quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Natal, a festa da comunicação porque do Emanuel – Deus Connosco

 

O portal da Treccani, uma conhecida enciclopédia italiana, publicou um especial sobre as palavras que o Papa Francisco utiliza nos documentos mais relevantes do seu Pontificado, sobressaindo a ideia da comunicação como partilha, sendo que nesta vertente requer escuta.

Ora, esta dimensão da escuta de um Deus que Se mostra comunicante vindo partilhar a vida humana pelo Natal do seu Cristo é motivo de reflexão nesta quadra natalícia no contexto dum mundo que no pico da comunicação tem a pandemia do novo coronavírus a secar todos os móbeis de interligação como faz o eucalipto relativamente a toda a vegetação circundante.  

Vivemos em tempo que se constitui em exceção face a uma época em que parece que, se não tivermos a última palavra, nos perdemos na autoestrada da comunicação. Testemunham-no diariamente os programas de rádio e TV, os debates políticos, as asserções económicas. E, nas redes sociais, se não editarmos o último tweet ou o post final, sentimos o vazio da conversa, a desilusão de que ninguém nos ouve.

Ora, no dizer de alguns observadores, Francisco britou o paradigma funcionalista da ação comunicacional, que a considera uma poderosa arma para vencer o outro, e fê-la retornar ao valor primordial do dom, da oportunidade de crescimento pessoal em comunhão com o outro. Por conseguinte, nesta lógica altruísta, o comunicador não se sobrepõe à mensagem a transmitir. Ao invés, a mensagem torna-se forte, explícita e luminosa entre os dois intercomunicadores pessoais que têm o estatuto de parceiros. Por outro lado, é tão relevante a Palavra que é pronunciada como o gesto que a secunda e, de igual modo, ganha estatuto comunicacional o silêncio que prepara a transmissão da mensagem e o que a interioriza. 

Por isso, para este Papa, o silêncio e a imobilidade – paradoxo na era dos meios de comunicação em busca de sons e movimentos – tornam-se amplificadores de sentido e significado. Quem acompanhou a visita papal ao campo de concentração de Auschwitz-Birkenau a 29 de julho de 2016 ou quem pôde contemplar Francisco após a chegada à Capelinha das Aparições em Fátima a 12 de maio de 2017, sentiu-se tocado pela oração silenciosa, que parecia durar um tempo interminável. Melhor que um discurso, o silêncio foi capaz de transmitir, no primeiro caso, o sofrimento e a consternação pela dor que o lugar sempre carregará consigo, bem como a necessidade de não esquecer o horror sem precedentes dos campos de extermínio; e, no segundo caso, a autocrítica do Papa, como ele revelou mais tarde, e as preocupações pelo devir da Igreja num mundo que, fustigado pelo mistério da iniquidade, anseia pela paz e se abre cada vez mais ao transcendente – enfim, o cuidado pelos irmãos.

E o ano que está prestes a chegar ao seu termo fica decididamente marcado por outro “silêncio que fala” em outro momento dramático da história. A 27 de março de 2020, Francisco sozinho, na Praça de São Pedro vazia, rezava aos pés do crucifixo de madeira de São Marcelo e junto do ícone Salus Populi Romani. O episódio fica para a história como uma das mais fortes imagens da pandemia. No dia seguinte, a foto do Papa em oração ocupou as primeiras páginas dos jornais de todo o mundo, pois a mensagem, saltando o perímetro da fé católica, tornou-se intérprete da angústia e das esperanças de toda a humanidade. E, a nível doméstico, tivemos a réplica por antecipação da parte do Cardeal António Augusto dos Santos Marto, Bispo de Leiria-Fátima, na Basílica de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, praticamente sozinho, a rezar, em nome das conferências episcopais de Portugal e de Espanha – a que se juntaram mais 22 conferências episcopais – a Consagração ao Santíssimo Coração de Jesus e ao Sagrado Coração de Maria, aos pés do grande Crucifixo e da imagem de Nossa Senhora.   

É evidente para todos que Francisco pratica assiduamente a “comunicação contracorrente” que tem a escuta como um componente fundamental. Assim, neste período da impossibilidade de se mover e da drástica redução do número de pessoas encontradas, movido pela “criatividade do amor” a que se refere muitas vezes, vem dedicando muito tempo para chegar às pessoas com o telefone, o já antigo instrumento de comunicação que não sai de moda. Telefonou a inúmeras pessoas que sofrem, pacientes de covid, idosos, enfermeiros e jovens que se ofereceram como voluntários para ajudar os necessitados. Os seus telefonemas são mais para ouvir experiências que para dar indicações, o que, segundo disse a uma revista espanhola, o ajudou a “manter o conhecimento de como as famílias e as comunidades estavam a viver o momento”.

Já em 2016, havia confessado que escutar “é muito mais que ouvir”, pois “significa prestar atenção, ter vontade de compreender, valorizar, respeitar, proteger a palavra dos outros”. E, durante a viagem internacional ao México, que ocorreu naquele ano, disse aos jovens de Morélia que é preciso colocar-se ao lado, escutando, do coetâneo que está em dificuldade, não para dar a receita, mas dando-lhe força com a escutoterapia – valor que está a ser esquecido.

Parece que o segredo do sucesso comunicativo do Pontífice – que permanece intacto como demonstram, entre outras coisas, as homilias das missas da manhã transmitidas durante a pandemia, seguidas por milhões de pessoas em todo o mundo – estará em pôr no centro o valor autêntico da comunicação, centrada no homem e não nos meios. É o poder de proximidade que leva a colocar-se ao serviço do outro, a exemplo do Bom Samaritano, e que, paradoxalmente, cresce quanto mais se reduz. E, porque a parábola do Bom Samaritano é uma parábola do comunicador, pois aquele que se comunica “torna-se próximo”, o Papa propô-la como reflexão na sua primeira Mensagem para o Dia das Comunicações Sociais. Na verdade, pela palavra e pelo gesto, o Pontífice mostra quotidianamente que é preciso “arriscar” para se comunicar, como fez o homem de Samaria na estrada de Jerusalém para Jericó, e que não devemos ter medo de abrir espaço para a opinião dos outros, para suas propostas e perguntas, colhendo o bem de que é portador cada um, pois, só reconhecendo-nos como Fratelli tutti, podemos construir um futuro melhor, digno de nossa humanidade comum.

***

E, quando alguém, em vez de só comunicar, tem a ousadia de se comunicar, faz-se dom e dádiva. Assim aconteceu com Deus, que em Jesus, depois de encarnar no ventre de Maria, qual ventre das misericórdias divinas, por obra e graça do Espírito Santo, nasce numa gruta, rodeado de animais que Lhe emprestam o seu lugar habitual e lhe dão acolhimento a mostrar que a verdadeira riqueza está em tornar-se dádiva e dom para os outros, sem nenhum poder armado ou defesa, para ensinar que só a bondade, o perdão e a justiça restaurativa constroem a paz.

Assim, para Dom Roberto Francisco Ferreria Paz, Bispo de Campos, o mistério natalino traz-nos um Deus Menino envolto em faixas e reclinado na manjedoura. E este foi o sinal dado pelos anjos aos pastores para identificarem o Salvador. E, aos olhos dos pastores, ou seja, na ótica dos pobres, que tudo esperam de Deus, isto compagina o extraordinário e o maravilhoso: um Deus que nos ama tanto que toma a iniciativa de se tornar pequeno, frágil, indefeso e próximo, para, na imensa ternura e misericórdia, abraçar todas as pessoas e criaturas. E recorda-nos que, na humildade (em latim, “humilitas”, de “humus”, terra), está a verdade e a dignidade do ser humano, que a arrogância e a vontade de dominar nos levaram à atual crise de civilização, que esqueceu raízes e vínculos, adoecendo com o vírus letal.

Em contraponto, a pobreza do presépio constitui o sonho, a maquete do paraíso, o primeiro polo comunicacional da humanidade reconciliada na fraternidade que o Filho de Deus veio trazer como luz e esperança para toda a Criação ou a rampa de lançamento da via comunicacional de Deus-homem para a redenção. Mostram-se os sinais de Deus, comunica-se a sua mensagem. Deus comunica e comunica-Se. Parece que o homem levou tempo a perceber!   

Este ano, pela pandemia limitante e pelo fascínio da graça do Natal – Não é o homem que faz o Natal, mas é Deus quem o faz e o oferece –, proporciona-nos um mergulho maior neste mistério, para que torne os nossos lares familiares em presépios vivos, louvando o Pai pela sacralidade do momento que vivemos e nos reconhecemos unidos a toda família humana, compartilhando com ela o destino comum e a confiança amorosa que nos leva, como aos sábios do Oriente, a adorar e acolher, no coração e na vida, a Jesus o Salvador – tendo a ousadia de O escutar e de Lhe falar, ou seja, estar presente na festa da comunicação. Na verdade, o presépio – com Jesus menino, a jovem mãe, o carpinteiro, os animais, a pedra e o musgo, a manjedoura e a estrela – como que resume o cosmos – o que os coetâneos, demasiado ocupados, não viram.

O Natal não é propriamente o aniversário de Jesus, que nem sabemos bem “quando” nasceu, mas é a festa do acolhimento ao ato comunicacional de Deus, que Se torna perpetuamente presente connosco e em nós, que é tudo em todos e em tudo e que induz a partilha de ideias e sentimentos e a comunhão de vida. Por isso, como os pastores que acolheram o convite do anjo e partiram para ver Cristo Senhor no sinal da criança envolta em panos e deitada na manjedoura, assim, para o patriarca latino de Jerusalém, devemos deixar-nos “guiar pelo Espírito, para reconhecer”, na verdade da nossa realidade, “o sinal de Sua presença”, pois cabe-nos tornar-nos o sinal da grande alegria do Emanuel – Deus connosco e sermos tornarmos suas testemunhas.

Este Natal de pandemia não é mais dramático que o primeiro Natal, em que Maria e José foram surpreendidos pela iminência do parto fora da terra habitual e na indiferença de quase todo o mundo, com exceção dos anjos e dos pastores. Por isso, este Natal em pandemia não nos dispensa de fazer Natal – até nos impele mais – em consonância com Deus e a profundidade do seu mistério. Importa que aprendamos com Deus a comunicar, a partilhar, a ousar a proximidade, a perceber o outro e ver que Deus, quando dá, não o faz pelo mínimo, mas dá-Se!

Por isso, é de interiorizar que temos de ver a realidade com os olhos do Espírito Santo que veem “os sinais que Deus provê para o homem: os sinais de Sua presença, do Seu poder escondido e do Seu Reino que aparecem dentro de nós quando Lhe damos um lugar”. E há que dar espaço à fé no Menino Senhor e à confiança e amizade para com o próximo, nosso irmão, que precisa de entrar no dinamismo da comunicação e partilha, da escuta, da vez, da voz e da palavra.

A criança postada na manjedoura, lugar da comida para os animais, antecipa, a partir de Belém, a cidade do pão, como havemos de desfrutar do pão da vida e vinho da salvação, no banquete da fraternidade. Ou seja, a encarnação do Verbo de Deus dirige-se e dirige-nos para a Paixão Redentora e para o fim dos tempos, o encontro final e eterno com Deus. O Natal, sendo dádiva de Deus, é a oportunidade do homem. Deus está connosco. Basta acolhê-Lo e testemunhá-Lo.

2020.12.24 – Louro de Carvalho

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