No coração da oitava do Natal, a Liturgia celebra a
Sagrada Família: Jesus, Maria e José. Na verdade, o nascimento de Jesus surge
na moldura familiar com Maria e José, marcada pela humildade, tribulação e
justiça, e que os artistas nos têm apresentado como o tipo apolíneo da beleza e
da intangibilidade.
Porém, esta família em que Deus nasce na pessoa de
Jesus de Nazaré é tudo menos família cor-de-rosa. A mãe concebera o filho quando
ainda não casada; José, ao saber da gravidez da noiva, pensou em deixá-la em
segredo, para não a difamar; o parto ocorreu fora da terra de residência e num estábulo,
sem um mínimo de conforto; após da adoração dos magos, teve a família que se
refugiar no Egito; o esposo de Maria morreu, cumprida a missão educacional; a
mãe viu o filho apodado de louco porque ensinava doutrina diferente da dos
doutores da Lei e viu-o condenado à morte de cruz no auge da vida terrena. Não obstante,
esta é a Sagrada Família e a que nos é dada por modelo. Com efeito, para lá das
tribulações, soube escutar a voz de Deus. Maria concebeu segundo o anúncio do
anjo por vontade e obra, não de homem, mas de Deus; José foi posto fora da angústia
porque o anjo explicou o mistério de que Maria era portadora como obra do
Espírito Santo no cumprimento da promessa plasmada nas Escrituras; a família
parte para o Egito e regressa conduzida por José e à voz do anjo, no primeiro
momento, para escapar à sanha assassina de Herodes e, no segundo, para poder
viver na tranquilidade da sua terra e concretizar a preparação do menino para a
vida adulta e a pregação do Evangelho de Deus, segundo o desígnio até agora
oculto, mas que Nele se tornou projeto audível e visível para os homens.
Assim, enquanto dispomos do nosso olhar contemplativo
para esta Família Sagrada, pela obediência à voz de Deus e pelo cultivo do amor
que tudo suporta, somos convidados a perceber e concretizar a forte sensibilidade
familiar que, no dizer de São Paulo VI, quando visitou Nazaré em 1974, nos dá três
lições – a do silêncio orante, a da perceção da família como fulcro do
crescimento e a do trabalho – e fazer a celebração festiva do nosso viver em família.
A perícopa evangélica assumida nesta liturgia (Lc 2,22-40) apresenta-nos a cena familiar da apresentação de Jesus no Templo de
Jerusalém como pretexto para, em jeito de catequese bem amadurecida e bem refletida,
nos dizer quem é Jesus e qual a sua missão no mundo.
Antes de mais, ressalta a fidelidade desta
família à Lei do Senhor, deixando claro que Jesus, desde o início da sua
caminhada entre os homens, viveu fiel ao mandamento do Pai. Com efeito, a sua missão
no mundo passa pelo cumprimento da vontade do Pai.
Sobressai no cenário o velhinho Simeão (nome que significa “Escutador”), que vive atentamente à escuta e que
o Evangelho apresenta como homem justo e piedoso, que esperava a consolação de
Israel. E, porque vivia de coração vigilante, veio ao Templo sob a moção do
Espírito (en tô pneúmati), não por qualquer outra fonte de
energia e alegria, antiga ou moderna. Porém, nós tendemos a falar a todo o
tempo sem deixar vez e voz ao Espírito. E Jesus adverte: “Não sois vós que falais, mas o Espírito Santo” (Mc 13,11; cf. Mt 10,20; Lc 12,12). Logo, há que esperar como Simeão,
que entoa o canto feliz do entardecer da vida, um dos mais belos cantos
bíblicos:
“Agora, Senhor, deixas o teu servo
partir em paz, porque os meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante
de todos os povos, Luz que vem iluminar as nações e glória do teu povo, Israel!”
(Lc 2,29-32).
As suas palavras e gestos são bem
sugestivos. Toma carinhosamente Jesus nos braços – os Padres gregos dão a Simeão o
título de Theodókhos (“recebedor de Deus”) – e
apresenta-O ao mundo, definindo-O como “a salvação” que Deus oferece “a todos
os povos”, “luz para se revelar às nações e glória de Israel”. Jesus é, assim,
reconhecido pelo Israel fiel como o Messias libertador e salvador que Deus
enviou – não só ao seu povo, mas a todos os povos da terra.
Aqui desponta um dos temas muito queridos
a Lucas: a universalidade da salvação de Deus. Deus não tem já um Povo eleito,
mas a sua salvação é para todos os povos, independentemente das raças, culturas,
fronteiras e esquemas religiosos. As palavras que Simeão dirige a Maria (“este menino foi
estabelecido para que muitos caiam ou se levantem em Israel e para ser sinal de
contradição; e uma espada trespassará a tua alma”) aludem à divisão
que a obra de Jesus provocará em Israel e ao resultado dessa divisão – o drama
da cruz.
Paralelamente, aparece a profetiza Ana (que significa “Graça”), uma velhinha carregada de graça e de
esperança e também sintonizada com a Palavra de Deus escutada, vivida e anunciada.
E diz o texto que era filha de Fanuel
(que significa “Rosto de
Deus”) e da tribo de Aser (que quer dizer “Felicidade”). Também ela, serena e feliz, com 84 anos (número perfeito de números perfeitos:
7 x 12), teve a graça de
ver o Menino e “falava daquele Menino a
todos os que esperavam a libertação de Jerusalém” (Lc 2,38).
Vemos então que, no Templo, duas personalidades
acolhem Jesus – Simeão e Ana – que representam esse Israel fiel que espera
ansiosamente a sua libertação e a restauração do reinado de Deus sobre o seu
Povo. Simeão esperava e
Ana anunciava. Nestes dois maravilhosos velhinhos espelha-se a Escritura dos
dois Testamentos e o retrato a corpo inteiro do Consagrado, que, na Bíblia
hebraica, se diz Nazîr, nome
passivo e recetivo do totalmente dedicado a Deus, conduzido por Deus, “compondo”
com emoção os acontecimentos de Deus no seu coração.
O termo grego utilizado por Lucas
para falar de libertação é “lýtrôsis”
(“resgate”), que surge no Êxodo
para falar da libertação da escravidão do Egito (cf Ex 13,13-15; 34,20; Nm 18,15-16). Jesus é, assim,
apresentado como o Messias libertador, que guiará o seu Povo do domínio da
escravidão para o domínio da liberdade. A apresentação no Templo dum
primogénito celebrava a libertação do Egito e a passagem da escravidão para a
liberdade (cf
Ex 13,11-16).
O texto termina com uma referência ao
resto da infância de Jesus e ao crescimento do menino em “sabedoria” (sophía) e “graça” (kháris) – atributos vindos
do Pai, que atestam a sua divindade.
Em conclusão: Jesus é o Deus que vem
ao encontro dos homens com uma missão que lhe foi confiada pelo Pai. O objetivo
de Jesus é cumprir integralmente o projeto do Pai: levar os homens da
escravidão para a liberdade e apresentar o desígnio de salvação de Deus a todos
os povos da terra, mesmo aos que não pertencem tradicionalmente à comunidade do
Povo de Deus.
Simeão e Ana viram a Luz e exultaram de Alegria. Hoje
somos nós quem se chama Simeão e Ana, pois recebemos a Luz nos braços fazemos
parte da família da felicidade e vivemos pertinho de Deus, face a face com
Deus, escutando atenta e vigilantemente o bater do coração de Deus, movidos
pelo Espírito de Deus, recebedores de Deus, anunciadores de Deus.
No quadro da temática da família, o Antigo Testamento
traz-nos dois trechos sapienciais do Livro de Ben Sirah (Sir
3,3-7.14-17a), que nos convida ao amor dedicado aos pais, para que o Senhor ponha sobre
nós o seu olhar de bondade, sendo “honrar” a
palavra que preside a este conjunto de conselhos do “sábio” Ben Sirah (repete-se 5 vezes,
nestes versículos).
O termo leva-nos ao Decálogo do Sinai
(“honra
teu pai e tua mãe” – Ex 20,12). É usado o verbo “kabad”,
traduzível por “dar glória”, “dar peso”, “dar importância”. Assim, “honrar os
pais” é dar-lhes o devido valor e reconhecer a sua importância, pois são os
instrumentos de Deus, fonte de vida. Este reconhecimento dos pais
como os instrumentos pelos quais Deus nos concede a vida deve levar os filhos à
gratidão, que não é só uma declaração de intenções, mas um sentimento que
implica atitudes práticas, como ampará-los na velhice e não os desprezar nem
abandonar; assisti-los materialmente – sem inventar qualquer desculpa – quando
já não podem trabalhar (cf Mc 7,10-11); não fazer nada que os desgoste; escutá-los,
ter em conta as suas orientações e conselhos; ser indulgente para com as
limitações da idade ou da doença…
Como recompensa desta atitude de
“honrar os pais”, Jesus Ben Sira promete o perdão dos pecados, a alegria, a
vida longa e a atenção de Deus.
E o apóstolo Paulo (Col 3,12-21) propõe-nos viver em família
revestidos do “Homem Novo”, ou seja, cultivando aquele conjunto de virtudes que
resultam da união com Cristo: misericórdia, bondade, humildade, mansidão,
paciência – com especial lugar para o perdão das ofensas –, a exemplo de Cristo
que sempre manifestou a sua imensa capacidade de perdoar. Trata-se de exigências
e manifestações da caridade, que é a fonte de onde brotam todas as virtudes do
cristão. É certo que também os gregos enumeravam como exigência do viver
humano uma série de virtudes. Porém, em Paulo e segundo o Evangelho, estas
virtudes, porque resultantes da íntima relação do crente com Cristo, levam à
verdade, à universalidade, à totalidade, à radicalidade. Assim, a humildade
implica o respeito e cultivo da dignidade total em nós e nos outros, não
podendo nós querer ser superiores a alguém, nem fingir pequenez para que nos engrandeçam;
o perdão é para aplicar sempre e para com todos. Enfim, viver “em Cristo”
implica viver, como Ele, no amor total, no serviço, na disponibilidade, no dom
da vida, num dinamismo de amor não autossatisfatório, mas num amor oblativo,
nada interesseiro e nada narcisista, mas extensivo a todos, os de perto e os de
longe, sem distinção de amigos e inimigos.
Aplicando o ideal da vida cristã ao âmbito concreto da vida familiar, o apóstolo faz recomendações
específicas a cada elemento da família: à esposa, o respeito para com o marido (a submissão, que não
sujeição, linguagem epocal, deve ser percebida como concórdia); ao marido, o amor
à esposa, contra o domínio tirânico sobre ela; aos filhos, a obediência aos
pais; aos pais, com intuição pedagógica, a firmeza e moderação para com os filhos,
para não impedirem o normal desenvolvimento das suas capacidades e favorecerem
a autonomia. Para todos, a “caridade” (“agapê”) – entendida como
amor de doação, de entrega, a exemplo de Jesus que amou até ao dom da vida –
que deve presidir às relações entre os membros da família.
É desta forma que, no espaço
familiar, se manifesta o Homem Novo, o homem transformado por Cristo e que vive
segundo Cristo.
E, considerando os sobreditos predicados
paulinos como os vestidos próprios para a festa, mas que não se compram num
pronto-a-vestir, diz o Bispo de Lamego, Dom António Couto, que “nesta época de
bastante consumismo, convém que nunca nos esqueçamos de Deus, pois é Ele, e só
Ele, que veste carinhosamente o coração e as entranhas dos seus filhos”.
Distraídos não damos conta de Deus em
nós, nem de nós. A alienação de nós e da família, feita e regada no amor,
vínculo de perfeição, afasta-nos de nós. E é porque nunca Se desligou do efetivo
e afetivo laço familiar dentro de Si e para os homens, que enche do seu amor,
que Ele está connosco e teima em fazer-Se Natal redentor nos corações. E é pelo
amor total, feito dádiva generosa, que Ele não Se distrai e está em nós, mais
perto do que nós pensamos e sentimos.
2020.12.27 – Louro de
Carvalho
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