quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Sobre o “Estado da Educação 2019” (edição de 2020)

 

O Conselho Nacional de Educação (CNE) acaba de publicar (fê-lo no dia 21) o relatório “Estado da Educação 2019(edição de 2020), obviamente, como anota a presidente, ainda sem os reflexos da pandemia. E é útil para se verificar como já antes havia falhas no sistema educativo, o que a atual situação de crise veio pôr a nu e agravar.  

O documento, elaborado com o contributo de muitos especialistas, está estruturado em 4 partes: estado da educação: dados de referência; estado da educação: indicadores para Portugal; ensino profissional (destaques); educação e formação profissional: reflexões e perspetivas. 

As duas primeiras partes espelham a evolução que se registou em Portugal, nos últimos dez anos, no domínio da educação e formação de crianças, jovens e adultos, sustentada em indicadores de referência, e integram dados de estudos internacionais, com o objetivo de posicionar o nosso país no panorama europeu e internacional. A terceira parte é dedicada ao ensino profissional e especificamente às ofertas educativas de formação inicial destinadas a jovens, visando um maior conhecimento das ofertas de dupla certificação de nível secundário. Porém, como a temática do ensino e formação profissional envolve inúmeras dimensões de análise, que não caberiam num capítulo do relatório, o CNE suscitou o contributo de vários especialistas, cujos textos constituem a quarta parte e reúnem diversas perspetivas sobre o assunto, o que não quer dizer que reflitam a posição oficial deste órgão independente, com funções consultivas, que funciona junto do Ministério da Educação (ME).

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Um dos dados a ter em conta no estado da educação em referência é o atinente ao investimento. Neste âmbito, ressalta que, em 2019, foram investidos pelo Estado 9055,48 milhões de euros, o que significa um aumento de 264,79 milhões relativamente ao ano anterior. Porém, trata-se de valor inferior ao registado em 2010 (9338,90 milhões de euros). E, se observarmos toda a década, esta despesa assinala uma diminuição sucessiva até́ 2015, sendo que os aumentos se registaram em 2016, em 2018 e em 2019, sendo esse o ano do terceiro valor mais alto da série.

Também o documento de trabalho dos Serviços da Comissão Europeia – relatório relativo a Portugal em 2020 – regista que o “investimento público na educação tem aumentado, mas está ainda longe dos níveis observados antes da crise económica”.

Quanto à natureza da despesa com a educação e o ensino não superior, público e privado, no continente – 71,2% (6443,87 milhões de euros) do total da despesa do Estado em educação, em 2019 –, a fatia maior (76,7%) diz respeito a despesas de pessoal; 21,7%, a despesas correntes; e 1,6%, a despesas de capital. Relativamente à sua distribuição, é de relevar que o investimento na educação pré́-escolar tem aumentado desde 2018, com cerca de 3/4 do valor (568,65 milhões de euros) de 2019 a serem aplicados na rede pública, 22,7% na rede solidária e 0,7% na rede particular e cooperativa.

O ensino básico e secundário, público e privado, foram contemplados com uma verba orçamental de 4704,62 milhões de euros em 2019. No setor público, a maior fatia (3688,14 milhões de euros) foi executada no 1.º ciclo do ensino básico e a restante nos outros ciclos de ensino.

Na rede privada, a despesa com os ensinos básico e secundário tem vindo a decrescer: em 2019, foi de 122,35 milhões de euros. Em contrapartida o investimento na educação inclusiva tem vindo a aumentar desde 2012, registando, em 2019, um acréscimo de 87,32 milhões de euros em relação àquele ano.

É de notar igualmente uma evolução na despesa com o ensino superior na última década: 2784,22 milhões de euros em 2019.

E, ao nível do investimento em I&D (Investigação e Desenvolvimento), Portugal precisa de duplicar o valor (em 2018 foi de 1,36% do PIB) para atingir a meta de 2020 (2,7%).

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No respeitante à comparticipação dos alunos nas despesas com a sua educação, é de referir que os alunos portugueses do ensino superior público continuam a ser dos que mais pagam propinas e das mais elevadas. Em contraste, 9 países têm uma política de gratuitidade no 1.º ciclo de estudos superiores (às vezes também no 2.º ciclo). Por exemplo, na Áustria, em universidades e colégios universitários de formação de professores, e em Montenegro, desde 2017/18, não são cobradas propinas aos alunos do 1.º ciclo que progridam normalmente nos seus estudos. A Estónia segue a mesma política, mas com a ressalva de poderem ser cobradas taxas a quem estuda em línguas que não o estoniano. Na República Checa, Alemanha, Croácia, Letónia, Polónia, Eslovénia e Eslováquia, os estudantes que progridem normalmente nos estudos pagam, geralmente, pequenos encargos administrativos até́ 100€.

Pagam-se propinas anuais superiores a 100€ em pouco mais de metade dos sistemas de ensino superior estudados. O valor de propina mais comum situa-se entre 101€ e 1000€ em 12 países, enquanto em oito varia entre 1001€ e 3000€, sendo este último grupo, onde se inclui Portugal, aquele em que todos ou a maioria dos alunos pagam propinas.

Os valores anuais de propinas mais elevados (correspondendo a cerca de 10.000€) registam-se em Inglaterra e País de Gales. Relativamente à UE (União Europeia) (a 28, ainda com o Reino Unido), Portugal encontra-se no quadrante dos países que combinam alta percentagem de estudantes que pagam propinas com baixa percentagem dos que recebem bolsas. Neste último item o país está a meio da tabela.

E, atendendo aos valores de bolsas anuais mais comuns, atribuídas no 1.º ciclo do ensino superior, entre estudantes a tempo inteiro, verifica-se que em 14 sistemas de ensino superior o montante anual variou entre 1001€ e 3000€. No entanto, em vários destes sistemas (Bélgica francófona, França, Polónia, Portugal, Eslováquia e Turquia), o montante comunicado não excedeu 1300€. Em três países (Estónia, Hungria e antiga República Jugoslava da Macedónia), o valor anual é ainda mais baixo, entre 100€ e 1000€. Em contraste, cinco países (Dinamarca, Alemanha, Áustria, Finlândia e Suíça) atribuem bolsas anuais superiores a 5000€ à maioria dos alunos e seis (Irlanda, Grécia, Itália, Países Baixos, Suécia e Noruega) atribuem bolsas entre os 3001€ e 5000€.

Assim, Portugal situa-se no quadro dos países que combinam alta percentagem de estudantes que pagam propinas (100%) com baixa percentagem dos que recebem bolsas (24%). Também a Irlanda do Norte, o País de Gales e o Luxemburgo apresentam uma percentagem de 100% de estudantes que pagam propinas, mas registam valores de 57%, 64% e 72%, respetivamente, na atribuição de bolsas. E Malta, Dinamarca e Suécia adotam políticas de pagamento integral de propinas pelo orçamento público, sendo que cerca de 90% dos estudantes recebem bolsas.

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O relatório aponta claramente para o envelhecimento da classe docente e para a míngua da frequência de cursos que dão acesso à docência.

Assim, o curso de Educação Básica, que permite o acesso ao mestrado que habilita para a docência (educação pré́-escolar e 1.º e 2.º ciclos), contou com a matrícula de apenas 384 alunos de entre os 421 que se inscreveram, para um total de 739 vagas na 1.ª fase do concurso nacional de acesso ao ensino superior de 2019. Nalgumas instituições do ensino superior não se inscreveu nenhum aluno no referido curso. E prevê-se que até 2030, mais de metade dos professores do quadro (57,8%) poderá́ aposentar-se, sendo possível que muitos adiram a um programa de pré-reforma logo que os critérios estejam definidos pelo ME.

Nestes termos, o CNE reitera a evidência da preocupação com “o envelhecimento do corpo docente e a baixa atratividade da profissão”, que aliás é visível na ”diminuição da procura dos cursos da área da educação nos últimos anos e com o consequente decréscimo da oferta, sem que sejam preenchidas, mesmo assim, todas as vagas a concurso”.

Com efeito, não para de aumentar (54,1%) a percentagem de docentes, em exercício de funções na educação pré́-escolar e nos ensinos básico e secundário, com idade igual ou superior a 50 anos, no ensino público, em contraponto com a percentagem dos que têm menos de 30 anos e que, feitas as contas, era quase residual (0,6%) em 2018/19. Ao nível dos educadores de infância, o ano letivo de 2018/2019 regista menos 1125 educadores de infância no ensino público e menos 978 no privado, relativamente ao ano letivo de 2009/2010. Há “hoje” menos 4525 professores do 1.º ciclo do ensino básico do que havia no início da década em estudo. E, enquanto os docentes com menos de 30 anos foram diminuindo (passaram de 10,2% agora 1,3%), os que têm 50 ou mais anos viram a sua percentagem aumentar de 25,1% para 39,5% em igual período. No 2.º ciclo registou-se uma diminuição de 11.006 professores no ensino público e 821 no ensino privado e, tal como no 1.º ciclo, aumentou aqui o número de docentes com 50 ou mais anos (de 32,6% para 54,7%). No 3.º ciclo do ensino básico e no ensino secundário, também diminuiu progressivamente o número de docentes. Em 2018/19, havia menos 12.714 docentes do que em 2009/10 e também aqui o grosso dos docentes estava acima dos 49 anos (passou de 24,3% para 51%). E, no ensino superior, as percentagens mais elevadas de docentes situam-se na faixa etária dos 40-49 anos de idade, mas evoluíram as percentagens dos de 50-59 anos e dos de 60 e mais anos, revelando o envelhecimento progressivo dos docentes do ensino superior, à semelhança do que acontece na educação pré́-escolar e nos ensinos básico e secundário.

Consciente do não rejuvenescimento na profissão docente e certo de que nos próximos anos muitos docentes se aposentarão, o CNE tem “chamado a atenção para este facto em diversas ocasiões”, insistindo na necessidade de adotar medidas ”como a integração urgente de mais professores no sistema para obviar a falta que já se faz sentir, possibilitando ao mesmo tempo o rejuvenescimento dos quadros e o aumento da estabilidade dos docentes nas escolas”.

Também o CNE observa que as notas de ingresso nos cursos de formação de professores são das mais baixas, sobretudo quando se analisa a evolução das classificações mínimas de ingresso na última década, e refere que a habilitação profissional para a docência depende da titularidade do grau de mestre em certas especialidades e que a licenciatura em educação não é a única que lhe dá acesso (com exceção das formações específicas para a educação pré́-escolar e para o 1.º ciclo).

Uma das explicações para a não apetência pela função docente residirá na desvalorização da profissão, pois só 9,1% dos professores portugueses vê a profissão valorizada pela sociedade – valor muito inferior aos 32,4% registados pela média dos países participantes no TALIS 2018 (inquérito OCDE aos docentes e diretores de escola sobre ensino, ambientes de aprendizagem existentes nas escolas e condições de trabalho). Apenas três países – a França, a Eslováquia e a Eslovénia – apresentam percentagens mais baixas, sendo de realçar a Finlândia, com a percentagem mais elevada (58,2%).

E, como nem só de educadores e professores resultam o devir e o êxito escolares, também o estão da educação quanto a pessoal não docente mereceu a atenção do CNE. E a grande verificação é a de que há menos técnicos especializados para apoiar os alunos com necessidades específicas e os que existem estão a cumprir mais horas de trabalho.

Na verdade, os estudos internacionais vêm reconhecendo a importância dos trabalhadores que exercem funções nas escolas, além dos docentes e diretores, na melhoria das aprendizagens. Trata-se dum grupo de profissionais que integra, para lá dos assistentes técnicos e operacionais, os técnicos especializados de diferentes áreas, como: psicólogos, formadores, técnicos de serviço social, terapeutas de fala, intérpretes de LGP (Língua Gestual Portuguesa), animadores culturais ou sociais, entre outros. Assim, em 2018/2019, em Portugal, exerciam funções em estabelecimentos de educação pré́-escolar e de ensinos básico e secundário 80.854 profissionais não docentes, a maioria (70,1%) no ensino público. O grupo, constituído maioritariamente por mulheres (87%) e presente no ensino público, destaca-se na região Norte com o maior número de profissionais, seguindo-se a Área Metropolitana de Lisboa e a região Centro.

Portugal e a Grécia foram, no conjunto dos países da UE, os que apresentaram percentagens mais elevadas de diretores de escolas a afirmar que o ensino tinha sido “muito afetado” pela “falta de pessoal auxiliar”. Segundo a DGEEC (Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência), no âmbito do Questionário “Necessidades Especiais de Educação 2017/2018”, no referido ano letivo, registou-se, face ao ano anterior, um decréscimo do número de técnicos especializados das escolas públicas (11%) a apoiarem os alunos com necessidades específicas. Ao mesmo tempo, deu-se um aumento (25,5%) do número de horas mensais disponibilizadas por esses técnicos no exercício das suas funções.

O relatório do CNE acusa uma diminuição, a partir de 2013/2014, do número de profissionais não docentes no ensino público. Em 2018/2019, eram menos 4409 do que em 2009/2010. E, também no ensino privado, houve um decréscimo progressivo do número destes trabalhadores.

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Entretanto, espera-se pela edição de 2021 do relatório sobre o estado da educação referente a 2020, ano atípico marcado pela pandemia do confinamento e do tele-ensino, em que veremos como a educação pôde resistir – ou não – à virose geral e demolidora.

Para já, é de destacar a atitude do Ministro da Educação, que agradeceu o trabalho inexcedível das comunidades educativas – diretores das escolas, docentes e não docentes, encarregados de educação e autarquias – para que fosse possível o regresso às atividades letivas presenciais.

Em visita à Escola Básica e Secundária de Sidónio Pais, em Caminha, recordou o momento em que “todos acreditámos que era necessário voltar para as atividades letivas presenciais”, depois de termos passado por “um período muito complexo”, tendo as escolas assumido, com as famílias, “um grande compromisso”. Também os alunos disseram “que preferiam e aprendiam mais presencialmente”. E, no debate parlamentar pedido pelo PSD sobre educação, disse:

É da mais elementar justiça, o ministro da Educação vir dizer bravo às escolas, bravo aos diretores, bravo aos docentes, bravo aos não docentes, bravo aos alunos e bravo também suas famílias, que mesmo num tempo tão difícil conseguiram erguer em cada escola um espaço de segurança e de confiança.

Sobre o 1.º período letivo, o Ministro afirmou que foi “uma aposta ganha” e destacou o trabalho da DGS e demais autoridades, que juntamente com as comunidades escolares, têm garantido que “as escolas sejam genericamente lugares seguros”. Só lhe faltou “fazer” um Bom Natal!

2020.12.23 – Louro de Carvalho

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