sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Estamos em PEEC – processo de exceção em curso

 

Quem o afirma é a magistrada do Ministério Público (MP) Maria José Morgado em entrevista à “Revista” do “Expresso”, deste dia 11 de dezembro de 2020, na despedida dos tribunais, ao fim duma carreira de 42 anos, recusando admitir ser “um símbolo ou um ícone da luta contra o crime”, antes afirmando que é “um soldadinho raso”.

Da entrevista, que encerra prementes conteúdos, recolho alguns dados que podem ser objeto de reflexão e deixo para trás os aspetos mais ligados à vida pessoal da cidadã e magistrada.

Revela que, antes de entrar para o MP, o que sucedeu em 1978, deu aulas na Escola Secundária dos Anjos, à noite, “a uma população pró-delinquente, de marginais e muito resistente a qualquer transmissão de conhecimento”, contestando tudo, não sabendo que a docente fora presa pela PIDE, antes do 25 de Abril, e pelo COPCON, depois. Com efeito, porque foi maoísta durante alguns anos, “tinha currículo de revolucionária”. E sustenta que estar em sala de aula ou em tribunal são coisas muito diferentes, mas que importa sempre “ser firme e dominar o medo”, sendo nós próprios, na certeza de que “podemos ser firmes e flexíveis ao mesmo tempo”. Dito de outro modo, “temos de ter um pensamento problemático e ter tolerância”, pois “sermos tolerantes não nos enfraquece: abrimo-nos para o mundo e o mundo é muito rico”.

Interpelada se fora conseguido um dos objetivos da revolução comunista ou maoísta, a edificação de um mundo melhor, mais justo, é taxativa ao dizer que “nunca atingimos o objetivo do mundo melhor”, mas que “é algo que está sempre à frente de nós” como “um objetivo fresco, jovem”, crendo que desejavelmente será “prosseguido pelos mais jovens”.

Não arrisca julgar, com uma asserção única, se estamos melhor que há 20 ou 30 anos, parecendo-lhe que “numas coisas estamos melhores, noutras piores”. E, menciona o autor alemão Ulrich Beck, que chama a isto “sociedade global de risco”, para observar que “a vida é cheia de riscos e nós” e que isso se percebe todos os dias “no combate ao crime”.

Considerando que os riscos aumentaram nos anos 90 “ao ponto de passarmos, já nos anos 2000, para uma sociedade de risco com o terrorismo global e a criminalidade económico-financeira”, agora acrescem: “o cibercrime, as alterações climáticas, até chegarmos à sociedade de risco máximo atual que não é mais do que o ponto culminante dessas sucessivas crises”.

Convicta de que “a realidade nunca é o que parece no combate ao crime”, confessa a sua desilusão das vias do marxismo-leninismo-maoismo por constituírem “uma forma mecanicista e fanatizada de compreender o mundo”; e que a desilusão ocorreu quando foi presa por ter dito que “o COPCON era a nova PIDE”, que a tinha prendido “por atentado contra a segurança do Estado”. Fala, assim, de “dois autoritarismos diferentes, que criam categorias de pessoas que são transformadas em inimigas porque não aceitam as regras do sistema”. E considera bizarrice ter sido presa “por ter opinião”, mas que “na era pós-covid já não é tão bizarro assim”.

Ora, é aqui que aponta a periculosidade de estarmos “a caminhar para um Estado de exceção”, pois “todos os dias se diluem de forma difusa os limites entre ditadura e democracia”, sendo que uma das formas “é a perseguição de quem não pensa de acordo com as regras do sistema”.

À asserção de que ninguém é perseguido judicialmente por não estar de acordo com as regras decretadas pelo Governo, contrapõe a “legislação covid” e o “crime de desobediência”. E vinca:

Há uma perseguição a quem tem opiniões diferentes do establishment oficial. E a ciência nunca foi tão necessária e tão insuficiente como agora. Há grande controvérsia científica sobre todas as regras covid que têm sido legisladas. E quem se opuser em nome da ciência, que avança na contradição, não é unívoca, é visto como inimigo da sociedade.”.

Se é certo que ninguém foi preso ou acusado judicialmente por dizer que a máscara não resolve o problema do contágio, também o é que “ninguém sabe como isto vai acabar”. E ao espectro da “pandemia de um vírus desconhecido” opõe a certeza de que a morte faz parte da vida”.

Como resposta à interrogação se vivemos numa ditadura sanitária, não tem pejo em declarar que “vivemos no PEEC, Processo de Estado de Emergência em Curso”, desde “16 de março”.

Não se pronuncia contra a declaração do estado de emergência, mas está segura de que em toda a Europa “o novo normal está a prolongar-se por mais tempo do que seria estritamente necessário para fazer frente a um mal maior”, sendo que “tudo isto tem um mecanismo que cria um estado de exceção altamente repressivo e autoritário para as pessoas”.

Sem saber qual é a alternativa, observa que “vamos ter de enfrentar a destruição de uma economia, com desemprego, fome, desespero, um preço desproporcionado”. Diz que não lhe custa cumprir as regras, mas lamenta que tenham “fechado os ginásios no confinamento”, porque, tal como qualquer pessoa, tem direito à sua identidade e rotinas.

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Questionada se deixou de ter ideologia, afirmou categoricamente que a sua ideologia é justiça, liberdade, ética, igualdade(é pena faltar a fraternidade). E passou a falar do Direito, dizendo que se tornou “muito difícil com a produção legislativa dos últimos 15 anos” e que a justiça penal se transformou numa “tarefa burocrática gigante na interpretação e aplicação da lei”.

Por outro lado, refere que “uma das coisas boas da estratégia nacional contra a corrupção que se está a discutir agora é a compilação da abundante produção legislativa avulsa que existe na área da criminalidade económico-financeira”, porquanto “estamos na era da turbo-legislação há 15 anos, o que cria um formalismo que nos afasta da humanidade”, quando “o Direito é feito para resolver o problema das pessoas e não para construir castelos”.

Não diz que a legislação “involuiu”, mas que “há uma grande complexidade legislativa que cria uma grande complexidade na aplicação da lei”. E, a explicar que não foi sempre assim, discorre:

O Código de Processo Penal de 1987 deu a direção dos inquéritos ao Ministério Público, tirando-a da esfera do juiz de instrução criminal, que passou a ser o juiz das garantias. Esse código conta hoje com 46 alterações e o Código Penal com 52. Os anteriores tiveram meia dúzia de alterações em quase um século. Esta efervescência legislativa está certamente relacionada com a sociedade de risco de que falei, que cria necessidades novas permanentemente e banaliza a produção legislativa. E isso tem um impacto mau na jurisprudência e cria dificuldades nos megaprocessos. Qualquer interpretação se pode tornar polémica e obriga a uma fundamentação profusa das decisões face ao ordenamento jurídico que é muito complexo.”.

Da estratégia de combate à corrupção diz que “não é nova”, pois “já havia desde Joana Marques Vidal uma estratégia aprovada e um grupo de trabalho”; que, “de dois em dois anos há pacotes contra a corrupção e contra a criminalidade económico-financeira”; que “temos vivido sempre em ambiente de pacotes contra a corrupção”; e que “esta estratégia está de acordo com a ortodoxia da ONU e do Conselho da Europa contra a corrupção em que a prevenção é a chave”, prevenção “baseada na definição de áreas de risco”, porquanto “a grande corrupção é viral e tem de ter tratada como um vírus porque dura muito mais do que a covid”.

Admite que vivemos numa pandemia de corrupção há muito tempo e que a vacina do Governo sofre do “problema das vacinas”: “há mutações, tem de ser aplicada, tem de fazer um caminho”. Faz aflorar a questão da compensação legal a quem colabore de forma relevante na descoberta da verdade, agora prevista e que segue as recomendações da GRECO (grupo de Estados contra a corrupção), que “é essencial”. E à objeção de que quem confesse um crime e implique outras pessoas deve poder ficar impune, responde:

Para grandes males grandes remédios. Se temos um grande vírus, que tem meios de camuflagem e filtros que conduzem à impunidade, usa pactos de silêncio e circuitos financeiros anónimos, faz uso intensivo de offshores e de tecnologias de informação e não tem visibilidade, então é completamente diferente do crime comum que tem testemunhas, prova direta. Nós não vemos a corrupção. Se temos um grande vírus, temos de ter um estado de emergência para combater a corrupção. E meios específicos de obtenção de prova. A artilharia pesada do Código Penal.”.

Sustenta que “não é uma criminalidade praticada por marginais”, mas “por indivíduos muitas vezes respeitáveis e inseridos na sociedade, notáveis e poderosos e que visam atingir dinheiro e poder e subverter as instituições”. Por isso, temos de dispor de quem saiba indicar os agentes, o sítio e o modo de operar do inimigo sem rosto, pois “a vítima somos todos”. E, nisto, “só temos dois caminhos: os colaboradores ou os arrependidos” – além do “tratamento de informação como forma de nos anteciparmos à prática do crime”. E quem colabora deve ter isenção total de pena, pois “isso já existe no tráfico de droga internacional”, sendo que, nos anos 80, se percebeu “que tinha de se compensar quem entregava uma organização inteira”.

À questão se os juízes devem ficar de fora dessa negociação de pena, diz que “depende”. E conta o caso do juiz italiano Giovanni Falcone, em que um arrependido, confiante no juiz, se lhe entregou e contou tudo sobre o funcionamento da organização em que estava envolvido.

É certo que há outras maneiras de investigar, mas não bastam por se tratar de “realidades subterrâneas que criam filtros de impunidade que se transformam em obstáculos”, “uma espécie de corrupção com cobertura legal que não é visível a olho nu”.

Ora, como “a corrupção impune envenena a sociedade, destrói o Estado de direito e a democracia, provoca instabilidade política e pobreza”, quem colabora “está a compensar a sociedade”. Assim, “a dispensa de pena tem que ver com o grau de culpa e o grau de colaboração”. E é “uma tendência irreversível dos estados democráticos” que se negoceie a pena antes do julgamento. Com efeito, “o MP, perante uma colaboração de valor elevadíssimo, não estará a violar a Constituição se propuser ao juiz de instrução a não apresentação do processo a julgamento e o seu arquivamento”. E o juiz pode dizer que não, “desde que siga o quadro legal”, não se devendo criar um quadro taxativo do género: “havendo confissão relevante, entrega de provas e perigo de vida para a pessoa ou para a família”, a margem para a discordância é nula ou mínima. Em suma, “nada é taxativo”.

Nada contraria a Constituição, que remete a justiça para os tribunais, em julgamento, pois não se sai dos tribunais; trata-se, antes, de “elasticidade legal”: “no caso da pena negociada, o juiz terá uma atuação fiscalizadora do MP”; e, “se houver nulidades, provas proibidas ou abusos por parte do MP, o juiz pode e deve intervir”. Naturalmente, a eficácia impõe que se dê “o passo em frente” e, para isso, há que “dar garantias a quem colabora”. Não se pode cometer a iniquidade praticada com as FP-25 de Abril, em que uns confessaram e foram condenados e os que se calaram foram absolvidos, já que a justiça de alimenta “da vida, não é um formalismo vazio”, pelo que “as pessoas têm de ser o centro da justiça e a todo o momento temos de ver qual é a melhor maneira de conseguir a paz social”. Isto postula que o juiz tenha “formação no combate à corrupção”, o que se pode conseguir se se criarem tribunais “com competência especializada em criminalidade altamente organizada”, não havendo “inconstitucionalidade” nisto, uma vez que proibidos são “os tribunais para julgar categorias de crimes”, sendo que “a Constituição prevê tribunais especializados que já existem: tribunais de família, de trabalho, de comércio” e até “os criminais são especializados”. E temos o ‘Ticão’ (o Tribunal Central de instrução Criminal – TCIC), “que não tem continuação nos tribunais de julgamento”.

No atinente à falta de meios, diz que a escassez de recursos no MP “não é normal”, sobretudo “no combate à criminalidade económico-financeira” e que a GRECO “recomenda que sejam criadas autoridades especializadas para combater este tipo de crimes a quem devem ser atribuídos os recursos materiais e humanos necessários”. Mais aponta que o MP “é um deserto em peritos informáticos” e que “a estratégia nacional de combate à corrupção é um enquadramento abstrato”, que não adianta muito nesta matéria.

Assente que nestes 40 anos, o MP “foi dotado de instrumentos legais que o empoderaram e lhe deram capacidade”, nomeadamente a quebra do sigilo bancário, e que, após o 11 de setembro de 2001, “houve mudanças legislativas muito importantes”.

No respeitante a alegadas pressões políticas para investigar ou não investigar, adianta que “não é a pressão, mas os recursos que se têm que determinam a capacidade investigatória”, e acaba por admitir que, nos anos 80, o MP não tinha capacidade para investigar a grande criminalidade.

Sobre a diretiva 4 da PGR que impõe obediência dos magistrados aos superiores hierárquicos nos casos mais mediáticos, concede que haja “excesso de regulamentação”, o que pode originar “sintomas de crise e desmotivação”, mas não vislumbra perigo na identidade do MP”. E revela:

Eu sempre informei a minha hierarquia quando estavam em causa casos de especial complexidade ou de grande repercussão pública. E sempre exigi que me informassem. É vital para a coesão do Ministério Público. E a subordinação hierárquica não é propriamente uma novidade.”.

Não lhe parece haver “alteração do regime do MP, que é um regime de autonomia”, e conta:

Eu como superior hierárquica e com dezenas de anos de coordenação, nunca me passaria pela cabeça mandar um procurador arquivar ou acusar num processo. Mas redistribui casos, avoquei processos, discuti as convicções jurídicas decorrentes de uma investigação e penso que isso vai continuar assim.”.

Por fim, comentando os dados da Pordata, segundo os quais, nos últimos 20 anos, a confiança na justiça passou de 30 para 50%, considera que “a visibilidade de certas investigações tem dado credibilidade aos procuradores, aos juízes, à polícia”, o que induz o “aumento da confiança”, já que as pessoas “acreditam que não somos fracos com os fortes e que só investigamos a criminalidade dos pobres”. Contudo, censura a justiça-espetáculo, que pretenda “agradar a pessoas e abrir telejornais”. E sublinha que, apesar de haver “melhores resultados nas investigações” e “nos julgamentos”, persistem as “dificuldades no trânsito em julgado” e “há um hipergarantismo potenciador de uma morosidade insuportável”.

***

Enfim, eis uma entrevista notável, em que são abordadas matérias relevantes pela pertinência e atualidade, embora não de forma sistemática, mas ao correr do discurso, da parte duma profissional, disciplinada e disciplinadora, competente e lúcida, sem se armar em ícone do combate à criminalidade, como a fizeram passar miticamente em tempos idos com o sabor amargo de algum insucesso por eventual operação que dificilmente teria o êxito almejado.  

Espera-se que se mantenha atenta, falando e escrevendo.

2020.12.11 – Louro de Carvalho

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