Eduardo
Lourenço morreu, neste dia 1 de dezembro, em Lisboa, aos 97 anos, já se sabendo
que, às 12 horas do dia 2, no Mosteiro dos Jerónimos, haverá missa de corpo
presente concelebrada pelos cardeais Manuel Clemente e Tolentino Mendonça.
Natural de São
Pedro de Rio Seco, do concelho de Almeida, onde nasceu a 23 de maio de 1923, foi
um dos pensadores mais proeminentes e um dos eminentes vultos da cultura
portuguesa nas últimas décadas.
Neste dia do
seu óbito, é de registar que a sua obra completa, que merecerá atenta leitura
dos portugueses, tem estado a ser recolhida pela historiadora de arte italiana e
violoncelista Bárbara Aniello e será publicada pela Gradiva. E a jornalista
Cláudia Aguiar Rodrigues ouviu quem foi a sensibilidade de Eduardo Lourenço
para a música e para a pintura em geral e que seduziu Aniello para a obra do
pensador português.
O mais velho
de sete irmãos e filho de Abílio Faria, militar do exército, e de Maria de
Jesus Lourenço, frequentou a escola primária de Rio Seco e matriculou-se, primeiro
no Liceu da Guarda, depois, no Colégio Militar (em Lisboa), onde concluiu o ensino secundário em 1940.
Inscreveu-se
na Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra, de que desistiu, para
prestar provas, mais tarde, em Ciências Histórico-Filosóficas, na sua Faculdade
de Letras.
Era um dos melhores em Filosofia, não porque
repetisse as aulas como papagaio, mas por ter revelado um arguto espírito crítico
e uma ideia já autónoma, segundo a descrição que dele fez à revista Prelo o escritor e pedagogo Mário Braga.
E concluiu a licenciatura em 1946, com uma tese sobre “O Sentido da dialética no idealismo absoluto”.
No ano
seguinte, passou a lecionar como assistente e colaborador do Professor Joaquim
de Carvalho e, em 1949, com 26 anos,
reuniu parte da tese de licenciatura no 1.º volume duma obra intitulada “Heterodoxia”, “um dos mais nobres
e perturbantes discursos ensaísticos de toda a nossa história literária”, no
dizer do professor e ensaísta Eugénio Lisboa.
Antes disso,
em 1944, começara a colaborar com a revista Vértice,
publicação em que se estreou com o poema “Aceitação”,
um prelúdio de “Heterodoxia”. E foi
com “Crónicas Heterodoxas” que
colaborou também com o Diário de Coimbra,
onde conviveu com o escritor Vergílio Ferreira e seria associado a uma determinada
forma de existencialismo, influenciado por filósofos como Heidegger, Nietzsche,
Husserl, Kierkegaard e Sartre, e pela leitura de escritores como Dostoievsky,
Kafka e Camus.
No âmbito
de prémios, condecorações e distinções que lhe foram atribuídos, é de salientar:
Em 1988, o já
professor jubilado da Universidade de Nice recebeu
o Prémio Europeu de Ensaio Charles Veillon, pelo conjunto da obra, e, um
ano depois, assumiu o cargo de conselheiro cultural junto da embaixada de
Portugal em Roma, onde permaneceu até 1991. Vários prémios se sucederam,
com destaque para o Prémio Camões (1996), e o Prémio
Pessoa (2011), mas recebeu também os prémios António Sérgio (1992), Dom Dinis (1996), Vergílio Ferreira (2001),
Universidade de Lisboa (2012), Jacinto do
Prado Coelho (1986 e 2013) e Vasco
Graça Moura (2016), entre outros.
Foi galardoado
com os seguintes de ordens honoríficas: Grande Oficial da Ordem de Santiago e
Espada (1981), Grã-Cruz da Ordem do Infante Dom Henrique (1992), Grã-Cruz da Ordem de Santiago e Espada (2003) e Grã-Cruz da Ordem da Liberdade (2014). França distinguiu-o com a Ordem Nacional de Mérito (1996), a Ordem das Artes e das Letras (2000) e a Legião de Honra (2002). E, em 2008, recebeu a medalha de Mérito Cultural do Governo Português e a
Ordem de Mérito Civil de Espanha.
Doutorado Honoris Causa pelas Universidades do Rio
de Janeiro, de Bolonha, de Coimbra e Nova de Lisboa, tomou posse, a 7 de abril de 2016, como
Conselheiro de Estado, designado pelo atual Presidente da República. E,
nesse mesmo ano, venceu o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva para a Divulgação
do Património Cultural, ex-aequo com
o cartoonista francês Jean Plantureux, conhecido como Plantu.
O ensaísta era,
pois, conselheiro de Estado, professor, filósofo, escritor, crítico literário,
ensaísta e interventor cívico e foi várias vezes premiado, galardoado e
distinguido.
Em 2018 foi
protagonista e narrador da sua história no filme de Miguel Gonçalves Mendes “O Labirinto da Saudade”, que adapta a obra
homónima e traça uma viagem através da cabeça do pensador, constituindo-se como
uma “homenagem em vida” do realizador ao ensaísta, que deixa a marca da “grande originalidade” do seu pensamento
– de acordo com a página que o Centro Nacional de Cultura lhe dedicou –, e a
imagem do ensaísta que permitia “a
única reflexão inteligente sobre a política nacional”, como dizia o
poeta Herberto Helder em carta de 1978.
Apaixonado
pela literatura, referia-se aos
livros como “filhos” e dizia que “estar-se sem livros é já ter morrido”.
Mas foi sobretudo na poesia, mais que na prosa, que incidiram os seus ensaios,
de Camões a Torga, passando por Fernando Pessoa, sem nunca se deixar enfeudar
em qualquer escola de pensamento, embora as suas intervenções fossem de claros laivos
progressistas.
Em 1949, foi
para França a convite do reitor da Faculdade de Letras da Universidade de
Bordéus, com bolsa de estágio da Fundação Fulbright. E, em 1953, iniciou a carreira académica, vindo
a lecionar em diversas universidades europeias e americanas,
designadamente nas de Hamburgo e Heidelberg, na Alemanha, Montpellier, Grenoble
e Nice, em França, e na da Baía, no Brasil, entre outras.
Casou com
Annie Salamon, em Dinard, em 1954, e, a partir de 1960, passou a viver em
França. Em 1965, fixou residência em Vence, nos Alpes Marítimos, no sudeste
francês, mas manteve sempre ligação ao país de origem, refletindo sobre a
sociedade portuguesa.
O tema da
Europa e do lugar de Portugal na Europa é recorrente na obra do autor, e “O Labirinto da Saudade”, de 1978, é o
exemplo de “um discurso crítico sobre as imagens que de nós próprios temos forjado”,
no dizer do próprio autor.
Aos 95 anos,
confessou, em entrevista à agência Lusa,
que era “difícil assumir” o aniversário,
porque sabia que era “o princípio do fim”, mas que não o encarava “como uma
coisa trágica”, porque “todos estamos confrontados com essa exigência”. E
explicitava:
“A tragédia já é, em si, nós não podermos escapar àquilo que nos espera,
seria uma injustiça para todas as outras pessoas, que eram os nossos e que já
morreram, que nós não fossemos capazes de suportar aquilo que eles suportaram
quando chegou o fim deles. (…) É ir para a morte como se todos aqueles que nos
conheceram e nós amámos estivessem connosco.”.
***
As reações à
morte do sábio – anotam-se algumas – são transversais na sociedade portuguesa.
Assim, o
Presidente da República lamentou a morte de Eduardo Lourenço e agradeceu a este
“sábio” e “amigo”, que
“foi, desde o início da segunda
metade do século passado, o
nosso mais importante ensaísta e crítico, o nosso mais destacado intelectual
público”, como se lê numa nota publicada no site da Presidência, que refere, ainda, que “tendo vivido durante décadas em
França, e sendo estruturalmente francófilo, poucos foram os ‘estrangeirados’
tão obsessivos na sua relação com os temas portugueses, com a cultura,
identidade e mitologias portuguesas, com todos os seus bloqueios, mudanças e
impasses”. Por outro lado, nunca esteve “alheado dos debates do nosso tempo, nem das vicissitudes da política”,
devendo-lhe nós “algumas das leituras mais decisivas de Pessoa, que
marcam um antes e um depois, e um envolvimento, muitas vezes heterodoxo,
nas questões religiosas, filosóficas e ideológicas contemporâneas, do
existencialismo ao cristianismo conciliar e à Revolução”.
Também o
Governo decretou um dia de luto nacional e o Primeiro-Ministro lamentou a morte
do ensaísta, recordando “um amigo e camarada” com quem teve “a oportunidade de privar, de aprender muito”.
Realçou que este momento é também “um convite a conhecer a obra” de Eduardo
Lourenço e de prosseguir a reflexão que o ensaísta deixa. E sublinhou a
importância de Lourenço na reflexão sobre “os fatores da intemporalidade
nacional”, destacando o livro “Labirinto
da Saudade”, “seguramente um dos mais notáveis ensaios da ensaística
portuguesa”.
Também o
presidente da Câmara da Guarda decretou um dia de luto municipal, com bandeira
a meia haste, em homenagem ao ensaísta, a observar a 2 de dezembro.
A Ministra
da Cultura, em nota enviada às redações, distinguiu Eduardo Lourenço como “uma
das mentes mais brilhantes de Portugal” e explicitava:
“Através do nosso património literário interpretou Portugal, pensou a
Europa e interrogou o mundo, com uma liberdade e uma originalidade que o tornam
não só um dos autores centrais da literatura portuguesa, mas também um farol
cuja luz ilumina os séculos de pensamento e de cultura portuguesa”.
Jorge
Sampaio lamentou a morte de Eduardo Lourenço, frisando que “Portugal perdeu um
dos seus mais notáveis cidadãos” e, sobretudo, “o pensador das profundidades do ser e da existência, o cultor insigne
das letras, das artes e da cultura, um grande humanista da contemporaneidade,
para quem ser português era indissociável do ser europeu e vice-versa”.
O escritor
Manuel Alegre recordou o ensaísta como uma figura que “faz parte de nós”.
O sociólogo Boaventura
de Sousa Santos vincou a influência extraordinária de Eduardo Lourenço “na
maneira como concebemos e entendemos Portugal depois do 25 de Abril e a nossa
relação com a Europa”.
Francisco
Louçã, referindo-se ao interventor “heterodoxo impenitente”, diz:
“Faltará sempre a sua conversa e inquietação, a pergunta sobre o brilho
dos olhos daquela pessoa, o gesto de abrir os seus jornais diários franceses, a
curiosidade sobre o mundo”.
E Pedro
Mexia, falando da afabilidade, timidez,
curiosidade, modéstia, ironia, generosidade do Professor Eduardo
Lourenço e frisando, no seu arquivo, “o espólio atento, interrogativo,
inquieto, a gaveta igual à obra, a obra igual ao homem”, afirma:
“Ensinou-nos o que ficou nos livros, o que fica dos livros. Mas com o
seu exemplo aprendemos que é possível que a inteligência não degrade as virtudes
antigas, como aquela comum decência que, segundo Camus, vem antes de qualquer
ideia abstrata, por mais que essas ideias nos confortem e nos transformem”.
Miguel Real,
o autor da obra “Eduardo Lourenço e a
cultura portuguesa”, recorda o papel que o notável ensaísta teve no país.
Em Rio Seco
é com orgulho que recordam esta figura da terra que não esqueceu as suas raízes.
***
Em tempo de
mediocridade reinante, é justo e talvez proveitoso destacar um vulto que marcou
o nosso devir coletivo e apelar que se modelem e venham ao de cima outros
perfis de sábios, cordatos e interpelativos. E quer-me parecer que os há, mas a
sociedade tem dificuldade em lhes dar vez e voz e lhes reconhecer o espaço de
que precisam para que nós aprendamos com eles.
2020.12.01 – Louro de Carvalho
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