segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Pela Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria (2020)

 

Celebra-se, a 8 de dezembro, na Igreja Católica, a Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, apoiada na verdade mariana professada desde os primórdios tanto no Oriente como no Ocidente, mas apenas definida dogmaticamente pelo Papa Beato Pio IX, através da bula “Ineffabilis Deus”, de 8 de dezembro de 1854.

Efetivamente, a Igreja Católica considera o dogma apoiado na Bíblia aduzindo, para tanto, como exemplo a saudação a Maria feita pelo anjo Gabriel, que Lhe chamou “kekaritomémê”, cheia de graça (vd Lc 1,28), bem como em escritos de Padres da Igreja, como Irineu de Lião e Ambrósio de Milão, pois, uma vez que Jesus se encarnou tomando corpo e alma no ventre da Virgem Maria, convinha que Ela estivesse absolutamente livre de pecado para poder gerar seu Filho.  

Pio IX recorreu sobretudo à asserção de Génesis que dá voz a Deus a dizer “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre sua descendência e a dela(Gn 3,15). Segundo esta profecia, seria preciso que uma mulher sem pecado desse à luz o Cristo que reconciliaria o homem com Deus.

Também é citado, para o efeito, o versículo “Tu és toda formosa, minha amada, não há mancha em ti(na Vulgata: “Tota pulchra es, amica mea, et macula non est in te” – Ct 4,7), bem como os seguintes:

Também farão uma arca de madeira incorruptível; o seu comprimento será de dois côvados e meio, e a sua largura de um côvado e meio, e de um côvado e meio a sua altura” (Ex 25,10-11).

Pode o puro vir dum ser impuro? Jamais!” (Jb 14,4).

Assim, fiz uma arca de madeira incorrutível e alisei duas tábuas de pedra, como as primeiras; e subi ao monte com as duas tábuas na minha mão” (Dt 10,3).

Para a palavra incorrutível (“Setim”, em hebraico), há traduções que incluem os significados de “acácia”, “indestrutível” e “dura” para descrever a madeira utilizada. Moisés usou essa madeira por ser considerada muito durável e “incorrutível”. Ora, porque Maria é considerada a Arca da Nova da Aliança (Ap 11,19), a Nova Arca seria igualmente “incorruptível” ou “imaculada”.

Muito antes da definição deste dogma, diversos Padres da Igreja defenderam, como se disse, a Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, tanto no Oriente como no Ocidente. Além dos referidos acima, é de lembrar que Efrém da Síria (306-373), diácono, teólogo e compositor de hinos, sustentava que só Jesus Cristo e Maria são limpos e puros de toda a mancha do pecado.

Já no século VII se celebrava a festa litúrgica da Conceição de Maria a 8 de dezembro, nove meses antes da festa de sua natividade, a 8 de setembro.

E, no século X, a Grã-Bretanha celebrava a Imaculada Conceição de Maria.

A festa da Imaculada Conceição, a 8 de dezembro, foi inscrita no calendário litúrgico pelo Papa Sisto IV, a 28 de fevereiro de 1477.

Ora, a existência desta festa é um forte indício da crença da Igreja na Imaculada Conceição.

Em 1497, a Universidade de Paris decretou que ninguém seria admitido na instituição se não defendesse a Imaculada Conceição de Maria, exemplo que foi seguido por outras universidades como a de Coimbra e a de Évora. Em 1617, o Papa Paulo V proibiu que se afirmasse que Maria tivesse nascido com o pecado original e, em 1622, o Papa Gregório V impôs silêncio absoluto aos que se opunham a esta doutrina. E foi em 8 de dezembro de 1661 que o Papa Alexandre VII promulgou a Constituição apostólica “Sollicitudo omnium Ecclesiarum em que definia o sentido da palavra conceptio, proibindo qualquer discussão sobre o assunto.

Na Itália do século XV, o franciscano Bernardino de Busis escreveu o Ofício da Imaculada Conceição, com aprovação oficial do texto pelo Papa Inocêncio XI em 1678, tendo enriquecido pelo Papa Pio IX em 31 de março de 1876, passados 22 anos da definição do dogma, com 300 dias de indulgência por cada vez que fosse recitado.

Criou-se o consenso de que São Tomás de Aquino teria, durante toda a sua vida, negado o dogma da Imaculada Conceição. Tal consenso é falso, porque, inicialmente, este doutor da Igreja declarou abertamente que a Virgem foi pela graça imunizada contra o pecado original, defendendo claramente o dogma deste privilégio mariano, que seria declarado e definido séculos mais tarde, no século XIX. No livro primeiro dos comentários dos livros das Sentenças (Sent.), escrito provavelmente em 1252 e quando Tomás contava 27 anos de idade, ainda no início da sua atividade académica em Paris, escreveu:

Ao terceiro, respondo dizendo que se consegue a pureza pelo afastamento do contrário: por isso, pode haver alguma criatura que, entre as realidades criadas, nenhum seja mais pura do que ela, se não houver nela nenhum contágio do pecado; e tal foi a pureza da Virgem Santa, que foi imune do pecado original e do atual (I Sent., d. 44, q. 1, a. 3).

Depois, adotou uma postura confusa sobre o dogma, presente em trechos do Compêndio de Teologia e da Suma Teológica, como se pode ler, por exemplo, nesta postura na segunda parte do Compêndio de Teologia (CTh.), que pertence a período anterior ao da elaboração da III da Suma Teológica, escrita quando Tomás contava cerca de 42 anos de idade (1267):

Como se verificou anteriormente, a Beata Virgem Maria tornou-se Mãe de Deus concebendo do Espírito Santo. Para corresponder à dignidade de um Filho tão excelso, convinha que ela também fosse purificada de modo extremo. Por isso, deve-se crer que ela foi imune de toda nódoa de pecado atual, não somente de pecado mortal, bem como de venial, graça jamais concedida a nenhum outro santo abaixo de Cristo... Ela não foi imune apenas de pecado atual, como também, por privilégio especial, foi purificada do pecado original. Convinha ser ela concebida com pecado original, porque foi concebida de união de dois sexos.” (CTh. c. 224).

Todavia, no final da sua vida, Tomás retornou à sua tese original favorável ao dogma mariano. A sua defesa encontra-se no texto Expositio super Salutatione angelicae, sermão de um período em que ele já contava 48 anos de idade, provavelmente do ano de 1273:

Ipsa enim purissima fuit et quantum ad culpam, quia ipsa virgo nec originale, nec mortale nec veniale peccatum incurrit (“Ela é, pois, puríssima também quanto à culpa, pois nunca incorreu em nenhum pecado, nem original, nem mortal ou venial”).

Este retorno à tese original encontra-se também em várias obras da época final de Tomás, como, por exemplo, na Postiila Super Psalmos de 1273, onde se lê, no comentário do Salmo 17,3: “Em Cristo a Bem-Aventurada Virgem Maria não incorreu absolutamente em nenhuma mancha ou no Salmo 18,6: Que não teve nenhuma obscuridade de pecado”.

Porém, o grande defensor da Imaculada conceição foi o Beato John Duns Scoto. A sua posição ficou bem esclarecida por Bento XVI na catequese da Audiência Geral de 7 de julho de 2011:

Na época de Duns Scoto, a maior parte dos teólogos opunha uma objeção, que parecia insuperável, à doutrina pela qual Maria Santíssima esteve isenta do pecado original desde o primeiro instante da sua conceção: de facto, a universalidade da Redenção levada a cabo por Cristo, à primeira vista, poderia parecer comprometida por uma afirmação semelhante, como se Maria não tivesse tido necessidade de Cristo e da sua redenção. Por isso, os teólogos se opunham a esta tese. Duns Scoto, então, para fazer compreender esta preservação do pecado original, desenvolveu um argumento que foi depois adotado também pelo Papa Pio IX em 1854, quando definiu solenemente o dogma da Imaculada Conceição de Maria. E este argumento é o da ‘redenção preventiva’, segundo a qual a Imaculada Conceição representa a obra de arte da Redenção realizada em Cristo, porque precisamente o poder do seu amor e da sua mediação obteve que a Mãe fosse preservada do pecado original. Portanto, Maria está totalmente redimida por Cristo, mas já antes da sua conceção. Os franciscanos, seus irmãos, acolheram e difundiram com entusiasmo esta doutrina, e os demais teólogos – frequentemente com juramento solene – se comprometeram a defendê-la e aperfeiçoá-la. (…).

Teólogos de valor, como Duns Scoto sobre a doutrina da Imaculada Conceição, enriqueceram com a sua contribuição específica de pensamento o que o Povo de Deus já acreditava espontaneamente sobre a Beatíssima Virgem, e manifestava nos atos de piedade, nas expressões da arte e, em geral, na vida cristã. Assim, a fé, tanto na Imaculada Conceição como na Assunção corporal de Nossa Senhora já estava presente no Povo de Deus, enquanto a teologia não havia encontrado ainda a chave para interpretá-la na totalidade da doutrina da fé. Portanto, o Povo de Deus precede os teólogos e tudo isso graças a esse sensus fidei sobrenatural, isto é, essa capacidade infundida pelo Espírito Santo, que capacita para abraçar a realidade da fé, com a humildade do coração e da mente. Neste sentido, o Povo de Deus é ‘magistério que precede’ e que deve ser depois aprofundado e acolhido intelectualmente pela teologia.”.

A devoção popular à Senhora da Conceição está conexa com a História de Portugal, sobretudo com os grandes eventos decisivos para a independência e identidade nacional. Aliás, nos primórdios da Nação, celebrou-se Missa pontifical de ação de graças em Lisboa, em honra da Imaculada Conceição, após a conquista da cidade aos mouros, em 1147, pelo primeiro rei, Dom Afonso Henriques, com a ajuda de cruzados. Na sequência da Crise de 1383-1385 e após a vitória em Aljubarrota (14 de agosto de 1385) contra os castelhanos, o Condestável Dom Nuno Álvares Pereira, ora São Nuno de Santa Maria mandou construir a Igreja de Nossa Senhora do Castelo, em Vila Viçosa, e fez consagrá-la a Nossa Senhora da Conceição, tendo encomendado em Inglaterra, para o efeito, uma imagem da Senhora da Conceição para ser ali venerada.

Com o decorrer do tempo, a devoção foi crescendo e criando raízes, com a fundação de muitas irmandades de Nossa Senhora da Conceição, sendo a mais antiga a da atual freguesia dos Anjos (Lisboa), que foi instituída em 1589.

Após a Restauração da Independência (1640), o Rei de Portugal,  Dom João IV, da Casa de Bragança e descendente de Dom Nuno Álvares Pereira, jurou e proclamou solenemente, por provisão régia de 25 de março de 1646, após parecer favorável das Cortes gerais de 1645-1646, que Nossa Senhora da Conceição seria a Rainha e Padroeira de Portugal e de todos os seus territórios ultramarinos. Nesta provisão régia, depois confirmada em 1671 pelo Papa Clemente X na bula “Eximia dilectissimi, declarava-se:

Estando ora juntos em Cortes com os três Estados do Reino (...) e nelas com parecer de todos, assentámos de tomar por padroeira de Nossos Reinos e Senhorios a Santíssima Virgem Nossa Senhora da Conceição... e lhe ofereço de novo em meu nome e do Príncipe Dom Teodósio, meu sobre todos muito amado e prezado filho, e de todos os meus descendentes, sucessores, Reinos, Senhorios e Vassalos à sua Santa Casa da Conceição sota em Vila Viçoza, por ser a primeira que houve em Espanha desta invocação, cinquenta escudos de ouro em cada um ano em sinal de Tributo e Vassalagem: E da mesma maneira prometemos e juramos com o Príncipe e Estados de confessar e defender sempre (até dar a vida sendo necessário) que a Virgem Maria Mãe de Deus foi concebida sem pecado original. (...) E se alguma pessoa intentar coisa alguma contra esta nossa promessa, juramento e vassalagem, por este mesmo efeito, sendo vassalo, o havemos por não natural, e queremos que seja logo lançado para fora do Reino; e se for Rei (o que Deus não permita) haja a sua e nossa maldição, e não se conte entre nossos descendentes; esperando que pelo mesmo Deus que nos deu o Reino e subiu à dignidade real, seja dela abatido e despojado.”. 

Após a proclamação, o Rei coroou a imagem de Nossa Senhora da Conceição, em Vila Viçosa, que fora encomendada por Nuno Álvares Pereira. A partir de então, em sinal de reconhecimento de que Nossa Senhora é a verdadeira Rainha e Padroeira de Portugal, os reis subsequentes não mais colocaram a coroa real na sua cabeça, sendo a coroa, em ocasiões solenes, apenas posta sobre uma almofada, ao lado direito do rei.

Também em 1646, em parte por insistência de Dom João IV e dos franciscanos, boa parte do corpo docente da Universidade de Coimbra jurou defender pública e particularmente que a Virgem Maria fora concebida sem mácula de pecado original. Posteriormente, o juramento foi estendido a todos os futuros graduados da Universidade.

Em 1654, D. João IV enviou a todas as Câmaras Municipais do Império Português cópia da inscrição comemorativa, em latim, do juramento solene prestado a 25 de março de 1646 e ordenou que a inscrição fosse gravada em pedra e colocada nas portas e lugares públicos das cidades e vilas portuguesas.

Dom João V, em 1717, em circular enviada à Universidade de Coimbra e a todos os prelados e colegiais do Reino, recomendou-lhes a celebração anual da festa da Imaculada Conceição nas suas igrejas, recordando o juramento de Dom João IV. E o rei Dom João VI, em 1818, fundou a “Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa”, de natureza honorífica.

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Após a definição dogmática em 1854, confirmada particularmente pelas Aparições da Virgem a Bernadette Soubirous (Lourdes), sob o título de “Imaculada Conceição”, surgiu em Portugal um movimento de apoio à construção dum monumento nacional que comemorasse a proclamação. Em 1869, foi erigida no Sameiro uma estátua da Virgem, a que se seguiu a ereção do santuário dedicado à Imaculada Conceição de Maria, cuja imagem foi coroada solenemente em 1904.

A origem do monumental santuário de estilo neoclássico, o primeiro fruto material português da solene definição dogmática – Braga foi a primeira cidade portuguesa a dedicar um monumento que testemunhou o regozijo do povo de Deus em terras de Santa Maria, ao ser proclamado o dogma da Imaculada Conceição –, teve origem quando, em 1863, o bracarense Padre Martinho da Silva teve a iniciativa de lançar a primeira pedra no cimo do monte para a construção dum pedestal para colocar uma estátua de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, por quem tinha grande devoção. Contudo, à medida que a afluência de peregrinos ia aumentando, tornou-se necessária a construção de algo mais expressivo que o pedestal. Assim, em 1870, ergueu-se uma capela no local com 30 metros de comprimento e 18 de largura. Porém, depressa a capela se revelou desajustada face à grande mole de pessoas que a visitavam e, por isso, em 1890, iniciou-se a construção da atual Basílica, cujas obras, tendo demorado vários anos, só terminaram em 1953. Não obstante, nos anos 70, houve a necessidade de aumentar o espaço, construindo-se a Cripta no subsolo, inaugurada a 17 de junho de 1979 e que acolhe peregrinos nalguns eventos.

Do conjunto monumental do Santuário do Sameiro destaca-se a Basílica, construída em forma de cruz latina, onde sobressaem o zimbório e duas torres que contêm o carrilhão de sinos.

No interior existe o artístico sacrário de prata cinzelada de 1,32 metros e a imagem de Nossa Senhora com a coroa de 2,5 quilogramas em ouro maciço. A imagem, obra do escultor Eugénio Maccagnani, foi trazida de Roma em 1880, depois de benzida pelo Papa Pio IX. Lateralmente ao altar-mor, sobressaem os altares do Sagrado Coração de Jesus e de São José.

O templo é rodeado por um parque arborizado, jardins, cruzeiro, fontes, capela de ex-votos e edifícios de apoio, como a Casa das Estampas, o “Ecos do Sameiro” – jornal informativo do Santuário –, a Casa do Reitor, um restaurante e as instalações sanitárias para visitantes e peregrinos. E destaca-se, ainda, o Pórtico dos Doutores, constituído por 4 esculturas que representam os doutores da Igreja: António de Lisboa, Afonso Maria de Ligório, João de Claraval e Cirilo de Alexandria. E, no topo da ampla escadaria, pontificam os monumentos ao Sagrado Coração de Jesus e a Nossa Senhora da Conceição.

O santuário tem sido enriquecido com obras de arte de várias sensibilidades artísticas e religiosas: na cripta, encontra-se o conjunto de azulejos de Querubim Lapa; o presbitério ostenta o grande painel de Oscar Casares, pintado entre 2005 e 2006, e as 4 grandes esculturas de São Miguel, São Rafael, São Gabriel e Anjo Custódio de Portugal, da autoria de Clara Meneres.

O Papa, São João Paulo II, que visitara o santuário a 15 de maio de 1982, concedeu-lhe, a 8 de dezembro de 2004, a Rosa de Ouro, distinção pontifícia atribuída a personalidades, santuários, igrejas ou cidades por serviços relevantes prestados à Igreja ou a bem da sociedade.

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E assim se testemunha por ações e obra a beleza misericordiosa da Mãe de Deus!

2020.12.07 – Louro de Carvalho  

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