domingo, 27 de dezembro de 2020

Ele está mais perto de nós que nós de nós mesmos

 

No coração da oitava do Natal, a Liturgia celebra a Sagrada Família: Jesus, Maria e José. Na verdade, o nascimento de Jesus surge na moldura familiar com Maria e José, marcada pela humildade, tribulação e justiça, e que os artistas nos têm apresentado como o tipo apolíneo da beleza e da intangibilidade.

Porém, esta família em que Deus nasce na pessoa de Jesus de Nazaré é tudo menos família cor-de-rosa. A mãe concebera o filho quando ainda não casada; José, ao saber da gravidez da noiva, pensou em deixá-la em segredo, para não a difamar; o parto ocorreu fora da terra de residência e num estábulo, sem um mínimo de conforto; após da adoração dos magos, teve a família que se refugiar no Egito; o esposo de Maria morreu, cumprida a missão educacional; a mãe viu o filho apodado de louco porque ensinava doutrina diferente da dos doutores da Lei e viu-o condenado à morte de cruz no auge da vida terrena. Não obstante, esta é a Sagrada Família e a que nos é dada por modelo. Com efeito, para lá das tribulações, soube escutar a voz de Deus. Maria concebeu segundo o anúncio do anjo por vontade e obra, não de homem, mas de Deus; José foi posto fora da angústia porque o anjo explicou o mistério de que Maria era portadora como obra do Espírito Santo no cumprimento da promessa plasmada nas Escrituras; a família parte para o Egito e regressa conduzida por José e à voz do anjo, no primeiro momento, para escapar à sanha assassina de Herodes e, no segundo, para poder viver na tranquilidade da sua terra e concretizar a preparação do menino para a vida adulta e a pregação do Evangelho de Deus, segundo o desígnio até agora oculto, mas que Nele se tornou projeto audível e visível para os homens.    

Assim, enquanto dispomos do nosso olhar contemplativo para esta Família Sagrada, pela obediência à voz de Deus e pelo cultivo do amor que tudo suporta, somos convidados a perceber e concretizar a forte sensibilidade familiar que, no dizer de São Paulo VI, quando visitou Nazaré em 1974, nos dá três lições – a do silêncio orante, a da perceção da família como fulcro do crescimento e a do trabalho – e fazer a celebração festiva do nosso viver em família.

A perícopa evangélica assumida nesta liturgia (Lc 2,22-40) apresenta-nos a cena familiar da apresentação de Jesus no Templo de Jerusalém como pretexto para, em jeito de catequese bem amadurecida e bem refletida, nos dizer quem é Jesus e qual a sua missão no mundo.

Antes de mais, ressalta a fidelidade desta família à Lei do Senhor, deixando claro que Jesus, desde o início da sua caminhada entre os homens, viveu fiel ao mandamento do Pai. Com efeito, a sua missão no mundo passa pelo cumprimento da vontade do Pai.

Sobressai no cenário o velhinho Simeão (nome que significa “Escutador”), que vive atentamente à escuta e que o Evangelho apresenta como homem justo e piedoso, que esperava a consolação de Israel. E, porque vivia de coração vigilante, veio ao Templo sob a moção do Espírito (en tô pneúmati), não por qualquer outra fonte de energia e alegria, antiga ou moderna. Porém, nós tendemos a falar a todo o tempo sem deixar vez e voz ao Espírito. E Jesus adverte: “Não sois vós que falais, mas o Espírito Santo(Mc 13,11; cf. Mt 10,20; Lc 12,12). Logo, há que esperar como Simeão, que entoa o canto feliz do entardecer da vida, um dos mais belos cantos bíblicos:

Agora, Senhor, deixas o teu servo partir em paz, porque os meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos, Luz que vem iluminar as nações e glória do teu povo, Israel!” (Lc 2,29-32).

As suas palavras e gestos são bem sugestivos. Toma carinhosamente Jesus nos braços – os Padres gregos dão a Simeão o título de Theodókhos (“recebedor de Deus”)e apresenta-O ao mundo, definindo-O como “a salvação” que Deus oferece “a todos os povos”, “luz para se revelar às nações e glória de Israel”. Jesus é, assim, reconhecido pelo Israel fiel como o Messias libertador e salvador que Deus enviou – não só ao seu povo, mas a todos os povos da terra.

Aqui desponta um dos temas muito queridos a Lucas: a universalidade da salvação de Deus. Deus não tem já um Povo eleito, mas a sua salvação é para todos os povos, independentemente das raças, culturas, fronteiras e esquemas religiosos. As palavras que Simeão dirige a Maria (“este menino foi estabelecido para que muitos caiam ou se levantem em Israel e para ser sinal de contradição; e uma espada trespassará a tua alma”) aludem à divisão que a obra de Jesus provocará em Israel e ao resultado dessa divisão – o drama da cruz.

Paralelamente, aparece a profetiza Ana (que significa “Graça”), uma velhinha carregada de graça e de esperança e também sintonizada com a Palavra de Deus escutada, vivida e anunciada. E diz o texto que era filha de Fanuel (que significa “Rosto de Deus”) e da tribo de Aser (que quer dizer “Felicidade”). Também ela, serena e feliz, com 84 anos (número perfeito de números perfeitos: 7 x 12), teve a graça de ver o Menino e “falava daquele Menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém(Lc 2,38).

Vemos então que, no Templo, duas personalidades acolhem Jesus – Simeão e Ana – que representam esse Israel fiel que espera ansiosamente a sua libertação e a restauração do reinado de Deus sobre o seu Povo. Simeão esperava e Ana anunciava. Nestes dois maravilhosos velhinhos espelha-se a Escritura dos dois Testamentos e o retrato a corpo inteiro do Consagrado, que, na Bíblia hebraica, se diz Nazîr, nome passivo e recetivo do totalmente dedicado a Deus, conduzido por Deus, “compondo” com emoção os acontecimentos de Deus no seu coração.

O termo grego utilizado por Lucas para falar de libertação é “lýtrôsis(“resgate”), que surge no Êxodo para falar da libertação da escravidão do Egito (cf Ex 13,13-15; 34,20; Nm 18,15-16). Jesus é, assim, apresentado como o Messias libertador, que guiará o seu Povo do domínio da escravidão para o domínio da liberdade. A apresentação no Templo dum primogénito celebrava a libertação do Egito e a passagem da escravidão para a liberdade (cf Ex 13,11-16).

O texto termina com uma referência ao resto da infância de Jesus e ao crescimento do menino em “sabedoria” (sophía) e “graça” (kháris) – atributos vindos do Pai, que atestam a sua divindade.

Em conclusão: Jesus é o Deus que vem ao encontro dos homens com uma missão que lhe foi confiada pelo Pai. O objetivo de Jesus é cumprir integralmente o projeto do Pai: levar os homens da escravidão para a liberdade e apresentar o desígnio de salvação de Deus a todos os povos da terra, mesmo aos que não pertencem tradicionalmente à comunidade do Povo de Deus.

Simeão e Ana viram a Luz e exultaram de Alegria. Hoje somos nós quem se chama Simeão e Ana, pois recebemos a Luz nos braços fazemos parte da família da felicidade e vivemos pertinho de Deus, face a face com Deus, escutando atenta e vigilantemente o bater do coração de Deus, movidos pelo Espírito de Deus, recebedores de Deus, anunciadores de Deus.

No quadro da temática da família, o Antigo Testamento traz-nos dois trechos sapienciais do Livro de Ben Sirah (Sir 3,3-7.14-17a), que nos convida ao amor dedicado aos pais, para que o Senhor ponha sobre nós o seu olhar de bondade, sendo “honrar” a palavra que preside a este conjunto de conselhos do “sábio” Ben Sirah (repete-se 5 vezes, nestes versículos).

O termo leva-nos ao Decálogo do Sinai (“honra teu pai e tua mãe” – Ex 20,12). É usado o verbo “kabad”, traduzível por “dar glória”, “dar peso”, “dar importância”. Assim, “honrar os pais” é dar-lhes o devido valor e reconhecer a sua importância, pois são os instrumentos de Deus, fonte de vida. Este reconhecimento dos pais como os instrumentos pelos quais Deus nos concede a vida deve levar os filhos à gratidão, que não é só uma declaração de intenções, mas um sentimento que implica atitudes práticas, como ampará-los na velhice e não os desprezar nem abandonar; assisti-los materialmente – sem inventar qualquer desculpa – quando já não podem trabalhar (cf Mc 7,10-11); não fazer nada que os desgoste; escutá-los, ter em conta as suas orientações e conselhos; ser indulgente para com as limitações da idade ou da doença…

Como recompensa desta atitude de “honrar os pais”, Jesus Ben Sira promete o perdão dos pecados, a alegria, a vida longa e a atenção de Deus.

E o apóstolo Paulo (Col 3,12-21) propõe-nos viver em família revestidos do “Homem Novo”, ou seja, cultivando aquele conjunto de virtudes que resultam da união com Cristo: misericórdia, bondade, humildade, mansidão, paciência – com especial lugar para o perdão das ofensas –, a exemplo de Cristo que sempre manifestou a sua imensa capacidade de perdoar. Trata-se de exigências e manifestações da caridade, que é a fonte de onde brotam todas as virtudes do cristão. É certo que também os gregos enumeravam como exigência do viver humano uma série de virtudes. Porém, em Paulo e segundo o Evangelho, estas virtudes, porque resultantes da íntima relação do crente com Cristo, levam à verdade, à universalidade, à totalidade, à radicalidade. Assim, a humildade implica o respeito e cultivo da dignidade total em nós e nos outros, não podendo nós querer ser superiores a alguém, nem fingir pequenez para que nos engrandeçam; o perdão é para aplicar sempre e para com todos. Enfim, viver “em Cristo” implica viver, como Ele, no amor total, no serviço, na disponibilidade, no dom da vida, num dinamismo de amor não autossatisfatório, mas num amor oblativo, nada interesseiro e nada narcisista, mas extensivo a todos, os de perto e os de longe, sem distinção de amigos e inimigos.  

Aplicando o ideal da vida cristã ao âmbito concreto da vida familiar, o apóstolo faz recomendações específicas a cada elemento da família: à esposa, o respeito para com o marido (a submissão, que não sujeição, linguagem epocal, deve ser percebida como concórdia); ao marido, o amor à esposa, contra o domínio tirânico sobre ela; aos filhos, a obediência aos pais; aos pais, com intuição pedagógica, a firmeza e moderação para com os filhos, para não impedirem o normal desenvolvimento das suas capacidades e favorecerem a autonomia. Para todos, a “caridade” (“agapê”) – entendida como amor de doação, de entrega, a exemplo de Jesus que amou até ao dom da vida – que deve presidir às relações entre os membros da família.

É desta forma que, no espaço familiar, se manifesta o Homem Novo, o homem transformado por Cristo e que vive segundo Cristo.

E, considerando os sobreditos predicados paulinos como os vestidos próprios para a festa, mas que não se compram num pronto-a-vestir, diz o Bispo de Lamego, Dom António Couto, que “nesta época de bastante consumismo, convém que nunca nos esqueçamos de Deus, pois é Ele, e só Ele, que veste carinhosamente o coração e as entranhas dos seus filhos”.

Distraídos não damos conta de Deus em nós, nem de nós. A alienação de nós e da família, feita e regada no amor, vínculo de perfeição, afasta-nos de nós. E é porque nunca Se desligou do efetivo e afetivo laço familiar dentro de Si e para os homens, que enche do seu amor, que Ele está connosco e teima em fazer-Se Natal redentor nos corações. E é pelo amor total, feito dádiva generosa, que Ele não Se distrai e está em nós, mais perto do que nós pensamos e sentimos.

2020.12.27 – Louro de Carvalho

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