O portal da Treccani,
uma conhecida enciclopédia italiana, publicou um especial sobre as palavras que
o Papa Francisco utiliza nos documentos mais relevantes do seu Pontificado,
sobressaindo a ideia da comunicação como partilha, sendo que nesta vertente
requer escuta.
Ora, esta
dimensão da escuta de um Deus que Se mostra comunicante vindo partilhar a vida
humana pelo Natal do seu Cristo é motivo de reflexão nesta quadra natalícia no
contexto dum mundo que no pico da comunicação tem a pandemia do novo
coronavírus a secar todos os móbeis de interligação como faz o eucalipto relativamente
a toda a vegetação circundante.
Vivemos em
tempo que se constitui em exceção face a uma época em que parece que, se não
tivermos a última palavra, nos perdemos na autoestrada da comunicação.
Testemunham-no diariamente os programas de rádio e TV, os debates políticos, as
asserções económicas. E, nas redes sociais, se não editarmos o último tweet ou
o post final, sentimos o vazio da conversa, a desilusão de que ninguém nos ouve.
Ora, no
dizer de alguns observadores, Francisco britou
o paradigma funcionalista da ação comunicacional, que a considera uma poderosa arma
para vencer o outro, e fê-la retornar ao valor primordial do dom, da
oportunidade de crescimento pessoal em comunhão com o outro. Por conseguinte,
nesta lógica altruísta, o comunicador não se sobrepõe à mensagem a transmitir.
Ao invés, a mensagem torna-se forte, explícita e luminosa entre os dois
intercomunicadores pessoais que têm o estatuto de parceiros. Por outro lado, é
tão relevante a Palavra que é pronunciada como o gesto que a secunda e, de
igual modo, ganha estatuto comunicacional o silêncio que prepara a transmissão
da mensagem e o que a interioriza.
Por isso,
para este Papa, o silêncio e a imobilidade – paradoxo na era dos meios de
comunicação em busca de sons e movimentos – tornam-se amplificadores de sentido
e significado. Quem acompanhou a visita papal ao campo de concentração de Auschwitz-Birkenau
a 29 de julho de 2016 ou quem pôde contemplar Francisco após a chegada à
Capelinha das Aparições em Fátima a 12 de maio de 2017, sentiu-se tocado pela
oração silenciosa, que parecia durar um tempo interminável. Melhor que um
discurso, o silêncio foi capaz de transmitir, no primeiro caso, o sofrimento e
a consternação pela dor que o lugar sempre carregará consigo, bem como a
necessidade de não esquecer o horror sem precedentes dos campos de extermínio;
e, no segundo caso, a autocrítica do Papa, como ele revelou mais tarde, e as
preocupações pelo devir da Igreja num mundo que, fustigado pelo mistério da
iniquidade, anseia pela paz e se abre cada vez mais ao transcendente – enfim, o
cuidado pelos irmãos.
E o ano que
está prestes a chegar ao seu termo fica decididamente marcado por outro
“silêncio que fala” em outro momento dramático da história. A 27 de março de
2020, Francisco sozinho, na Praça de São Pedro vazia, rezava aos pés do
crucifixo de madeira de São Marcelo e junto do ícone Salus Populi Romani. O episódio fica para a história como uma das mais
fortes imagens da pandemia. No dia seguinte, a foto do Papa em oração ocupou as
primeiras páginas dos jornais de todo o mundo, pois a mensagem, saltando o
perímetro da fé católica, tornou-se intérprete da angústia e das esperanças de
toda a humanidade. E, a nível doméstico, tivemos a réplica por antecipação da
parte do Cardeal António Augusto dos Santos Marto, Bispo de Leiria-Fátima, na
Basílica de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, praticamente sozinho, a rezar,
em nome das conferências episcopais de Portugal e de Espanha – a que se
juntaram mais 22 conferências episcopais – a Consagração ao Santíssimo Coração
de Jesus e ao Sagrado Coração de Maria, aos pés do grande Crucifixo e da imagem
de Nossa Senhora.
É evidente
para todos que Francisco pratica assiduamente a “comunicação contracorrente”
que tem a escuta como um componente fundamental. Assim, neste período da impossibilidade
de se mover e da drástica redução do número de pessoas encontradas, movido pela
“criatividade do amor” a que se refere muitas vezes, vem dedicando muito tempo
para chegar às pessoas com o telefone, o já antigo instrumento de comunicação
que não sai de moda. Telefonou a inúmeras pessoas que sofrem, pacientes de covid,
idosos, enfermeiros e jovens que se ofereceram como voluntários para ajudar os
necessitados. Os seus telefonemas são mais para ouvir experiências que para dar
indicações, o que, segundo disse a uma revista espanhola, o ajudou a “manter o
conhecimento de como as famílias e as comunidades estavam a viver o momento”.
Já em 2016, havia
confessado que escutar “é muito mais que ouvir”, pois “significa prestar
atenção, ter vontade de compreender, valorizar, respeitar, proteger a palavra
dos outros”. E, durante a viagem internacional ao México, que ocorreu naquele
ano, disse aos jovens de Morélia que é preciso colocar-se ao lado, escutando, do
coetâneo que está em dificuldade, não para dar a receita, mas dando-lhe força
com a escutoterapia – valor que está a ser esquecido.
Parece que o segredo
do sucesso comunicativo do Pontífice – que permanece intacto como demonstram, entre
outras coisas, as homilias das missas da manhã transmitidas durante a pandemia,
seguidas por milhões de pessoas em todo o mundo – estará em pôr no centro o
valor autêntico da comunicação, centrada no homem e não nos meios. É o poder de
proximidade que leva a colocar-se ao serviço do outro, a exemplo do Bom
Samaritano, e que, paradoxalmente, cresce quanto mais se reduz. E, porque a
parábola do Bom Samaritano é uma parábola do comunicador, pois aquele que se
comunica “torna-se próximo”, o Papa propô-la como reflexão na sua primeira
Mensagem para o Dia das Comunicações Sociais. Na verdade, pela palavra e pelo
gesto, o Pontífice mostra quotidianamente que é preciso “arriscar” para se
comunicar, como fez o homem de Samaria na estrada de Jerusalém para Jericó, e
que não devemos ter medo de abrir espaço para a opinião dos outros, para suas
propostas e perguntas, colhendo o bem de que é portador cada um, pois, só reconhecendo-nos
como Fratelli tutti, podemos construir um futuro melhor, digno de
nossa humanidade comum.
***
E, quando alguém, em vez de só comunicar, tem a
ousadia de se comunicar, faz-se dom e dádiva. Assim aconteceu com Deus, que em
Jesus, depois de encarnar no ventre de Maria, qual ventre das misericórdias
divinas, por obra e graça do Espírito Santo, nasce numa gruta, rodeado de animais que Lhe emprestam o seu lugar habitual
e lhe dão acolhimento a mostrar que a verdadeira riqueza está em tornar-se
dádiva e dom para os outros, sem nenhum poder armado ou defesa, para ensinar
que só a bondade, o perdão e a justiça restaurativa constroem a paz.
Assim, para Dom Roberto Francisco Ferreria Paz, Bispo de Campos, o mistério natalino traz-nos um Deus Menino envolto
em faixas e reclinado na manjedoura. E este foi o sinal dado pelos anjos aos
pastores para identificarem o Salvador. E, aos olhos dos pastores, ou seja, na
ótica dos pobres, que tudo esperam de Deus, isto compagina o extraordinário e o
maravilhoso: um Deus que nos ama tanto que toma a iniciativa de se tornar
pequeno, frágil, indefeso e próximo, para, na imensa ternura e misericórdia,
abraçar todas as pessoas e criaturas. E recorda-nos que, na humildade (em latim, “humilitas”, de “humus”, terra), está a
verdade e a dignidade do ser humano, que a arrogância e a vontade de dominar
nos levaram à atual crise de civilização, que esqueceu raízes e vínculos,
adoecendo com o vírus letal.
Em
contraponto, a pobreza do presépio constitui o sonho, a maquete do paraíso, o
primeiro polo comunicacional da humanidade reconciliada na fraternidade que o
Filho de Deus veio trazer como luz e esperança para toda a Criação ou a rampa
de lançamento da via comunicacional de Deus-homem para a redenção. Mostram-se
os sinais de Deus, comunica-se a sua mensagem. Deus comunica e comunica-Se.
Parece que o homem levou tempo a perceber!
Este ano,
pela pandemia limitante e pelo fascínio da graça do Natal – Não é o homem que faz o Natal, mas é Deus
quem o faz e o oferece –, proporciona-nos um mergulho maior neste mistério,
para que torne os nossos lares familiares em presépios vivos, louvando o Pai
pela sacralidade do momento que vivemos e nos reconhecemos unidos a toda
família humana, compartilhando com ela o destino comum e a confiança amorosa
que nos leva, como aos sábios do Oriente, a adorar e acolher, no coração e na vida,
a Jesus o Salvador – tendo a ousadia de O escutar e de Lhe falar, ou seja,
estar presente na festa da comunicação. Na verdade, o presépio – com Jesus
menino, a jovem mãe, o carpinteiro, os animais, a pedra e o musgo, a manjedoura
e a estrela – como que resume o cosmos – o que os coetâneos, demasiado
ocupados, não viram.
O Natal
não é propriamente o aniversário de Jesus, que nem sabemos bem “quando” nasceu,
mas é a festa do acolhimento ao ato comunicacional de Deus, que Se torna
perpetuamente presente connosco e em nós, que é tudo em todos e em tudo e que induz
a partilha de ideias e sentimentos e a comunhão de vida. Por isso, como os pastores que acolheram o convite do anjo e
partiram para ver Cristo Senhor no sinal da criança envolta em panos e deitada
na manjedoura, assim, para o patriarca latino de Jerusalém, devemos deixar-nos “guiar
pelo Espírito, para reconhecer”, na verdade da nossa realidade, “o sinal de Sua
presença”, pois cabe-nos tornar-nos o sinal da grande alegria do Emanuel – Deus
connosco e sermos tornarmos suas testemunhas.
Este Natal
de pandemia não é mais dramático que o primeiro Natal, em que Maria e José
foram surpreendidos pela iminência do parto fora da terra habitual e na indiferença
de quase todo o mundo, com exceção dos anjos e dos pastores. Por isso, este
Natal em pandemia não nos dispensa de fazer Natal – até nos impele mais – em consonância
com Deus e a profundidade do seu mistério. Importa que aprendamos com Deus a
comunicar, a partilhar, a ousar a proximidade, a perceber o outro e ver que
Deus, quando dá, não o faz pelo mínimo, mas dá-Se!
Por isso,
é de interiorizar que temos de ver a realidade com os olhos do Espírito Santo que veem “os sinais que
Deus provê para o homem: os sinais de Sua presença, do Seu poder escondido e do
Seu Reino que aparecem dentro de nós quando Lhe damos um lugar”. E há que dar
espaço à fé no Menino Senhor e à confiança e amizade para com
o próximo, nosso irmão, que precisa de entrar no dinamismo da comunicação e
partilha, da escuta, da vez, da voz e da palavra.
A criança
postada na manjedoura, lugar da comida para os animais, antecipa, a partir de
Belém, a cidade do pão, como havemos de desfrutar do pão da vida e vinho da salvação,
no banquete da fraternidade. Ou seja, a encarnação do Verbo de Deus dirige-se e
dirige-nos para a Paixão Redentora e para o fim dos tempos, o encontro final e
eterno com Deus. O Natal, sendo dádiva de Deus, é a oportunidade do homem. Deus
está connosco. Basta acolhê-Lo e testemunhá-Lo.
2020.12.24 –
Louro de Carvalho
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