Este era o
tema geral das sessões das tardes de domingo após o passeio no Seminário de
Nossa Senhora de Lurdes em Resende no tempo em que era vice-reitor o então
Cónego António José Rafael, com quem estudei nos primeiros dois anos de seminarista
e que passou a diretor espiritual diocesano dos Cursos de Cristandade e,
depois, a Bispo de Bragança e Miranda.
Na verdade,
todo o domingo, Dia do Senhor, é expressão de vida, e vida nova, adquirida pela
vivência da Ressurreição de Cristo e pela efusão pentecostal do Espírito Santo,
o dom de Deus expresso na plenitude dos bens messiânicos. Já por isso, todo o
domingo é causa, espaço, tempo, modo da alegria no seu verdadeiro e genuíno
sentido.
Não
obstante, o III domingo do Advento é tradicionalmente assumido como o domingo “Gaudete” ou “Khaírete”, da alegria e da exultação. Com efeito, a liturgia
consagrou como antífona oficial do introito (cântico de entrada da Missa) o seguinte versículo Carta aos Filipenses (Fl 4,4.5): “Gaudete in Domino semper. (…) Gaudete! (…) Dominus prope est” (em grego: Khaírete en
Kyríôi pántote […] Khaírete! […] Ho Kýrios eggýs): “Alegrai-vos no
Senhor. Exultai de alegria: o Senhor está perto”. Na verdade, a caminhada
dos crentes em Igreja para o Natal lembra a peregrinação judaica a Jerusalém,
que decorria na penosidade e cansaço. Porém, quando divisavam a Cidade, o ânimo
fica impante de satisfação: era o prelúdio da alegria que sentiriam nas festas
da sua Cidade Santa, a eloquente testemunha do Senhor para com todos os povos.
No Ano B, a alegria evangélica tem o seu auge na proclamação
do Magnificat de Maria (Lc 1,46-55) – hoje alçado em salmo responsorial –, o cântico de
exultação de alegria no Senhor por parte da sua humilde serva para quem Ele fez
maravilhas porque santo é o seu nome, aliás como tem sido e será o seu timbre
colocar-se do lado dos pequeninos. E tanto assim é que a sua humilde serva será
proclamada bem-aventurada, feliz ou ditosa (makaría) por todas as gerações.
Aquela que esperava o nascimento daquele que já trazia em seu
virginal seio canta a alegria da alma no Senhor. E fá-lo em resposta à
proclamação que dela e para ela fez Isabel, que foi a primeira a proclamá-la
bendita entre as mulheres (eulogêménê en gynaixín) e feliz ou bem-aventurada (makaría), porque Maria acreditou no cumprimento (teleíôsis) de tudo o que lhe foi revelado (laléô) da parte do Senhor (Lc 1,45). Maria é, pois, saudada por Deus através do anjo (Khaîre kekharitôménê, Avé, Cheia de Graça), por Isabel, por cada um de nós, por toda a Igreja,
visto que é a “causa da nossa alegria”, como cantamos na ladainha lauretana, e
Deus a presenteou com o seu olhar de graça (epiblépô) (Lc 1,48), fez (verbo
utilizado para a criação) para ela
grandes coisas (Lc 1,49), como vinha
a fazer desde Abraão (Lc 1,55) e continua
a fazer hoje e fará sempre.
Com este grandioso cântico de Maria, que Ela entoa por ter
sido vocacionada para uma alta e específica missão profética – dar à luz,
alimentar, educar, acompanhar e testemunhar o Messias –, a Igreja, nesta liturgia
faz-nos responder, num propósito também profético, messiânico e missionário à
leitura da profecia de Isaías em que se vislumbra a vocação messiânica que o
profeta sente e antecipa, plenamente cumprida por Cristo como Ele há de referir
(Lc 4,21) depois de ler na sinagoga em voz alta este trecho de Isaías (Is 61,1-2a). E também respondemos com este hino inspirado ao cântico de
alegria que o profeta entoa no contexto da espera da realização dos bens
messiânicos: anúncio da boa nova aos pobres; cura dos corações atribulados;
redenção dos cativos; liberdade dos prisioneiros; graça do Senhor; e, por
conseguinte, alegria, salvação à vista de e para todos, justiça que envolve a
pessoa e a comunidade, abundante produção dos frutos da terra, felicidade
conjugal, reino de justiça e de louvor – em suma, tudo o que Deus tem de bom
para nos oferecer e nos oferece.
O texto de Isaías (Is
61,1-2a.10-11), tomado para 1.ª leitura, integra o Tritoisaías como no
domingo anterior e tem dois trechos distintos: o primeiro (vv. 1-2a) pertence à primeira secção do capítulo 61, “a missão do
profeta”; e o segundo pertence à sua terceira secção, “o cântico de
reconhecimento” – ficando para outra ocasião “a maravilhosa restauração”.
No primeiro trecho, o profeta expõe o sentido da sua vocação
e missão. É o “ungido” do Senhor, sobre quem repousa o Espírito, que o move e o
impele para a missão – sucedia com os juízes e os antigos profetas (cf Nm 11,25-26; 24,2). Embora não mencione o termo “profeta”, trata-se de missão
eminentemente profética: ele é enviado por Deus e a missão tem a ver com o
serviço da Palavra. Porém, sabemos, pela leitura que Jesus faz desta profecia,
que é mais que profecia: é o anúncio da plenitude messiânica, da abundância, do
transbordar da alegria genuína.
A missão consiste no anúncio da “boa notícia” (“evangelho”), na cura dos corações feridos, na proclamação da liberdade
dos cativos prisioneiros e na promulgação do “ano da graça do Senhor” (alusão ao ano jubilar, celebrado de 50 em 50 anos, e ao ano sabático,
celebrado de 7 em 7 anos).
Os destinatários da mensagem de esperança são os “pobres”, isto
é, os carentes de bens, de dignidade, de liberdade e de direitos, mas que, pela
especial situação de sua miséria e necessidade são considerados os preferidos
de Deus e o objeto da peculiar ternura e proteção de Deus. São olhados com
simpatia e retratados como pessoas pacíficas, humildes, simples, piedosas,
cheias de “temor de Deus”, pois colocam-se diante do Senhor com serena
confiança, em total obediência e entrega. Representam a parte do Povo de Deus
maltratada e oprimida pelos poderosos, mas que se entrega com fé, humildade e
confiança nas mãos de Deus.
O segundo trecho (vv.
10-11) constitui o final do oráculo: após o anúncio de salvação, Jerusalém
manifesta regozijo e contentamento porque Deus vai revestir a sua Cidade de
salvação e justiça, como o noivo que cinge o diadema ou a noiva que se adorna
com suas joias, sendo que a última imagem – “como a terra faz brotar os gérmenes e o jardim germinar as sementes”
– sugere a vida e a fecundidade que resultarão da ação salvadora e libertadora
de Deus. E, como foi entredito, Jesus faz sua esta vocação e missão a transbordar de alegria e de beleza, na
sinagoga de Nazaré, quando lhe apõe a sua rubrica e chancela com o “Hoje cumpriu-se esta Escritura nos vossos
ouvidos” (Lc 4,21), que muda a
história dos filhos de Deus e contamina a criação inteira.
Por seu turno, Paulo (2.ª leitura: 1Ts 5,16-24), convicto na
necessidade e da relevância da alegria, que nos vem, não dos mundanais festejos
ou vãos prazeres, que depressa se tornam amargos, mas da que se recebe da
profecia e do sentir da maravilha que Deus faz em e para nós, associa-se a esta
poderosa vaga do dinamismo da alegria cristã expressa na fraternidade que
resulta da consciência que temos de sermos filhos do Pai comum e de habitarmos
esta Casa comum que a sua generosa liberalidade nos concedeu. E, com a sua
parenética totalizante e repetitiva, exorta: “Semper gaudete, sine intermissione
orate. In omnibus gratias agite…” (em grego: Pántote khaírete, adialeíptôs proseúkhethe,
en pantì eukharisteîte…) – “Alegrai-vos sempre! Orai sem
cessar! (1Ts 5, 16-17). E mais
adiante: “Não apagueis o Espírito. Examinai tudo: guardai o que é bom!”.
Depois, vem
o Evangelho (Jo 1,6-8.19-28) com a apresentação da figura de João Batista. Como a 1.ª leitura, o texto
evangélico proclamado nesta liturgia oferece dois trechos descontínuos. O
primeiro (vv. 6-8) apresenta
a personalidade de João; e o segundo, o seu testemunho.
De João diz-se que é “um homem” e que foi “enviado por Deus”.
É, pois, Deus o agente principal, já que o escolhe e o envia ao mundo com uma
missão concreta, segundo o seu método usual de intervir, o de chamar homens e confiar-lhes
missões. E a missão do Batista é “dar testemunho da luz”, que testemunha a
realidade que vem de Deus e com que Deus quer construir para os homens um mundo
novo de felicidade estribada na alegria e originadora da alegria. João não age
por sua iniciativa, mas em resposta à escolha divina. Por outro lado, o Batista
não é a luz, pois não tem competência para eliminar a escuridão, mas é “a testemunha”
prévia e antecipante que prepara os homens para o acolhimento da luz. É o precursor.
No
segundo trecho (vv. 19-28), temos o “testemunho” de João. Perante a delegação de sacerdotes
e levitas (encarregados de vigiar a ortodoxia
e a fidelidade à ordem religiosa), enviada de Jerusalém para investigar João, o interpelado,
cuja personalidade e testemunho inquietava os líderes judaicos, mercê do
ambiente de messianismo exacerbado epocal, descarta totalmente a hipótese de
ser o Messias, como recusa identificar-se com Elias ou assumir o título de “o
profeta”. Efetivamente, João não aceita que lhe atribuam qualquer função que centre
a atenção na sua pessoa, pois não busca protagonismo, glória ou autoafirmação,
pois não vem em seu próprio nome; a sua missão é dar testemunho da “luz”, sendo
nessa “luz” que o povo se deve focar.
Enfim, João (no hebraico Yhôhanan [=
«YHWH faz graça»]), um nome
excecional, pois não havia ninguém assim chamado, vem, como diz Dom António
Couto, “entalado entre os dois Testamentos,
fechando a porta do Antigo” e “abrindo a porta do Novo”, “resume o Antigo
Testamento e oferece o sumário do Novo Testamento. Focado na luz, que é Cristo,
o Batista aparece “no outro lado do Jordão” (Jo 1,28; 3,26; 10,40), mas apontando sempre para ELE, que é a Luz, a causa
da Alegria, que o mundo não pode dar, a Vida, a Salvação. É preciso que João diminua
e o Cristo cresça – algo que os discípulos e missionários têm de assumir para
si
E, por isso,
podemos cantar “Magnificat anima mea
Dominum et exsultavit spiritus meus in salvatore meo”.
2020.12.13 –
Louro de Carvalho
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