domingo, 13 de dezembro de 2020

“Domingo, vida e alegria”

 

Este era o tema geral das sessões das tardes de domingo após o passeio no Seminário de Nossa Senhora de Lurdes em Resende no tempo em que era vice-reitor o então Cónego António José Rafael, com quem estudei nos primeiros dois anos de seminarista e que passou a diretor espiritual diocesano dos Cursos de Cristandade e, depois, a Bispo de Bragança e Miranda.

Na verdade, todo o domingo, Dia do Senhor, é expressão de vida, e vida nova, adquirida pela vivência da Ressurreição de Cristo e pela efusão pentecostal do Espírito Santo, o dom de Deus expresso na plenitude dos bens messiânicos. Já por isso, todo o domingo é causa, espaço, tempo, modo da alegria no seu verdadeiro e genuíno sentido.

Não obstante, o III domingo do Advento é tradicionalmente assumido como o domingo “Gaudete” ou “Khaírete”, da alegria e da exultação. Com efeito, a liturgia consagrou como antífona oficial do introito (cântico de entrada da Missa) o seguinte versículo Carta aos Filipenses (Fl 4,4.5): “Gaudete in Domino semper. (…) Gaudete! (…) Dominus prope est(em grego: Khaírete en Kyríôi pántote […] Khaírete! […] Ho Kýrios eggýs): “Alegrai-vos no Senhor. Exultai de alegria: o Senhor está perto”. Na verdade, a caminhada dos crentes em Igreja para o Natal lembra a peregrinação judaica a Jerusalém, que decorria na penosidade e cansaço. Porém, quando divisavam a Cidade, o ânimo fica impante de satisfação: era o prelúdio da alegria que sentiriam nas festas da sua Cidade Santa, a eloquente testemunha do Senhor para com todos os povos.

No Ano B, a alegria evangélica tem o seu auge na proclamação do Magnificat de Maria (Lc 1,46-55) – hoje alçado em salmo responsorial –, o cântico de exultação de alegria no Senhor por parte da sua humilde serva para quem Ele fez maravilhas porque santo é o seu nome, aliás como tem sido e será o seu timbre colocar-se do lado dos pequeninos. E tanto assim é que a sua humilde serva será proclamada bem-aventurada, feliz ou ditosa (makaría) por todas as gerações.   

Aquela que esperava o nascimento daquele que já trazia em seu virginal seio canta a alegria da alma no Senhor. E fá-lo em resposta à proclamação que dela e para ela fez Isabel, que foi a primeira a proclamá-la bendita entre as mulheres (eulogêménê en gynaixín) e feliz ou bem-aventurada (makaría), porque Maria acreditou no cumprimento (teleíôsis) de tudo o que lhe foi revelado (laléô) da parte do Senhor (Lc 1,45). Maria é, pois, saudada por Deus através do anjo (Khaîre kekharitôménê, Avé, Cheia de Graça), por Isabel, por cada um de nós, por toda a Igreja, visto que é a “causa da nossa alegria”, como cantamos na ladainha lauretana, e Deus a presenteou com o seu olhar de graça (epiblépô) (Lc 1,48), fez (verbo utilizado para a criação) para ela grandes coisas (Lc 1,49), como vinha a fazer desde Abraão (Lc 1,55) e continua a fazer hoje e fará sempre.

Com este grandioso cântico de Maria, que Ela entoa por ter sido vocacionada para uma alta e específica missão profética – dar à luz, alimentar, educar, acompanhar e testemunhar o Messias –, a Igreja, nesta liturgia faz-nos responder, num propósito também profético, messiânico e missionário à leitura da profecia de Isaías em que se vislumbra a vocação messiânica que o profeta sente e antecipa, plenamente cumprida por Cristo como Ele há de referir (Lc 4,21) depois de ler na sinagoga em voz alta este trecho de Isaías (Is 61,1-2a). E também respondemos com este hino inspirado ao cântico de alegria que o profeta entoa no contexto da espera da realização dos bens messiânicos: anúncio da boa nova aos pobres; cura dos corações atribulados; redenção dos cativos; liberdade dos prisioneiros; graça do Senhor; e, por conseguinte, alegria, salvação à vista de e para todos, justiça que envolve a pessoa e a comunidade, abundante produção dos frutos da terra, felicidade conjugal, reino de justiça e de louvor – em suma, tudo o que Deus tem de bom para nos oferecer e nos oferece. 

O texto de Isaías (Is 61,1-2a.10-11), tomado para 1.ª leitura, integra o Tritoisaías como no domingo anterior e tem dois trechos distintos: o primeiro (vv. 1-2a) pertence à primeira secção do capítulo 61, “a missão do profeta”; e o segundo pertence à sua terceira secção, “o cântico de reconhecimento” – ficando para outra ocasião “a maravilhosa restauração”.

No primeiro trecho, o profeta expõe o sentido da sua vocação e missão. É o “ungido” do Senhor, sobre quem repousa o Espírito, que o move e o impele para a missão – sucedia com os juízes e os antigos profetas (cf Nm 11,25-26; 24,2). Embora não mencione o termo “profeta”, trata-se de missão eminentemente profética: ele é enviado por Deus e a missão tem a ver com o serviço da Palavra. Porém, sabemos, pela leitura que Jesus faz desta profecia, que é mais que profecia: é o anúncio da plenitude messiânica, da abundância, do transbordar da alegria genuína.

A missão consiste no anúncio da “boa notícia” (“evangelho”), na cura dos corações feridos, na proclamação da liberdade dos cativos prisioneiros e na promulgação do “ano da graça do Senhor” (alusão ao ano jubilar, celebrado de 50 em 50 anos, e ao ano sabático, celebrado de 7 em 7 anos).

Os destinatários da mensagem de esperança são os “pobres”, isto é, os carentes de bens, de dignidade, de liberdade e de direitos, mas que, pela especial situação de sua miséria e necessidade são considerados os preferidos de Deus e o objeto da peculiar ternura e proteção de Deus. São olhados com simpatia e retratados como pessoas pacíficas, humildes, simples, piedosas, cheias de “temor de Deus”, pois colocam-se diante do Senhor com serena confiança, em total obediência e entrega. Representam a parte do Povo de Deus maltratada e oprimida pelos poderosos, mas que se entrega com fé, humildade e confiança nas mãos de Deus.

O segundo trecho (vv. 10-11) constitui o final do oráculo: após o anúncio de salvação, Jerusalém manifesta regozijo e contentamento porque Deus vai revestir a sua Cidade de salvação e justiça, como o noivo que cinge o diadema ou a noiva que se adorna com suas joias, sendo que a última imagem – “como a terra faz brotar os gérmenes e o jardim germinar as sementes” – sugere a vida e a fecundidade que resultarão da ação salvadora e libertadora de Deus. E, como foi entredito, Jesus faz sua esta vocação e missão a transbordar de alegria e de beleza, na sinagoga de Nazaré, quando lhe apõe a sua rubrica e chancela com o “Hoje cumpriu-se esta Escritura nos vossos ouvidos(Lc 4,21), que muda a história dos filhos de Deus e contamina a criação inteira.

Por seu turno, Paulo (2.ª leitura: 1Ts 5,16-24), convicto na necessidade e da relevância da alegria, que nos vem, não dos mundanais festejos ou vãos prazeres, que depressa se tornam amargos, mas da que se recebe da profecia e do sentir da maravilha que Deus faz em e para nós, associa-se a esta poderosa vaga do dinamismo da alegria cristã expressa na fraternidade que resulta da consciência que temos de sermos filhos do Pai comum e de habitarmos esta Casa comum que a sua generosa liberalidade nos concedeu. E, com a sua parenética totalizante e repetitiva, exorta: “Semper gaudete, sine intermissione orate. In omnibus gratias agite…(em grego: Pántote khaírete, adialeíptôs proseúkhethe, en pantì eukharisteîte…)Alegrai-vos sempre! Orai sem cessar! (1Ts 5, 16-17). E mais adiante: “Não apagueis o Espírito. Examinai tudo: guardai o que é bom!”.

Depois, vem o Evangelho (Jo 1,6-8.19-28) com a apresentação da figura de João Batista. Como a 1.ª leitura, o texto evangélico proclamado nesta liturgia oferece dois trechos descontínuos. O primeiro (vv. 6-8) apresenta a personalidade de João; e o segundo, o seu testemunho.

De João diz-se que é “um homem” e que foi “enviado por Deus”. É, pois, Deus o agente principal, já que o escolhe e o envia ao mundo com uma missão concreta, segundo o seu método usual de intervir, o de chamar homens e confiar-lhes missões. E a missão do Batista é “dar testemunho da luz”, que testemunha a realidade que vem de Deus e com que Deus quer construir para os homens um mundo novo de felicidade estribada na alegria e originadora da alegria. João não age por sua iniciativa, mas em resposta à escolha divina. Por outro lado, o Batista não é a luz, pois não tem competência para eliminar a escuridão, mas é “a testemunha” prévia e antecipante que prepara os homens para o acolhimento da luz. É o precursor.

No segundo trecho (vv. 19-28), temos o “testemunho” de João. Perante a delegação de sacerdotes e levitas (encarregados de vigiar a ortodoxia e a fidelidade à ordem religiosa), enviada de Jerusalém para investigar João, o interpelado, cuja personalidade e testemunho inquietava os líderes judaicos, mercê do ambiente de messianismo exacerbado epocal, descarta totalmente a hipótese de ser o Messias, como recusa identificar-se com Elias ou assumir o título de “o profeta”. Efetivamente, João não aceita que lhe atribuam qualquer função que centre a atenção na sua pessoa, pois não busca protagonismo, glória ou autoafirmação, pois não vem em seu próprio nome; a sua missão é dar testemunho da “luz”, sendo nessa “luz” que o povo se deve focar.

Se até aqui as respostas de João eram pela negativa – não é o Messias, não é Elias, não é o Profeta –, agora à pergunta “Quem és tu?” define-se respondendo: Eu sou uma voz…”. Ora a voz (phonê), como termo relacional, supõe ouvintes, não importando o rosto, mas o conteúdo. E esta é a voz com que Deus passa aos homens a sua mensagem (palavra – lógos), a partir do vazio do deserto, que simboliza o vazio do coração humano e o da mediocridade do mundo dos homens. Ora, se João recusa qualquer título tradicional, porque batiza? Ora bem, João quer desligar o seu batismo dos rituais judaicos, constituindo-o como um primeiro passo para acolher “a luz”. Por isso, prefere desvalorizar o batismo com água, um mero símbolo de transformação e de adesão a uma nova realidade, e apontar para “Aquele” que vem e a quem João não é digno “de desatar as correias das sandálias”, pois Esse é que é “a luz” que vai libertar o homem da escuridão, da cegueira, da mentira, do egoísmo, do pecado. É o batismo do Messias (batismo no Espírito) que transformará totalmente os corações dos homens, os fará livres e lhes dará a vida autêntica. João é a voz, ao passo que o Messias (Khristós) é a Palavra (Lógos, Verbum).
A indicação de que os líderes não “conhecem” Esse que já chegou e do qual João apenas é “a voz” é a denúncia da situação em que se encontra a classe dirigente judaica, instalada nos seus privilégios, certezas e preconceitos e muito pouco aberta à novidade e aos desafios de Deus.

Enfim, João (no hebraico Yhôhanan [= «YHWH faz graça»]), um nome excecional, pois não havia ninguém assim chamado, vem, como diz Dom António Couto, “entalado entre os dois Testamentos, fechando a porta do Antigo” e “abrindo a porta do Novo”, “resume o Antigo Testamento e oferece o sumário do Novo Testamento. Focado na luz, que é Cristo, o Batista aparece “no outro lado do Jordão” (Jo 1,28; 3,26; 10,40), mas apontando sempre para ELE, que é a Luz, a causa da Alegria, que o mundo não pode dar, a Vida, a Salvação. É preciso que João diminua e o Cristo cresça – algo que os discípulos e missionários têm de assumir para si

E, por isso, podemos cantarMagnificat anima mea Dominum et exsultavit spiritus meus in salvatore meo”.

2020.12.13 – Louro de Carvalho

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