Eis a
serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua Palavra” (idoù hê doúlê Kyríou; génoitò moi katà tò rhêmá sou – Lc 1,38). Ora, como, na Bíblia, só os grandes vocacionados (Moisés,
Josué, Samuel, David) são
denominados Servos do Senhor, vemos que Maria, assim se autodenominando, é a
única mulher com tal denominação, o que mostra que Ela Se sentiu chamada e Se
dispôs a aceitar esta vocação. Deus não impõe, chama. Competiu a Maria, como a
cada um de nós, aceitar Deus e deixar que Ele entre, ou fechar-lhe a porta.
Maria aceitou e, por isso, todas as gerações A proclamarão Bem-aventurada. Por isso,
Isabel A proclamou feliz, porque acreditou em tudo quanto Lhe foi dito da parte
do Senhor, tal como será feliz “quem ouve
a Palavra de Deus e a põe em prática” (Lc 11,28).
O episódio evangélico
em causa mostra Maria, a nova Arca da Aliança, que não transporta já as tábuas
da Lei, mas o autor da Lei, e que não O tem oculto por muito tempo: logo que
possível fá-Lo habitar na tenda do mundo e a acompanha-O segundo as
necessidades e as circunstâncias, com desvelo e afeição maternas, escutando, alimentando,
educando, velando, mas sem impor.
E, porque a
cena só epidermicamente está centrada em Maria, é conveniente fixarmo-nos em
Jesus, o real centro da narrativa e o fulcro da História da Salvação: “Será grande e chamar-Se-á Filho do Altíssimo”; o Senhor Lhe
dará o trono de seu pai David; e o seu reinado não terá fim (…); o
Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus”. Jesus, homem, é o Filho de Deus ou Filho do
Altíssimo; é descendente de David; é o cumpridor da promessa messiânica. E,
como no AT, primou pelo nomadismo migrante: de Nazaré a Belém, de Belém ao Egito,
do Egito a Nazaré, de Nazaré a Jerusalém, passando pela Pereia e Decápole, Tiro
e Sídon, Samaria…
Quanto ao Templo,
respeita-o (Encontra-Se lá com os doutores: Lc 2,41-50. E ensina ali: Jo 7,14; 8,2; 18,20:), mas não em absoluto. Quer que seja casa de oração,
não de comércio, e sugere a adoração em espírito e verdade. Ele se constitui em
Templo (cf Jo 2,16.19.21;
4,23.24). Paulo tem-nos como Templo do
Espírito Santo (1Cor 3,16-23). E nós
fazemos a casa para reunirmos em Igreja (eklesía).
Deus, que
não precisa de casa, assume a vida humana como sua tenda. E quer habitar em
nós, mas sobretudo nos corações. Assim, Paulo expõe, na Carta aos Romanos (cf Rm 16,25-26) o Mistério (mystêrion) do Amor de Deus, mistério (plano) escondido (cf Rm 16,25; Ef 3,9; Cl 1,26), mas já presente e atuante na história dos homens desde
a Criação (cf Jo 1,3; Cl 1,16) e agora
dado a conhecer (gnôrízô) em Cristo (cf Rm 16,25-26;
Ef 1,9; 3,3.10; Cl 1,27),
tornando-se Mistério conhecido, doação do Dom e dicção do Divino, totalmente
entregue aos homens, para o viverem totalmente.
2020.12.20 –
Louro de Carvalho
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