quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

No termo dum ano tão difícil, vale a pena exprimir gratidão a Deus

 

Não é para esquecer o ano de 2020 em que o SARS-CoV-2 pôs o mundo inteiro em sentido, mesmo com o ceticismo inicial de alguns sobre a periculosidade deste novo coronavírus. Na verdade, com celeridade inédita, a covid-19 tornou-se pandemia, que mostrou a fragilidade dos sistemas de saúde que os decisores políticos, levados por interesses vários e ideologias pró-capitalistas foram depauperando ao longo dos anos.

Para combater, suster, conter e mitigar o vírus, os governos vêm impondo confinamento geral ou parcial, declarando situações de alerta, contingência, calamidade pública e, mesmo, decretando declaração de estado de emergência, com restrições à circulação, condicionamento do regime de trabalho, encerramento de estabelecimentos, suspensão do trabalho escolar, supressão de atos públicos de culto, catequeses atividades similares, condicionamento da iniciativa privada, eventual requisição civil, diminuição dos direitos dos trabalhadores, isolamento profilático, recolher obrigatório. Perderam-se muitas vidas humanas e outras ficaram com sequelas, diminuiu o rendimento e a produtividade, aumentou a precariedade, cresceu o desemprego, os estabelecimentos de saúde não afetos à covid-19 pararam. A covid-19, qual eucalipto secador, obnubilou as demais comorbidades. Muitos faleceram e foram sepultados em condições de quase clandestinidade sem que a família pudesse fazer luto com um mínimo de dignidade. Os Estados tiveram de fazer um esforço sobre-humano para compensar perdas de trabalho e diminuição de produção nas empresas. Enfim, havia que responder à crise sistémica que a pandemia criou ou que pôs a nu. E tomaram-se medidas nem sempre proporcionadas.

Entretanto, depois de as diversas estruturas serem convidadas a refazer os seus espaços físicos de acordo com as novas regras de segurança, timidamente foi-se regressando à atividade económica, escolar, cultual e catequética, bem como à prestação das diversas valências da saúde, mas as artes, a cultura e o desporto levaram tempo a reerguer-se e as unidades de saúde familiar, que prestam os cuidados primários de saúde, fazem esperar os utentes fora de portas suportando a intempérie e abusam dos consultas por telefone, dificilmente funcionando este por iniciativa dos utentes. Voltamos – talvez para ficar e bem – ao sistema do guichê protetor do funcionário e do utente, herdado da pandemia de 1918 e abolido irresponsavelmente.

Todavia, a crise tornou-se oportunidade de enriquecimento de alguns por meios legítimos, por saberem reconverter a sua atividade no todo ou em parte, e de outros, por oportunismo negocial e açambarcador de meios e recursos. Mesmo a descoberta de vacinas em tempo record prosseguiu na lógica da concorrência, em vez da lógica da convergência, levando ao enriquecimento fabulosos de uns tantos. Porém, neste aspeto a ciência marcou pontos.

A par de tudo isto, registam-se fenómenos de resposta à crise, sobretudo em termos da atenção às pessoas. Instituições de solidariedade como as Cáritas ou outras associações humanitárias, militares, forças de segurança, autarquias, confissões religiosas multiplicaram-se em atos de solidariedade, ajudando pessoas e famílias carenciadas, muitas das quais tinham antes vida estabilizada, obviando à solidão de pessoas idosas ou das que tiveram que entrar em quarentena ou isolamento profilático, procedendo a compras e respetiva entrega, levando comida e ajudando alunos sem computador ou acesso à Internet para acompanhar as aulas online.

Helena Gouveia, diretora de marketing da IKEA Portugal, disse ao Expresso deste dia 31 de dezembro que o impacto da pandemia promoveu claramente o “crescimento da importância da casa como um todo”, transformando-a muito “rapidamente em escola, escritório, ginásio, espaço de brincadeira e de descanso”. Na verdade, como escreve Raquel Albuquerque, aumentou a entrega de comida “à porta” e as “refeições cozinhadas em casa” ou o serviço de take away; encheram-se os cestos de compras “de carne e peixe, legumes e frutas, massas e arroz”. E a casa teve mais “utensílios de cozinha, frascos e decorações, plantas e hortas”, bem como “mais pijamas, meias e chinelos, mais secretárias, cadeiras e candeeiros, mais sofás e poltronas”, “além de cimento e tintas para pequenas obras”.  

Porém, isto não se cingiu ao confinamento da primavera. Surgiu mesmo uma alteração de hábitos, havendo mais portugueses a comprar online, a trabalhar a partir de casa, a andar de bicicleta, a fazer exercício físico na rua e a procurar casas com terraços e/ou com maiores dimensões, assim como automóveis topo de gama e caravanas. Na verdade, muitas pessoas sentiram-se encaixotadas no confinamento (apartamentos sobrelotados fautores da contaminação, a par dos locais de trabalho), enquanto outras que se sentiram encaixilhadas, pois contactavam com o mundo.

Outro fator de mudança foi a generalização do teletrabalho, que teve papel central no regime laboral, mas que precisa de ser regulado para não se transformar num encargo adicional para os trabalhadores nem constituir uma sobrecarga de trabalho para os mesmos pelo excesso de conteúdo, extrapolação de horário e vigilância sem rosto. Segundo um estudo do grupo Ageas e Eurogroup Consulting Portugal, a maioria daquele “mais de um milhão de portugueses” que “foi trabalhar para casa em março e menos de metade voltou ao escritório entretanto”, “quer permanecer assim, sobretudo se for num modelo misto.

Também as escolas tiveram de se reinventar e ministrar aulas online e através da nova telescola, a que se recorrerá em regime absoluto quando e enquanto for necessário e permanecerá em regime de complementaridade. Na verdade, em termos educativos, nada há como o encontro presencial: o resto é um simples remedeio.

O ano fica, pois, marcado pelo grande impulso dado às compras online e às entregas em casa. Com efeito, a pandemia acelerou a digitalização e “criou o hábito na maioria dos portugueses de comprar online”.

Os portugueses não esqueceram o desporto. Assim, como refere Jorge Simões, diretor de marketing da Sport Zone, “todos os produtos relacionados com a prática de exercício físico em casa foram mais procurados”. Por outro lado, há mais desporto na rua que em ginásio. E as bicicletas foram uma das grandes redescobertas do ano: às cicloficinas chegaram muitos pedidos de arranjos, até de estafetas de distribuição de comida; e já há novos espaços para abrir. Com efeito, há mais passeios e mais deslocações em alternativa ao automóvel.

Posto isto, importa justificar o porquê da gratidão.

Além das descobertas positivas que a pandemia fez aflorar, algumas por via da generalização e muitas outras por via da generosidade solidária, como se entrelê acima, e dos diversos gabinetes de atendimento telefónico personalizado e até apoio psicológico, criados por tantas instituições públicas e privadas, é de referir que o Primeiro-Ministro elencou umas quantas razões de gratidão na sua mensagem de Natal, que devemos assumir: a grande “capacidade de adaptação e sacrifício, determinação e disciplina com que todos os portugueses têm coletivamente enfrentado a pandemia”; a prestação de “assistência a quem dela mais necessita” por parte de “funcionários de lares ou da Segurança Social, militares das Forças Armadas ou elementos das Forças de Segurança”; a “mobilização da comunidade científica”; o trabalho dos professores, que “nunca abandonaram os seus alunos, mesmo quando as escolas tiveram de encerrar”; a garantia de que nada de essencial “nos tenha faltado” por parte de “todos os que, ininterruptamente desde março, mantiveram o país a funcionar”, “na agricultura, na indústria e no comércio”; e o trabalho dedicado dos profissionais de saúde, “que dia e noite dão o seu melhor para tratar quem está doente, tantas vezes com sacrifício de folgas, tempo de descanso e contacto com a sua própria família”.

A nível dos crentes, é de realçar o esforço de adaptação às regras sanitárias aquando da reposição da ação cultual e catequética e sobretudo o esforço da reinvenção e utilização dos diversos meios de comunicação com que alimentam a fé das pessoas, o sentido da comunidade e a profundidade dos mistérios a celebrar, bem como as catequeses quanto possível. Ficam na retina gestos como a Bênção do SS. mo Sacramento no tabuleiro superior da Ponte Dom Luís, no Porto, ou à porta da Sé Patriarcal de Lisboa, no domingo de Páscoa, a Consagração ao Coração de Jesus e de Maria na Basílica de Nossa Senhora do Rosário de Fátima pelo Cardeal Marto em nome de 22 conferências episcopais, a 25 de março, e, sobretudo, o momento de oração protagonizado pelo Papa na Praça de São Pedro totalmente desprovida da presença física de pessoas, a 27 de março, e a bênção Urbi et Orbi em domingo de Páscoa, da Basílica Vaticana.

A par da rarefação dos réditos das instituições eclesiais (dioceses, paróquias, associações, movimentos e santuários), não podemos olvidar factos notáveis como o desenvolvimento do ano da encíclica Laudato Si, por ocasião do 5.º aniversário da sua publicação; o simpósio online “Economia de Francisco”; a encíclica Fratelli tutti, sobre a fraternidade e a amizade social; a convocação do Ano de São José e do Ano Especial Família “Amoris Laetitia” – tudo com inspiração no dever do cuidado, da Criação, das pessoas e das famílias.

Por tudo isto e porque devemos a Deus o dom da vida e da graça, pois Ele não nos abandona, várias Igrejas organizam celebrações neste dia final do ano, em que se entoa “Te Deum Laudamus” em louvor e ação de graças ao Deus que nos cria, redime e eleva. Já se procedeu a várias celebrações vespertinas da Eucaristia em honra da Santa Mãe de Deus. E Eucaristia é, sobretudo, ação de graças e pedido de bênção, contexto em que se oferece o Santo Sacrifício e se realiza o banquete dos filhos de Deus ansiando pela Páscoa do fim dos tempos.

E, no Vaticano, apesar de o Papa não poder presidir às celebrações desta noite de 31 de dezembro e da manhã do dia 1.º de janeiro no altar da Cátedra devido a uma dolorosa ciatalgia, a celebração das Primeiras Vésperas, Te Deum e Bênção com o Santíssimo Sacramento foi presidida pelo Cardeal Giovanni Battista Re, Decano do Colégio dos Cardeais, que leu a homilia de Francisco; a Santa Missa da Solenidade de Maria Santíssima Mãe de Deus será presidida pelo Cardeal Pietro Parolin, Secretário de Estado; e o Santo Padre fará a oração do Angelus na Biblioteca do Palácio Apostólico, conforme previsto.               

Enfim, Deo gratias e muita esperança para o próximo ano!

2020.12.31 – Louro de Carvalho

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