quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

“Não há paz sem a cultura do cuidado”

 

A Sala de Imprensa da Santa Sé publicou, neste dia 17 de dezembro, a Mensagem do Santo Padre para a celebração do 54.º Dia Mundial da Paz – 1.º de janeiro de 2021, datada do passado dia 8 de dezembro e subordinada ao título A cultura do cuidado como percurso de paz”, na esperança de que que o novo ano “faça a humanidade progredir no caminho da fraternidade, da justiça e da paz entre as pessoas, as comunidades, os povos e os Estados”.

Considerando que o ano que está prestes a terminar fica marcado pela crise de covid-19, tornada “fenómeno plurissectorial e global” a agravar “outras crises inter-relacionadas” e a provocar “grandes sofrimentos e incómodos”, o Papa evoca as perdas de vidas humanas e as perdas de emprego, como homenageia quantos e quantas se dedicaram e dedicam – muitos com risco da própria vida – para que nada falte a quem precisa e sofre. E reitera o apelo aos responsáveis políticos e ao setor privado no sentido de tomarem “as medidas adequadas” à garantia do acesso às vacinas da covid-19 e às tecnologias essenciais “para dar assistência aos doentes e a todos aqueles que são mais pobres e mais frágeis”.

Verificando que, a par de inúmeros testemunhos de caridade e solidariedade, recrudescem as formas de nacionalismo, racismo, xenofobia, guerra e conflito, o Pontífice escolheu como tema da mensagem a cultura do cuidado para erradicar a cultura da indiferença, do descarte e do conflito, pois os acontecimentos que marcaram “o caminho da humanidade no ano de 2020 ensinam-nos a importância de cuidarmos uns dos outros e da criação a fim de se construir uma sociedade alicerçada em relações de fraternidade”.

Partindo do atributo de “Deus Criador, origem da vocação humana ao cuidado, relevacuidado ou custódia no projeto de Deus para a humanidade, com destaque para a relação entre o homem (’adam) e a terra (’adamah) e entre os irmãos. E, vincando que Deus confia o jardim do Éden (cf Gn 2, 8) a Adão para que o cultive e guarde (Gn 2,15), isto é, para “tornar a terra produtiva” e “protegê-la” fazendo-a manter “a sua capacidade de sustentar a vida”, diz que os verbos ‘cultivar’ e ‘guardar’ indicam “a relação de Adão com a sua casa-jardim” e “a confiança que Deus deposita nele fazendo-o senhor e guardião de toda a criação”. E assegura que, ao invés do que pensava Caim, nós somos mesmo os guardas e cuidadores de nossos irmãos. Com efeito, “o cuidado autêntico da nossa própria vida e das nossas relações com a natureza” conecta-se necessariamente com a fraternidade, a justiça e a fidelidade aos outros.

A seguir, Francisco olha para “Deus Criador, modelo do cuidado”, tanto assim que “o próprio Caim, embora caia sobre ele a maldição pelo crime que cometera, recebe como dom do Criador um sinal de proteção, para que a sua vida seja salvaguardada” (cf Gn 4,15), assim se confirmando “a dignidade inviolável da pessoa, criada à imagem e semelhança de Deus”, e se manifestando “o plano divino para preservar a harmonia da criação, porque a paz e a violência não podem habitar na mesma morada”. Por isso, a instituição do Shabbat, do jubileu e do ano sabático, “além de regular o culto divino, visava restabelecer a ordem social e a solicitude pelos pobres” (cf Gn 2, 1-3; Lv 25, 4). Também, como acentua o Pontífice, “a tradição profética” mostra que “o auge da compreensão bíblica da justiça se manifesta na forma como uma comunidade trata os mais frágeis no seu seio”. Assim, em especial, Amós e Isaías “erguem continuamente a voz em prol de justiça para os pobres, que, pela sua vulnerabilidade e falta de poder, são ouvidos só por Deus, que cuida deles”.

Como era de esperar, o Papa glosa “o cuidado no ministério de Jesus” frisando que, na fidelidade à missão messiânica e em atitude compassiva, “Cristo aproxima-Se dos doentes no corpo e no espírito e cura-os, perdoa aos pecadores e dá-lhes uma nova vida”. Em suma, “Jesus é o Bom Pastor que cuida das ovelhas”, como “é o Bom Samaritano que Se inclina sobre o ferido, trata das suas feridas e cuida dele” e, sobretudo, “sela o seu cuidado por nós, oferecendo-Se na cruz e libertando-nos assim da escravidão do pecado e da morte”, tornando-Se “caminho do amor” e exemplo para cada um de nós.

E, considerando crucial “a cultura do cuidado, na vida dos seguidores de Jesus”, Francisco observa como “as obras de misericórdia espirituais e corporais constituem o núcleo do serviço de caridade da Igreja primitiva”, praticando os cristãos da primeira geração “a partilha para não haver entre eles alguém necessitado” e, mesmo “quando a generosidade dos cristãos perdeu um pouco do seu ímpeto, alguns Padres da Igreja insistiram em que a propriedade é pensada por Deus para o bem comum”. Porém, a ganância fez deste direito comum “um direito de poucos”. E sublinha o Papa que, exigindo as necessidades epocais “novas energias ao serviço da caridade cristã”, surgem nas crónicas históricas “inúmeros exemplos de obras de misericórdia”, pelo que são numerosas as instituições criadas “para alívio das várias necessidades humanas”.

Depois, o Papa Bergoglio faz apontamento sobre “os princípios da doutrina social da Igreja como base da cultura do cuidado”, vincando que “a diakonia das origens”, robustecida pela Patrística e concretizada “pela caridade operosa de tantas luminosas testemunhas da fé”, se tornou “o coração pulsante da doutrina social da Igreja, proporcionando a todas as pessoas de boa vontade um precioso património de princípios, critérios e indicações”, configuradores da ‘gramática’ do cuidado: “a promoção da dignidade de toda a pessoa humana, a solidariedade com os pobres e indefesos, a solicitude pelo bem comum e a salvaguarda da criação”.

No âmbito do cuidado como promoção da dignidade e dos direitos da pessoa, segundo o Papa, a pessoa exige a relação, inclusão e dignidade singular e inviolável, ao invés do individualismo, exclusão e exploração. E, sendo “fim em si mesma, e nunca mero instrumento a ser avaliado apenas pela sua utilidade”, pois “foi criada para viver em conjunto na família, na comunidade, na sociedade, onde todos os membros são iguais em dignidade”, são-lhe inerentes os direitos e os deveres. E, entre estes, recorda-se a responsabilidade de acolher os pobres, doentes, marginalizados, o nosso próximo, vizinho ou distante no espaço e no tempo.

No atinente ao “cuidado do bem comum”, Francisco frisa que “os nossos projetos e esforços devem ter sempre em conta os efeitos sobre a família humana inteira, ponderando as suas consequências para o momento presente e para as gerações futuras”, e recorda que a pandemia nos mostra que “estamos no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo importantes e necessários, todos chamados a remar juntos, porque ninguém se salva sozinho e nenhum Estado nacional isolado pode assegurar o bem comum da própria população”.

No quadro do “cuidado através da solidariedade”, sustenta o Pontífice que “a solidariedade exprime o amor pelo outro de maneira concreta”, não como sentimento vago, mas como firme e perseverante determinação de empenho pelo bem comum, ou seja, “pelo bem de todos e de cada um”, na certeza de que “todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos” e de que temos de ver o outro – “quer como pessoa quer, em sentido lato, como povo ou nação” – não como dado estatístico ou meio a usar e descartar, mas “como nosso próximo, companheiro de viagem, chamado a participar, como nós, no banquete da vida, para o qual todos somos igualmente convidados por Deus”.

Relativamente ao “cuidado e salvaguarda da criação”, recorda-se que a Laudato si’ reconhece “plenamente a interconexão de toda a realidade criada, destacando a exigência de ouvir ao mesmo tempo o grito dos necessitados e o da criação” – escuta atenta e perseverante de que “pode nascer um cuidado eficaz da terra, nossa casa comum, e dos pobres”. Com efeito, “não pode ser autêntico um sentimento de união íntima com os outros seres da natureza”, se “não houver no coração ternura, compaixão e preocupação pelos seres humanos”, já que “paz, justiça e salvaguarda da criação” são questões interligadas, não se podendo separar para tratamento estanque, “sob pena de se recair no reducionismo.

Nestes termos, o Bispo de Roma exorta os responsáveis nacionais e internacionais pela política, ciência, economia, e educação e comunicação social a pegarem nesta “bússola comum” para darem um rumo comum e verdadeiramente humano ao processo de globalização, que priorize “o valor e a dignidade de cada pessoa” e a ação conjunta e solidária em prol do bem comum, “aliviando quantos padecem por via da pobreza, da doença, da escravidão, da discriminação e dos conflitos”. E encoraja “todos a tornarem-se profetas e testemunhas da cultura do cuidado”, a fim de obviarem a tantas desigualdades sociais, o que “só será possível com forte e generalizado protagonismo das mulheres na família e em todas as esferas sociais, políticas e institucionais”.

Entende o Santo Padre que esta bússola , “necessária para promover a cultura do cuidado, vale para as relações entre as nações, que devem ser inspiradas na fraternidade, respeito mútuo, solidariedade e observância do direito internacional, devendo ser reafirmadas “a proteção e a promoção dos direitos humanos fundamentais, que são inalienáveis, universais e indivisíveis”, bem como “o respeito pelo direito humanitário”, sobretudo nesta fase de interruptos conflitos e guerras – gerando sempre destruição e crise humanitária.

Alvitra a conveniência da reversão dos gastos com armas para prioridades mais significativas a fim de garantir a segurança das pessoas, como a promoção da paz e desenvolvimento humano integral, o combate à pobreza, o remédio das carências sanitárias” e a minoração das mudanças climáticas. E enfatiza como seria corajosa a criação dum ‘Fundo mundial’ com o dinheiro que se gasta em armas e outras despesas militares, para poder eliminar a fome e contribuir para o desenvolvimento dos países mais pobres”.

No postulado de “educar em ordem à cultura do cuidado”, Francisco adverte que “a promoção da cultura do cuidado requer um processo educativo, constituindo a bússola dos princípios sociais “um instrumento fiável para vários contextos relacionados entre si. E, no contexto do Pacto Educativo Global, quer mobilizar a família, qual núcleo natural e fundamental da sociedade, a escola e universidade, a comunicação social, considerando que “a educação constitui um dos pilares de sociedades mais justas e solidárias”, e as religiões e seus líderes, que podem desempenhar papel insubstituível na transmissão aos fiéis e à sociedade dos valores da solidariedade, respeito pelas diferenças, acolhimento e cuidado dos irmãos mais frágeis.

E conclui que “não há paz sem a cultura do cuidado”, pois esta, como “compromisso comum, solidário e participativo para proteger e promover a dignidade e o bem de todos”, constitui-se como via privilegiada da construção da paz levando ao empenho diário por formar “uma comunidade feita de irmãos que se acolhem mutuamente e cuidam uns dos outros”.

2020.12.17 – Louro de Carvalho

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