sábado, 12 de dezembro de 2020

O remédio não está nas demissões nem nas reestruturações

 

O país tem estado sobressaltado por via de duas situações escandalosas: o assassinato dum cidadão ucraniano por elementos do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) em março passado; e o plano de reestruturação da TAP em curso e de acordo com as indicações da Comissão Europeia.

O caso do assassinato do estrangeiro Ihor Homenyuk, por meios de imobilização e tortura letais, seguido de abandono, por parte de três inspetores do SEF no Aeroporto Internacional de Lisboa é a todos os títulos lamentável e condenável, tal como o é a tentativa de cumplicidade e encobrimento da parte de mais nove, sobretudo num país que diz prezar os direitos humanos.

O caso arrasta-se no tempo e o Governo, que tutela aquela organização policial foi tardo a assumir as responsabilidades políticas e de saneamento administrativo. É certo que o Ministro da Administração Interna exigiu a demissão dos responsáveis pelo serviço no aeroporto e mandou instaurar os respetivos inquéritos e processos disciplinares, tendo comunicado, de imediato, os resultados ao Ministério Público para efeitos de julgamento, que está previsto iniciar-se no próximo mês de janeiro.

Entretanto, as vozes vêm crescendo no sentido da exigência da demissão do governante por não ter assumido em tempo útil a responsabilidade política do ocorrido, não ter dado pública explicação bastante e por não ter promovido a justa (tanto quanto possível) indeminização por parte do Estado à viúva, tendo sido esta a custear as despesas da transferência do cadáver para a Ucrânia. Por outro lado, não tomou a iniciativa de demitir a Diretora-Geral do CEF, que levou imenso tempo a perceber a pressão e a colocar o lugar à disposição da tutela.

Também é verdade que o Chefe de Estado, que tem sido tão assíduo a intervir oportuna e importunamente em tantos casos, designadamente a apresentar condolências por cada um dos falecidos de que tem conhecimento não se pode escudar na desculpa de que o processo estava a ser tratado pelo judiciário para não ter dado uma palavra aos familiares do assassinado.

Não concordo com a demissão de Eduardo, porque nada resolveria, como não concordei com a demissão de Jorge Coelho aquando da estrondosa queda da ponte de Entre-os-Rios. Mais do que a demissão importa o apuramento dos factos e das eventuais responsabilidades dos governantes e dos diretores-gerais e figuras análogas. A demissão pura e simples até pode ser cómoda, a não ser que os responsáveis estejam em vias de serem constituídos arguidos, caso em que ela pode ser um imperativo legal e/ou ético.

Por outro lado, não percebo a razão por que o titular dum cargo político – ministro, secretário de Estado ou diretor-geral e equiparado – questionado sobre a não apresentação do pedido de demissão, responde que pôs o lugar à disposição do Primeiro-Ministro ou, se for o caso, do Ministro. É óbvio que esses lugares estão sempre à disposição do Primeiro-Ministro ou do governante que tutela diretamente os serviços. O pedido de demissão configura uma atitude ativa de desvinculamento da função, que obviamente carece de aceitação superior, que pode ser negada ou acolhida. Outra coisa é a exoneração por iniciativa do Primeiro-Ministro ou do governante que tutela os serviços. Também a resposta do Chefe de Estado de que só nomeia ou exonera ministros por proposta do Primeiro-Ministro é meramente formal, pois, como se diz na minha terra, há muita maneira de matar moscas. E todos sabemos como, nos bastidores, as pressões se podem organizar de modo a obter pedidos de demissão. E o atual Presidente da República não perdeu oportunidades de o mostrar publicamente. Que o diga Urbano de Sousa!   

Obviamente não concordo com uma determinada figura política que pretendia a demissão do Ministro porque a predita figura foi exilada e nunca viu um português ser tratado assim num país estrangeiro. Eu também nunca vi, mas garanto que ninguém nos chama para tratar mal outra pessoa nas instalações duma polícia ou nas masmorras dum cárcere. 

Agora, o Governo, que mantém o Ministro, que está fragilizado, assegura aos familiares do falecido uma indemnização (cujo montante será calculado pela Provedora de Justiça) e concretizará a reestruturação do SEF, que estava em agenda e que as circunstâncias acabaram por precipitar.

Irá a eventual extinção ou a mera reestruturação resolver, só por si, o problema do SEF, nomeadamente a entrega de algumas funções a outras polícias?

Pelo Decreto-Lei n.º 171/74, de 25 de abril, foi extinta a DGS (Direção-Geral de Segurança), sucessora da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), tendo o diploma atribuído à PJ (Polícia Judiciária) o controlo de estrangeiros em território nacional e à GF (Guarda Fiscal) a vigilância e fiscalização das fronteiras – solução provisória e de emergência, face à extinção da DGS.

Porém, não estando a PJ vocacionada para o desempenho da função de controlo de estrangeiros, pelo Decreto-Lei n.º 215/74, de 22 de maio, tal função foi transferida para o Comando-Geral da PSP (Polícia de Segurança Pública), o qual recebeu também as funções de emissão de passaportes para estrangeiros e a emissão de pareceres sobre pedidos de concessão de vistos para entrada no País. E a GF manteve a função de vigilância e fiscalização das fronteiras.

Para a execução daquelas funções, foi criada, pelo Decreto-Lei n.º 651/74, de 22 de novembro, no Comando-Geral da PSP, a DSE (Direção de Serviço de Estrangeiros), que foi reestruturada, pelo Decreto-Lei n.º 494-A/76, de 23 de junho, passando a designar-se por SE (Serviço de Estrangeiros), dotado de autonomia administrativa, deixando de estar na dependência da PSP e passando a ficar diretamente subordinado ao Ministro da Administração Interna. E, pela Portaria n.º 1045/81, de 12 de dezembro, os cargos de diretor e de subdiretor do SE passaram a ser equiparados, respetivamente, a diretor-geral e a subdiretor-geral.

Foi o Decreto-Lei n.º 440/86, de 31 de dezembro, que transformou o SE no SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), sendo-lhe também atribuído o controlo de fronteiras. Porém, visto que não dispunha de recursos para assegurar tal controlo, a função continuava a ser assegurada provisoriamente pela GF em cooperação com aquele, sendo que, a partir de 1 de agosto de 1991, o SEF começou a operar em todos os postos de fronteira do país, substituindo a GF.

Não há dúvida de que não é por falta de reestruturações que o SEF não serve. Falta o cuidado da formação, o mecanismo de vigilância e prevenção e a correta investigação e a punição atempada das transgressões – importando que haja sempre afincada vontade política, competência administrativa e fiscalizadora e que, o poder judicial, escudado no mecanismo da separação dos poderes (que não obsta à interdependência e ao escrutínio), não faça capricho em contradizer a lei, e administração e a perceção social, em nome da mais que abundante floresta jurisprudencial.

***

No respeitante à TAP, sabe-se que, após da entrega da gestão “profissional” a um brasileiro com vista ao encontro de parceiro estratégico para esta empresa pública, com os altos e baixos, que são do conhecimento público, como diz alguém, num mecanismo de má gestão que facilitasse a privatização, esta foi conseguida no contexto das alegadas exigências da troika e nas condições conhecidas de todos. Porém, como é do conhecimento público, o XXI Governo Constitucional consegui reverter em parte a privatização, mas continuou posto de lado na gestão corrente da empresa, que suprimiu, alargou e repôs rotas e contratou a aquisição de mais aeronaves. Finalmente, o maior acionista privado saiu da empresa e o Estado ficou na condição de acionista largamente maioritário. 

Em todo este percurso, houve demissões de administradores e gestores – e havia representantes do Estado, cuja demissão ninguém exigiu (Por serem da oposição?), que deixaram que a gestão corrente andasse em roda livre e que a estratégia da empresa não fosse cuidadamente promovida e acautelada –, mas o apuramento de responsabilidades ficou vazio, enquanto os encargos indemnizatórios foram satisfeitos, porque o Estado, quando convém, “cumpre os contratos”!

Entretanto, após seis meses de trabalho, está fechada a proposta de plano de reestruturação, que foi enviada à Comissão Europeia para aprovação. O cenário mais pessimista é o de a companhia aérea precisar de 3.725 milhões de euros em apoio público, mas já se vê o horizonte para o regresso aos resultados positivos: o ano de 2025. Porém, haverá cortes no número de aviões, trabalhadores e rotas.

Ao contrário de outras companhias áreas europeias, o apoio à TAP não é feito no âmbito do quadro temporário da covid-19, mas num regime autónomo para empresas em dificuldades já antes da pandemia, dispondo a Comissão Europeia, na sua legislação, de critérios bem definidos para determinar se uma empresa está em dificuldades e cumprindo a TAP dois desses critérios: capitais próprios negativos; e dívida de cerca de 300 milhões de euros com atrasos de pagamento superiores a 90 dias. E, por imposição de Bruxelas, o Governo avançou com apoio faseado: cheque de 1,2 mil milhões de euros para garantir tesouraria até final do ano; e desenho, no prazo de 6 meses, da reestruturação (pelo Governo e administração da TAP, com consultoria da BCG).

Obviamente a pandemia agravou o cenário com as restrições nas viagens, vindo a empresa a perder mais de 700 milhões de euros nos primeiros 9 meses de 2020 e, na totalidade do ano, o buraco será ainda maior. O cenário previsto pelo Governo é de o que a TAP tenha perdas acumuladas de receita no montante de 6,7 mil milhões de euros até 2025 – perdas que levam a companhia a precisar de mais dinheiro. E, feitas as contas aos vários anos, o custo do apoio público de 2020 a 2024 estará entre 3.414 milhões e 3.725 milhões de euros.

Além da “crise sem precedentes no setor da aviação”, a TAP tem “problemas adicionais” porque já tinha problemas antes da pandemia”, como diz o Ministro da tutela. Entre as várias “ineficiências”, incluem-se ter mais 19% pilotos por aeronave do que os concorrentes e mais 28% de tripulantes. Por isso, irão sair mais de três mil trabalhadores: contratos não renovados, passagens a part-time, rescisões por mútuo acordo, licenças sem vencimento ou reformas antecipadas e despedimento. E quem fica terá um corte progressivo no salário (no máximo de 25%) no remanescente a partir dos 900 euros. Será vendida a TAP Manutenção e Engenharia (ME) e o número de aviões passará para 88 (face aos atuais 108).

A aposta será no longo curso e na TAP Express (antiga Portugália), que aumentará a frota, mas não concorrerá com as low costQuanto a rotas, persiste a incógnita tendo o Governo avançado que, à partida, haverá corte de rotas no inverno, mas sem mexidas para o próximo verão.

Dará resultado, e por quanto tempo, esta feroz reestruturação (à laia das de outras empresas, baseadas em cortes)? Não virá a TAP, pelo desaforo futuro, a constituir um “Novo Banco com asas”?

Está visto que o segredo não está em demitir e reestruturar, mas garantir responsabilidade.

2020.12.12 – Louro de Carvalho

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