segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

O vírus pode afetar todos, mas a crise não tem o mesmo impacto

  

A economia em situação de normalidade (sem recessão económica), no âmbito do comportamento das famílias em termos de poupança e consumo de bens e serviços, carateriza-se pela tendência, em ciclos expansionistas (aumento da produção, emprego e rendimento), para aumento do consumo (melhorando o estilo de vida) e da poupança por motivo de precaução (acautelando o futuro por súbitas quebras de rendimento, problemas de saúde, questões familiares, dificuldades financeiras na educação dos filhos e na velhice…) e pela maior predisposição, em ciclos recessivos (baixa da produção, emprego e rendimento), para redução da poupança mantendo o mais possível o estilo de vida anterior.

Porém, esta caraterização não se verificou, em termos gerais, na atual realidade de severa crise sanitária e económica, já que nos encontramos ante uma situação demasiado anormal em que os comportamentos das famílias se modificam de forma significativa. Assim, no caso português, segundo os estudiosos, verifica-se que a taxa de poupança das famílias aumentou agora, em contraciclo, quando historicamente tem sido quase constante o facto de as famílias portuguesas registarem uma das mais baixas taxas de poupança comparativamente com o sucedido na União Europeia a 27 (UE-27) e na Zona Euro a 19 (UE-19). Por exemplo, o Eurostat refere que, em 2018, a taxa de poupança das famílias portuguesas foi de 7,1% do seu rendimento disponível em comparação com 12,5% da UE-19 e 11,7% da UE-27, ao passo que do Luxemburgo regista 21,9% e da Alemanha 19,1%, tendo sido estes os países europeus com maiores taxas de poupança das famílias. No entanto, antes da adesão de Portugal ao euro, no início dos anos 2000, as taxas de poupança das nossas famílias situavam-se acima dos 20%.

Assim, ao invés do sustentado pela teoria económica tradicional, as famílias portuguesas, sobretudo, aquelas cujos agregados familiares não tiveram reduções de rendimento por via de despedimento, “lay-off” ou redução de atividade, aumentaram as poupanças e reduziram o consumo, tendo as poupanças atingido, em muitos casos, valores máximos no atual contexto, aliás como sucedeu na crise económica e financeira de 2007/2008. Não obstante, a poupança das nossas famílias é inferior à da média da UE-27. Com efeito, segundo o INE (Instituto Nacional de Estatística), no 2.º trimestre de 2020, a taxa de poupança das famílias subiu para 10,6% do seu rendimento disponível – quando no 1.º trimestre era de 7,5% –, muito à custa da baixa de 3,7% do consumo presente das famílias, ao passo que, no mesmo período, a taxa de poupança das famílias europeias em termos da média da UE-27, foi bem mais elevada, 24,6%.

Pelos vistos, segundo os especialistas, estaremos perante o “Paradoxo da Poupança” descrito por J. M. Keynes em “A Teoria do Emprego, do Juro e da Moeda(1936).

Para lá do aludido “motivo de precaução”, gerado pelo clima de grande incerteza em que se vive, são de ter em conta dois motivos específicos do momento presente: a redução do incentivo ao consumo (que passou a cingir-se aos bens essenciais), por via do confinamento e das restrições sanitárias; e a alteração de estilo de vida das famílias com o refrear do consumo presente fruto de uma mais baixa atividade fora de casa. De facto, as restrições sanitárias induziram cortes a nível de refeições na restauração, de idas a centros comerciais, de viagens, de entretenimento, de vestuário, etc., o que parece configurar uma “poupança forçada ou involuntária”, dado que as famílias que podiam e queriam consumir mais ficaram impedidas de o fazer. E, mantendo-se o clima de pandemia e as respetivas restrições sanitárias, será de esperar a manutenção de uma tendência mais ou menos duradoura para existir uma maior poupança das famílias no futuro.

Ora, constituindo o consumo das famílias um dos principais motores da atividade económica e continuando estas na linha da maior poupança possível e, consequentemente, de menor consumo, a recuperação económica será mais lenta que o esperado. Quer isto dizer que o fenómeno do “Paradoxo da Poupança” leva a que, em contexto de profunda crise sanitária e económica, uma maior poupança das famílias e um decréscimo do consumo, virtuosos a nível privado, se extensíveis à grande maioria das famílias, a recuperação económica seja mais lenta que o desejável. Por isso, o Estado terá de continuar com programas de apoio a empresas e famílias, mas sem permitir aproveitamento oportunista de tantos que se valem da crise.

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No atual contexto pandémico, a poupança representa efetivamente uma forma de salvação para muitas famílias ante a iminência da crise para 2021, em réplica do que se verificou na última recessão económica e que se tem vindo a adensar com a aproximação duma segunda vaga muito severa da pandemia (a OMS até vem apontando uma 3.ª vaga para a Europa).

É certo que poupar significa amealhar uma parcela da riqueza adquirida e conter os gastos, o que, em certa medida, acabou por ficar por conta do confinamento. Ora, se por um lado, os números apontam para o sucesso antecipado do desígnio nacional de reduzir a despesa e aumentar a riqueza, face ao que estará para vir, por outro, sabe-se que o mérito dos resultados não é fruto da repentina alteração comportamental dos consumidores, mas das circunstâncias em que o consumo foi possível. Bastará para tanto, considerar o exponencial aumento das compras através do comércio eletrónico.

Se nos compararmos, neste aspeto, com a UE, concluiremos pela nossa falta de literacia financeira na hora de opção pela melhor forma de poupança, pois, não se afigura fácil decidir onde devemos investir as poupanças: obrigações, fundos de investimento, ações, PPR, depósitos a prazo, certificados de aforro ou do tesouro. São estes apenas alguns dos produtos para os vários perfis de poupança, sem que a banca incentive a poupança. No entanto, quantos de nós nos consideramos com uma opção refletida e com conhecimento suficiente para uma tomada de decisão consciente! E é por isso que o risco de guardar o dinheiro em casa ainda é opção muito válida para a grande maioria.

Ora, se todos os possuidores de rendimentos decidirem poupar, haverá menos procura pelos bens das empresas e, logo, menos produção, menos riqueza e, paradoxalmente, acabará por haver menos poupança, pois haverá menos dinheiro para poupar. Assim, um país, por mais que incentive à poupança, se não a souber aplicar em investimento produtivo, não dará utilidade à poupança que foi acumulando.

Nestes termos, a poupança é, simultaneamente, a capacidade de investimento no futuro, isto é, de pôr novamente o dinheiro no ponto de origem. Todavia, para satisfazer tal desiderato, requer-se um maior empenho das autoridades na promoção da poupança, até porque o Programa do Governo não contempla medidas de promoção da poupança e disciplina dos gastos dos consumidores. E, neste sentido, a resposta do Governo à crise foi a criação dum regime especial para o resgate de PPR sem penalizações, pondo em causa as poupanças para a reforma futura. Com efeito, sem poupança, não há investimento; e, sem este, não há crescimento económico.

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No boletim económico de dezembro, o Banco de Portugal (BdP) analisa a evolução do consumo de diferentes grupos de consumidores e conclui que, em relação às camadas mais pobres, os gastos dos mais ricos registaram uma queda maior e a poupança registou uma subida superior.

E o BdP refere, baseado nos dados da Sociedade Interbancária de Serviços (SIBS) sobre a despesa realizada com cartões bancários, que “a redução da despesa foi mais acentuada no grupo de consumo mais alto e a recuperação subsequente mais lenta” (variações de -35,9% e -0,4%, respetivamente, em abril e setembro). Já no de consumo mais baixo, a despesa caiu 21,8% e 8,8%, respetivamente, em abril e setembro.

Ora, como o rendimento não terá caído mais entre os mais ricos, a análise do BdP leva a crer que a dita quebra de despesa estará associada ao teletrabalho, mais frequente em profissões dos mais ricos, evitando gastos fora de casa com cartões. Ademais, a estrutura de consumo deste grupo e as restrições explicam o resto: os bens essenciais pesam menos no orçamento destes cidadãos, ao invés dos bens duradouros (e mais caros) cuja aquisição esteve mais limitada pelas restrições. Porém, ao trabalhador médio, o teletrabalho trouxe encargos com equipamentos, consumíveis e mais horas de trabalho.  

Por isso, o grupo de consumo mais alto registou um aumento “significativo” da poupança agregada no 2.º trimestre, o que explica a maior parte do aumento da taxa de poupança na nossa economia, pois este grupo “concentra a maior parte da poupança das famílias”. Isto “sugere, segundo os economistas do BdP, que as razões associadas à perda de rendimento não serão as mais relevantes para explicar a redução do consumo agregado”, comparativamente com crises anteriores onde a relação entre rendimento e consumo foi mais forte.

Entre os mais pobres, os bens essenciais pesam mais no orçamento familiar, o que explica a menor redução da despesa por se tratar de bens de que não podem prescindir. Não obstante, houve, segundo o BdP, “uma evolução mais favorável da despesa deste grupo, em particular em bens duradouros” na retoma do verão, o que aponta para “a eficácia das medidas de proteção do rendimento e de apoio às famílias mais vulneráveis no período recente”.

E os economistas sustentam que o apoio aos grupos mais expostos à crise pandémica tem de continuar e deve ser focado, já que “as perspetivas setoriais e regionais para a atividade deverão permanecer diferenciadas até a pandemia estar controlada, o que aconselha uma abordagem direcionada nas políticas de apoio às empresas e às famílias”. Na verdade, só com essa ajuda, em conjunto com as vacinas, haverá uma “recuperação sustentada do consumo privado”.

Além da diferença entre grupos sociais, o BdP analisa as diferenças regionais. Assim, o impacto da pandemia no consumo foi superior na AML (Área Metropolitana de Lisboa), registando a maior queda (-41,7% face à média nacional de -33,4%) face a outras regiões e uma menor recuperação. Com efeito, as medidas de contenção mantiveram-se “mais restritivas por um período mais longo nesta região” e “o peso do setor de serviços é superior ao das restantes regiões”. Por outro lado, os municípios de maior rendimento apresentaram evolução mais desfavorável que os restantes.

O BdP também confirma o que já fora antecipado por vários números, inclusive os do PIB: a pandemia teve efeitos no cabaz de bens e serviços “consumidos”, com o consumo de bens alimentares a crescer 26,1% entre março e maio. Já os bens duradouros, cuja natureza permite mais facilmente o adiamento da sua aquisição, registaram “uma redução acentuada, mas também uma recuperação marcada”. E, nos setores de serviços, que requerem interação social e para os quais é difícil a substituição intertemporal do consumo, a despesa caiu fortemente e a recuperação tem sido lenta (quedas de 59% em abril e 8,6% em setembro).

Enfim, também no aspeto económico, o vírus afeta a todos, mas não com o mesmo impacto.

2020.12.21 – Louro de Carvalho

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