terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Faleceu o egrégio pensador e ensaísta Eduardo Lourenço

 

Eduardo Lourenço morreu, neste dia 1 de dezembro, em Lisboa, aos 97 anos, já se sabendo que, às 12 horas do dia 2, no Mosteiro dos Jerónimos, haverá missa de corpo presente concelebrada pelos cardeais Manuel Clemente e Tolentino Mendonça.

Natural de São Pedro de Rio Seco, do concelho de Almeida, onde nasceu a 23 de maio de 1923, foi um dos pensadores mais proeminentes e um dos eminentes vultos da cultura portuguesa nas últimas décadas. 

Neste dia do seu óbito, é de registar que a sua obra completa, que merecerá atenta leitura dos portugueses, tem estado a ser recolhida pela historiadora de arte italiana e violoncelista Bárbara Aniello e será publicada pela Gradiva. E a jornalista Cláudia Aguiar Rodrigues ouviu quem foi a sensibilidade de Eduardo Lourenço para a música e para a pintura em geral e que seduziu Aniello para a obra do pensador português.

O mais velho de sete irmãos e filho de Abílio Faria, militar do exército, e de Maria de Jesus Lourenço, frequentou a escola primária de Rio Seco e matriculou-se, primeiro no Liceu da Guarda, depois, no Colégio Militar (em Lisboa), onde concluiu o ensino secundário em 1940.

Inscreveu-se na Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra, de que desistiu, para prestar provas, mais tarde, em Ciências Histórico-Filosóficas, na sua Faculdade de Letras.

Era um dos melhores em Filosofia, não porque repetisse as aulas como papagaio, mas por ter revelado um arguto espírito crítico e uma ideia já autónoma, segundo a descrição que dele fez à revista Prelo o escritor e pedagogo Mário Braga. E concluiu a licenciatura em 1946, com uma tese sobre “O Sentido da dialética no idealismo absoluto”.

No ano seguinte, passou a lecionar como assistente e colaborador do Professor Joaquim de Carvalho e, em 1949, com 26 anos, reuniu parte da tese de licenciatura no 1.º volume duma obra intitulada “Heterodoxia, “um dos mais nobres e perturbantes discursos ensaísticos de toda a nossa história literária”, no dizer do professor e ensaísta Eugénio Lisboa.

Antes disso, em 1944, começara a colaborar com a revista Vértice, publicação em que se estreou com o poema “Aceitação”, um prelúdio de “Heterodoxia”. E foi com “Crónicas Heterodoxas” que colaborou também com o Diário de Coimbra, onde conviveu com o escritor Vergílio Ferreira e seria associado a uma determinada forma de existencialismo, influenciado por filósofos como Heidegger, Nietzsche, Husserl, Kierkegaard e Sartre, e pela leitura de escritores como Dostoievsky, Kafka e Camus.

No âmbito de prémios, condecorações e distinções que lhe foram atribuídos, é de salientar:

Em 1988, o já professor jubilado da Universidade de Nice recebeu o Prémio Europeu de Ensaio Charles Veillon, pelo conjunto da obra, e, um ano depois, assumiu o cargo de conselheiro cultural junto da embaixada de Portugal em Roma, onde permaneceu até 1991. Vários prémios se sucederam, com destaque para o Prémio Camões (1996), e o Prémio Pessoa (2011), mas recebeu também os prémios António Sérgio (1992), Dom Dinis (1996), Vergílio Ferreira (2001), Universidade de Lisboa (2012), Jacinto do Prado Coelho (1986 e 2013) e Vasco Graça Moura (2016), entre outros.

Foi galardoado com os seguintes de ordens honoríficas: Grande Oficial da Ordem de Santiago e Espada (1981), Grã-Cruz da Ordem do Infante Dom Henrique (1992), Grã-Cruz da Ordem de Santiago e Espada (2003) e Grã-Cruz da Ordem da Liberdade (2014). França distinguiu-o com a Ordem Nacional de Mérito (1996), a Ordem das Artes e das Letras (2000) e a Legião de Honra (2002). E, em 2008, recebeu a medalha de Mérito Cultural do Governo Português e a Ordem de Mérito Civil de Espanha.

Doutorado Honoris Causa pelas Universidades do Rio de Janeiro, de Bolonha, de Coimbra e Nova de Lisboa, tomou posse, a 7 de abril de 2016, como Conselheiro de Estado, designado pelo atual Presidente da República. E, nesse mesmo ano, venceu o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva para a Divulgação do Património Cultural, ex-aequo com o cartoonista francês Jean Plantureux, conhecido como Plantu.

O ensaísta era, pois, conselheiro de Estado, professor, filósofo, escritor, crítico literário, ensaísta e interventor cívico e foi várias vezes premiado, galardoado e distinguido.

Em 2018 foi protagonista e narrador da sua história no filme de Miguel Gonçalves Mendes “O Labirinto da Saudade”, que adapta a obra homónima e traça uma viagem através da cabeça do pensador, constituindo-se como uma “homenagem em vida” do realizador ao ensaísta, que deixa a marca da “grande originalidade” do seu pensamento – de acordo com a página que o Centro Nacional de Cultura lhe dedicou –, e a imagem do ensaísta que permitia “a única reflexão inteligente sobre a política nacional”, como dizia o poeta Herberto Helder em carta de 1978.

Apaixonado pela literatura, referia-se aos livros como “filhos” e dizia que “estar-se sem livros é já ter morrido”. Mas foi sobretudo na poesia, mais que na prosa, que incidiram os seus ensaios, de Camões a Torga, passando por Fernando Pessoa, sem nunca se deixar enfeudar em qualquer escola de pensamento, embora as suas intervenções fossem de claros laivos progressistas.

Em 1949, foi para França a convite do reitor da Faculdade de Letras da Universidade de Bordéus, com bolsa de estágio da Fundação Fulbright. E, em 1953, iniciou a carreira académica, vindo a lecionar em diversas universidades europeias e americanas, designadamente nas de Hamburgo e Heidelberg, na Alemanha, Montpellier, Grenoble e Nice, em França, e na da Baía, no Brasil, entre outras.

Casou com Annie Salamon, em Dinard, em 1954, e, a partir de 1960, passou a viver em França. Em 1965, fixou residência em Vence, nos Alpes Marítimos, no sudeste francês, mas manteve sempre ligação ao país de origem, refletindo sobre a sociedade portuguesa.

O tema da Europa e do lugar de Portugal na Europa é recorrente na obra do autor, e “O Labirinto da Saudade”, de 1978, é o exemplo de “um discurso crítico sobre as imagens que de nós próprios temos forjado”, no dizer do próprio autor.

Aos 95 anos, confessou, em entrevista à agência Lusa, que era “difícil assumir” o aniversário, porque sabia que era “o princípio do fim”, mas que não o encarava “como uma coisa trágica”, porque “todos estamos confrontados com essa exigência”. E explicitava:

A tragédia já é, em si, nós não podermos escapar àquilo que nos espera, seria uma injustiça para todas as outras pessoas, que eram os nossos e que já morreram, que nós não fossemos capazes de suportar aquilo que eles suportaram quando chegou o fim deles. (…) É ir para a morte como se todos aqueles que nos conheceram e nós amámos estivessem connosco.”.

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As reações à morte do sábio – anotam-se algumas – são transversais na sociedade portuguesa.

Assim, o Presidente da República lamentou a morte de Eduardo Lourenço e agradeceu a este “sábio” e “amigo”, que “foi, desde o início da segunda metade do século passado, o nosso mais importante ensaísta e crítico, o nosso mais destacado intelectual público”, como se lê numa nota publicada no site da Presidência, que refere, ainda, que “tendo vivido durante décadas em França, e sendo estruturalmente francófilo, poucos foram os ‘estrangeirados’ tão obsessivos na sua relação com os temas portugueses, com a cultura, identidade e mitologias portuguesas, com todos os seus bloqueios, mudanças e impasses”. Por outro lado, nunca esteve “alheado dos debates do nosso tempo, nem das vicissitudes da política”, devendo-lhe nós “algumas das leituras mais decisivas de Pessoa, que marcam um antes e um depois, e um envolvimento, muitas vezes heterodoxo, nas questões religiosas, filosóficas e ideológicas contemporâneas, do existencialismo ao cristianismo conciliar e à Revolução”.

Também o Governo decretou um dia de luto nacional e o Primeiro-Ministro lamentou a morte do ensaísta, recordando “um amigo e camarada” com quem teve “a oportunidade de privar, de aprender muito”. Realçou que este momento é também “um convite a conhecer a obra” de Eduardo Lourenço e de prosseguir a reflexão que o ensaísta deixa. E sublinhou a importância de Lourenço na reflexão sobre “os fatores da intemporalidade nacional”, destacando o livro “Labirinto da Saudade”, “seguramente um dos mais notáveis ensaios da ensaística portuguesa”.

Também o presidente da Câmara da Guarda decretou um dia de luto municipal, com bandeira a meia haste, em homenagem ao ensaísta, a observar a 2 de dezembro.

A Ministra da Cultura, em nota enviada às redações, distinguiu Eduardo Lourenço como “uma das mentes mais brilhantes de Portugal” e explicitava:

Através do nosso património literário interpretou Portugal, pensou a Europa e interrogou o mundo, com uma liberdade e uma originalidade que o tornam não só um dos autores centrais da literatura portuguesa, mas também um farol cuja luz ilumina os séculos de pensamento e de cultura portuguesa”.

Jorge Sampaio lamentou a morte de Eduardo Lourenço, frisando que “Portugal perdeu um dos seus mais notáveis cidadãos” e, sobretudo, “o pensador das profundidades do ser e da existência, o cultor insigne das letras, das artes e da cultura, um grande humanista da contemporaneidade, para quem ser português era indissociável do ser europeu e vice-versa”.

O escritor Manuel Alegre recordou o ensaísta como uma figura que “faz parte de nós”.

O sociólogo Boaventura de Sousa Santos vincou a influência extraordinária de Eduardo Lourenço “na maneira como concebemos e entendemos Portugal depois do 25 de Abril e a nossa relação com a Europa”.

Francisco Louçã, referindo-se ao interventor “heterodoxo impenitente”, diz:

Faltará sempre a sua conversa e inquietação, a pergunta sobre o brilho dos olhos daquela pessoa, o gesto de abrir os seus jornais diários franceses, a curiosidade sobre o mundo”. 

E Pedro Mexia, falando da afabilidade, timidez, curiosidade, modéstia, ironia, generosidade do Professor Eduardo Lourenço e frisando, no seu arquivo, “o espólio atento, interrogativo, inquieto, a gaveta igual à obra, a obra igual ao homem”, afirma:

Ensinou-nos o que ficou nos livros, o que fica dos livros. Mas com o seu exemplo aprendemos que é possível que a inteligência não degrade as virtudes antigas, como aquela comum decência que, segundo Camus, vem antes de qualquer ideia abstrata, por mais que essas ideias nos confortem e nos transformem”.

Miguel Real, o autor da obra “Eduardo Lourenço e a cultura portuguesa”, recorda o papel que o notável ensaísta teve no país.

Em Rio Seco é com orgulho que recordam esta figura da terra que não esqueceu as suas raízes.

***

Em tempo de mediocridade reinante, é justo e talvez proveitoso destacar um vulto que marcou o nosso devir coletivo e apelar que se modelem e venham ao de cima outros perfis de sábios, cordatos e interpelativos. E quer-me parecer que os há, mas a sociedade tem dificuldade em lhes dar vez e voz e lhes reconhecer o espaço de que precisam para que nós aprendamos com eles.

2020.12.01 – Louro de Carvalho

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