segunda-feira, 31 de julho de 2017

A postura de quem distribui a Sagrada Comunhão

Um professor de História da Igreja contava-nos o episódio do superior do convento que periodicamente passava revista às celas dos seus frades acompanhado por alguns conselheiros.
Ao passar pela cela de um dos religiosos e vendo como tudo estava arrumadinho, limpo e asseado, deu graças a Deus: Bendito sejas, Senhor, por este nosso irmão. É tão santo que a cela será mesmo o espelho da sua alma!
Porém, os conselheiros esperavam a reação do bondoso superior ao passar pela cela de um dos religiosos em que estava tudo desarrumado, a cama por fazer e as peças de roupa ou de calçado para cada lado. E o superior, otimista como era e consciente de que não lhe era dado fazer juízos precipitados, rezou: Bendito sejas, Senhor, por este nosso irmão. É tão santo e tão unido a Ti espiritualmente que não lhe sobra tempo algum para tratar das cosias materiais!
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Lembro-me deste relato de Monsenhor Augusto Campos Neves, quando observo a maneira como alguns ministros da Comunhão, obviamente falando da postura exterior, dado que das intenções e da piedade de cada um ou de cada uma só Deus sabe.
Alguns distribuem a Sagrada Comunhão com um esgar sorumbático, bastante carregado, às vezes meio emproado. Salvo quando tal aspeto exterior revele soberba superioridade ou ligeireza de entendimento para evidenciar protagonismo, apraz-me aplaudir tal postura de sobriedade, uma vez que se trata de matéria bem séria e nobre: estão a lidar com o Corpo de Cristo e a oferecê-lo em alimento aos irmãos e irmãs que se dirigem a estes ministros ordinários ou extraordinários enquanto distribuidores do “Sacramento”, fruto do Sacrifício de Cristo.    
Na verdade, a celebração eucarística é o centro da vida cristã, para a Igreja universal e para as suas comunidades locais. Efetivamente, na Eucaristia “está contido todo o bem espiritual da Igreja – o próprio Cristo, nossa Páscoa e pão vivo, que, pela sua carne vivificada e vivificadora sob a ação do Espírito Santo, dá a vida aos homens, que são assim convidados e levados a oferecerem-se juntamente com Ele, a si mesmos, os seus trabalhos e toda a criação (cf SAGRADA COMUNHÃO E CULTO DO MISTÉRIO EUCARÍSTICO FORA DA MISSA, 1).
De facto, Cristo nosso Senhor, “é imolado no sacrifício da Missa quando começa a estar sacramentalmente presente como alimento espiritual dos fiéis sob as espécies do pão e do vinho”; e, “depois de oferecido o sacrifício, enquanto se conserva a Eucaristia nas igrejas ou oratórios”, é verdadeiro Emanuel ou “Deus connosco”, pois, dia e noite, Ele está no meio de nós e habita em nós “cheio de graça e de verdade” (cf Id, 2). Assim, a ninguém é lícito duvidar de “que todos os cristãos devem prestar com veneração a este Sacramento o culto de latria que é devido ao verdadeiro Deus”. Pois não deve ser menos adorado pelo facto de o Senhor Jesus o ter instituído “com o fim de ser comido (cf Id, 3).
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Todavia, como entender a postura daqueles e daquelas que se deslocam com a sagrada píxide ou cibório visivelmente alegres e, postados ou postadas frente a cada comungante, elevam a hóstia e, com um sorriso discreto, proclamam “O Corpo De Cristo!” e colocam a sagrada partícula na língua do comungante ou na mão esquerda do mesmo, que de imediato a recolhe com a mão direita e a comunga? É uma atitude muito diferente da acima descrita. Significará, mesmo assim, uma postura tão diferente? Se efetivamente tal postura não significar apenas uma satisfação pessoal, mas se for sinal exterior dum serviço eclesial, um serviço à comunhão do melhor bem da santificação dos crentes, à partilha das coisas santas, à comunhão dos santificados pela graça de Deus – então este ministro da apresentação e distribuição do Corpo de Cristo merece os maiores e melhores parabéns. Com efeito, encarna o sentido festivo da celebração da Eucaristia, mesmo que que este momento aconteça fora da celebração da Missa.
A festa, sem nos dispensar da sobriedade própria da compenetração sobre a profundeza do mistério, não nos pode obrigar à soturnidade de postura, mas deve induzir-nos à alegria de vivermos como irmãos e filhos do mesmo e comum Pai.
Na verdade, os motivos de festa na celebração eucarística – ou de Ação de graças – são mais que muitos:
- O Salvador instituiu, na ceia da noite em que foi entregue, o sacrifício eucarístico do seu corpo e sangue, para perpetuar pelos séculos, até voltar, o sacrifício da cruz, confiando à Igreja, sua esposa amada, o memorial da sua morte e ressurreição: sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade, banquete pascal em que se recebe Cristo, a alma se enche de graça e nos é dado o penhor da glória futura (cf CIC, 1323). Nela, Cristo associa a Igreja e todos os seus membros ao seu sacrifício de louvor e de ação de graças, oferecido ao Pai uma vez por todas na cruz; nela, Ele derrama as graças da salvação sobre o seu corpo, que é a Igreja (cf CIC, 1407).
- Como fonte e cume da vida eclesial, a Eucaristia liga-nos à Ceia e ao Calvário, sacia-nos com o banquete do Senhor, une-nos à Liturgia do céu, antecipando-nos a vida eterna, quando Deus for tudo em todos (1Cor 15,18; CIC, 1419) e constitui-se como o coração e o cume da vida da Igreja e “o resumo e a súmula da nossa fé: “A nossa maneira de pensar está de acordo com a Eucaristia: e a Eucaristia confirma a nossa maneira de pensar”. (cf CIC, 1324-1238; 1406;1407).
- Como Memorial da paixão e ressurreição do Senhor, é o Santo Sacrifício, que atualiza o único sacrifício de Cristo Salvador e inclui a oferenda da Igreja; e é o santo Sacrifício da Missa, Sacrifício de louvor» (Heb 13,15), Sacrifício espiritual, Sacrifício puro e santo, pois completa e ultrapassa todos os sacrifícios da Antiga Aliança. É a santa e divina Liturgia, porque toda a liturgia da Igreja encontra o seu centro e a sua expressão mais densa na celebração deste sacramento; no mesmo sentido, é celebração dos Santos Mistérios; e é Santíssimo Sacramento, porque é o sacramento dos sacramentos (cf CIC, 1330; 1409). E chama-se Santíssimo Sacramento às sagradas espécies em reserva para comunhão dos doentes e adoração eucarística.
- Como Comunhão, une-nos a Cristo, que nos torna participantes do seu corpo e do seu sangue, para formarmos um só corpo; chama-se-lhe as coisas santas (tà hágia; sancta) – é o sentido primário da “comunhão dos santos” de que fala o Símbolo dos Apóstolos –, pão dos anjos, pão do céu, remédio da imortalidadeviático... (cf CIC, 1331) e o ponto de partida para a comunhão dos bens materiais, sociais, morais e culturais em termos da solidariedade humana e cristã.
- E, como  Santa Missa,  termina com o envio dos fiéis (missio), para cumprirem a vontade de Deus na sua vida quotidiana (cf CIC, 1332), fazendo discípulos e cuidando dos pobres e doentes.
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Sobre a celebração da eucaristia, é de ter em conta que dispomos do testemunho de São Justino, mártir (século II), sobre as grandes linhas das sequências da celebração, que permanecem, no essencial, as mesmas até aos nossos dias em todas as grandes famílias litúrgicas. Justino explica por carta, cerca do ano 155, ao imperador pagão Antonino Pio (138-161) o que fazem os cristãos:
“No dia que chamam Dia do Sol, realiza-se a reunião num mesmo lugar de todos os que habitam a cidade ou o campo. Lêem-se as memórias dos Apóstolos e os escritos dos Profetas, tanto quanto o tempo o permite. Quando o leitor acabou, aquele que preside toma a palavra para incitar e exortar à imitação dessas belas coisas. Em seguida, levantamo-nos todos juntamente e fazemos orações por nós mesmos [...] e por todos os outros, [...] onde quer que estejam, para que sejamos encontrados justos por nossa vida e ações, e fiéis aos mandamentos, e assim obtenhamos a salvação eterna. Terminadas as orações, damo-nos um ósculo uns aos outros. Depois, apresenta-se a quem preside aos irmãos o pão e uma taça de água e vinho misturados. Ele toma-os e faz subir louvor e glória ao Pai do universo, pelo nome do Filho e do Espírito Santo, e dá graças (em grego: eucharistian) longamente, por termos sido julgados dignos destes dons. Quando ele termina as orações e ações de graças, todo o povo presente aclama: Ámen. [...] Depois de aquele que preside ter feito a ação de graças e de o povo ter respondido, aqueles a quem entre nós chamamos diáconos distribuem a todos os que estão presentes pão, vinho e água ‘eucaristizados’ e também os levam aos ausentes.” (cf CIC 1345).
E hoje a liturgia eucarística processa-se em conformidade com uma estrutura fundamental, que se vem conservando através dos séculos. Desdobra-se em dois grandes momentos, que formam basicamente uma unidade: a reunião, a liturgia da Palavra, com as leituras, a homilia e a oração universal; e a liturgia eucarística, com a apresentação do pão e do vinho, a ação de graças consecratória e a comunhão. Liturgia da Palavra e liturgia eucarística constituem juntas “um  só e mesmo ato de culto”, pois a mesa posta para nós na Eucaristia é igualmente a da Palavra de Deus e a do Corpo e Sangue do Senhor (cf CIC, 1346; 1408).  
E também é este o dinamismo da refeição pascal de Jesus Ressuscitado com os discípulos, pois, enquanto caminhavam, Ele explicava-lhes as Escrituras e, depois, pondo-Se à mesa com eles, “tomou o pão, proferiu a bênção, partiu-o e deu-lho” (cf CIC 1347; Lc 24,30) – aliás como na Última Ceia, em que tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e distribuiu-o por eles, dizendo: ‘Isto é o meu corpo, que vai ser entregue por vós; fazei isto em minha memória’; e, depois da ceia, fez o mesmo com o cálice, dizendo: ‘Este cálice é a nova Aliança no meu sangue, que vai ser derramado por vós’ (cf Lc 22,19-20; Mt 26,26-29; Mc 14,22-25; 1Cor 11,23-27).
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Recorde-se que o fim primário e primevo da reserva eucarística é a ministração do Viático aos moribundos, sendo os fins secundários a distribuição da comunhão e a adoração do Senhor presente no Santíssimo Sacramento. De facto, foi a conservação das sagradas espécies para os enfermos que originou o louvável costume de adorar o alimento celeste que se guarda nos templos e oratórios – culto de adoração fundado na razão válida e segura da fé na presença real do Senhor e conducente à manifestação externa e pública desta fé eucarística.
E clarifique-se que, na celebração da Missa, os principais modos da presença de Cristo na Igreja se manifestam gradualmente: primeiro, na comunidade dos fiéis reunidos em seu nome; depois, na Palavra, que se proclama e explica em Igreja; igualmente, na pessoa do ministro que preside in persona Christi; e, de modo eminente, sob as espécies eucarísticas de pão e de vinho. Na verdade, no Sacramento da Eucaristia está presente, de modo absolutamente singular, Cristo todo inteiro, Deus e homem, substancialmente e sem interrupção. Esta – a presença de Cristo sob as espécies – “chama-se real por excelência, não por exclusão, como se as outras não fossem reais”. (cf SAGRADA COMUNHÃO E CULTO DO MISTÉRIO EUCARÍSTICO FORA DA MISSA, 5-6).
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Por tudo isto, também o comungante deve ter uma postura – não aligeirada, espetacular, soberba ou atabalhoada – e, sim, condigna, sóbria, mas alegre e festiva!
CIC – Catecismo da Igreja Católica

2017.07.31 – Louro de Carvalho

domingo, 30 de julho de 2017

As questões do ciclo político na entrevista do DN ao Presidente

O DN de hoje, 30 de julho, publica uma entrevista ao Presidente da República, que distribui por diversas secções. Interessa comentar a que diz respeito ao atual o ciclo político.
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Questionado quanto à acusação, sobretudo por parte do eleitorado de centro-direita, de que “O Presidente leva o Governo ao colo”, Marcelo Rebelo de Sousa reage escorado no papel constitucional do Presidente para cujo conhecimento invoca o seu estatuto de antigo deputado constituinte e o de professor de Direito Constitucional – o que é realmente excrescente, como se, por alegada ignorância, Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva não conhecessem o papel constitucional do Presidente. Com efeito, um órgão unipessoal desta natureza dispõe da Casa Civil e da Casa Militar, além de inúmeros conselheiros e assessores.
Depois, Marcelo diz que “o Presidente não tem de ter confiança política pessoal no Primeiro-Ministro ou nos membros do Governo”. Aqui, tem a razão por inteiro, o que todos nós sabemos, pois a gestão suprema do Estado não é assunto pessoal nem de clube de família ou de amigos.
Diz o entrevistado que o Presidente
“Tem de ter uma confiança institucional ou, se [se] quiser, político-institucional; o que significa que o Presidente deve permanentemente garantir o respeito dos princípios fundamentais e dos direitos consagrados na Constituição e deve, ao mesmo tempo, também garantir o cumprimento de certas metas institucionais que, no caso presente, são o respeito do Direito Internacional, o respeito da pertença de Portugal à NATO, da pertença de Portugal à CPLP, da pertença de Portugal às Nações Unidas e, de forma particular, da pertença de Portugal à União Europeia, implicando isso o respeito do Direito Europeu, económico e financeiro, concorde-se ou não com ele”.
E vai mais adiante ao dar largas a certa ambiguidade sobre o papel do Governo e do Presidente:
“O Governo está à vontade de tudo fazer para o alterar, mas enquanto não for alterado tem de o cumprir. Portanto, cabe ao Presidente ir garantindo que há um cumprimento dessas metas e desses compromissos, dos quais o mais falado ao longo deste tempo foi o do défice, mas não é apenas o défice; portanto, isto é a relação que um Presidente deve ter com um governo de acordo com a Constituição e no quadro daquelas prioridades que o Governo sabe que são prioridades institucionais que deve cumprir.”.
Primeiro, pertence ao estatuto constitucional do Presidente da República, segundo o artigo 120.º da CRP representar a República Portuguesa”, garantir “a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas” e ser, “por inerência, Comandante Supremo das Forças Armadas”.  Será que na garantia do “regular funcionamento das instituições democráticas” cabe o policiamento presidencial da ação do Governo? E esse policiamento atinge apenas os tratados e compromissos internacionais? E que fazer quanto ao não cumprimento dos outros misteres próprios do Governo?
Se lermos o rol das competências presidenciais, vemos que, no atinente às relações internacionais, lhe cabe “ratificar os tratados internacionais, depois de devidamente aprovados” (vd alínea b do art.º 135.º da CRP) e não propriamente a fiscalização do seu cumprimento. Aliás, embora incumba ao Governo a “condução da política geral do país” e ser “o órgão superior da administração pública” (vd art.º 182.º da CRP), é da Assembleia da República, e não do Presidente da República, a competência de:
a) Vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os atos do Governo e da Administração; b) Apreciar a aplicação da declaração do estado de sítio ou do estado de emergência; c) Apreciar, para efeito de cessação de vigência ou de alteração, os decretos-leis, salvo os feitos no exercício da competência legislativa exclusiva do Governo, e os decretos legislativos regionais previstos na alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º; d) Tomar as contas do Estado e das demais entidades públicas que a lei determinar, as quais serão apresentadas até 31 de dezembro do ano subsequente, com o parecer do Tribunal de Contas e os demais elementos necessários à sua apreciação; e) Apreciar os relatórios de execução dos planos nacionais.
E a CRP não define que tipo de cooperação existe ou deve existir entre Presidente e Governo.
Por isso, pode chamar-se coabitação, coexistência, cooperação institucional, cooperação estratégica, cooperação política, cooperação político-estratégica, cumprimento estrito de funções, ajuda mútua, interdependência. Só não pode haver confusão de poderes.
Em relação ao Governo, compete ao Presidente (segundo a alínea f) do art.º 133.º da CRP) “nomear o Primeiro-Ministro, nos termos do n.º 1 do artigo 187.º: “ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais” (n.º 1), sendo os restantes membros do Governo “nomeados pelo Presidente da República, sob proposta do Primeiro-Ministro” (n.º 2). E, segundo a alínea g) do art.º 133.º, só pode demitir o Governo, nos termos do n.º 2 do art.º 195.º, e exonerar o Primeiro-Ministro, nos termos do n.º 4 do artigo 186.º” – isto é: “só pode demitir o Governo quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado” (art.º 195.º/2); e, “em caso de demissão do Governo, o Primeiro-Ministro do Governo cessante é exonerado na data da nomeação e posse do novo Primeiro-Ministro” (art.º 186.º/4).
Obviamente que, segundo a alínea e) do art.º 133.º da CRP, pode atuar indiretamente contra o Governo pela dissolução da Assembleia da República, “observado o disposto no artigo 172.º, ouvidos os partidos nela representados e o Conselho de Estado” – ou seja;
1. A Assembleia da República não pode ser dissolvida nos seis meses posteriores à sua eleição, no último semestre do mandato do Presidente da República ou durante a vigência do estado de sítio ou do estado de emergência. 2. A inobservância do disposto no número anterior determina a inexistência jurídica do decreto de dissolução. 3. A dissolução da Assembleia não prejudica a subsistência do mandato dos Deputados, nem da competência da Comissão Permanente, até à primeira reunião da Assembleia após as subsequentes eleições.
Além disso, sobre responsabilidade do Governo, o art.º 190.º da CRP estabelece genericamente:
“O Governo é responsável perante o Presidente da República e a Assembleia da República”.
E o art.º 191.º estabelece, sobre a responsabilidade dos membros do Governo:
1. O Primeiro-Ministro é responsável perante o Presidente da República e, no âmbito da responsabilidade política do Governo, perante a Assembleia da República. 2. Os Vice-Primeiros-Ministros e os Ministros são responsáveis perante o Primeiro-Ministro e, no âmbito da responsabilidade política do Governo, perante a Assembleia da República. 3. Os Secretários e Subsecretários de Estado são responsáveis perante o Primeiro-Ministro e o respetivo Ministro.
Em nenhum caso está qualificada a responsabilidade do Governo ou do Primeiro-Ministro perante o Presidente da República, ao passo que, em relação ao Parlamento, o Governo tem definida uma responsabilidade “política”.
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Depois, olhando “para a experiência constitucional portuguesa”, Marcelo evoca “duas situações em que o Presidente alegadamente interveio de forma relativamente rápida:
“O caso do Presidente Ramalho Eanes, porque o Governo do então Primeiro-Ministro Mário Soares apresentou uma moção de confiança e foi derrotado e, portanto, houve uma queda do Governo e a necessidade de se formar um governo, chamemos-lhe socialista com centristas e com independentes; e foi o caso do Presidente Mário Soares, porque foi votada uma moção de censura na Assembleia da República que o levou a ter de optar entre aceitar um governo que lhe era proposto ou dissolver o Parlamento”.
Como é que Marcelo pode falar da rapidez de atuação de Eanes, se o I Governo Constitucional caiu por não aprovação de moção de confiança a 7 de dezembro de 1977 e o II Governo só foi nomeado e empossado a 23 de janeiro de 1978, sem ter havido dissolução do Parlamento e novas eleições? Ou se o Governo do Bloco Central – que surgiu de eleições realizadas a 25 de abril de 1983 em virtude de dissolução do Parlamento – só foi empossado a 9 de junho de 1983? E se o mesmo assinou o Tratado de Adesão à CEE a 12 de junho já sob o látego cavaquista de denúncia do acordo de coligação e o Governo que se lhe seguiu só foi empossado a 6 de novembro de 1985? De facto, embora Portugal não seja exemplo de retardamento na demora de formação de governos, também não é exemplo de rapidez, muito menos com Eanes, ressalvando as circunstâncias dificílimas em que exerceu o cargo de Presidente da República!
Se Marcelo fala de longa coexistência de Soares com Aníbal e de Aníbal com José Sócrates, também pode falar da coexistência de Sampaio com Durão Barroso, sendo que a atitude de Sampaio e dos barões do PSD foi indescritível no cerco a Santana Lopes; e a postura de Cavaco a Sócrates após a reeleição presidencial também foi incrível, até porque, segundo veio a dizer mais tarde, não notou nele nenhum indício de comportamento irregular. E porque não saudou Marcelo a paciente coexistência de Eanes com sete primeiros-ministros e 10 governos?
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No atinente à sua presidência, Marcelo refere que, à sua posse, Portugal estava em saída do processo de défice excessivo, após um período crítico e com urgentes prioridades económicas e financeiras: o controlo do défice; a recapitalização e consolidação do sistema bancário (estava em situação mais complexa do que aquela que ele imaginara como candidato); e a exigência de fazer tudo isto num clima de “equilíbrio das contas externas e passos para o crescimento económico, sem o qual o controlo do défice era sempre muito precário e de muito curta duração”. Era, pois, “um período muito complexo” a exigir estabilidade política, legislativa, fiscal, laboral e, sobretudo, “uma estabilidade essencial” para instituições que desconfiavam de Portugal (“instituições internas e internacionais, sobretudo económicas e financeiras”) “deixarem de desconfiar”. E confessa que “foi possível garantir a estabilidade política”. Porém, diz que, a partir do início de abril, quando em teoria, como Presidente poderia dissolver a Assembleia da República, “alguns dos eleitores de centro-direita esperaram isso ou desejaram isso ou ansiaram por isso e, nisso, tiveram alguma desilusão” – o que  estava completamente longe do seu pensamento, por ter “consequências dramáticas em termos do Orçamento do Estado para 2016”. Todavia, “foi possível fazer aprovar o Orçamento para 2016, o Orçamento para 2017 e estamos agora, decorrido quase um ano e meio, com alguns desafios que são iguais e outros desafios que são novos”.
Entre os iguais, conta a continuidade do controlo do défice (que tem de descer; e o Governo comprometeu-se com 1,5% do PIB); e a aceleração do crescimento (que Marcelo fala nos 3% para cumprir os objetivos do equilíbrio externo e do equilíbrio interno), pela garantia do “crescimento das exportações e do investimento que, por sua vez, permitem o crescimento da economia”. Depois, é preciso resolver o que falta: os ativos problemáticos do sistema bancário. Com efeito, “a questão da consolidação da banca conheceu um ano, um ano e meio, de passos positivos, mas há passos ainda por dar”. Mas isto continua a exigir a estabilidade política. E vêm as questões atinentes à mudança das leis, dos impostos, da legislação laboral, das condições dos custos de contexto…
E Marcelo – que, neste âmbito, apenas merece a crítica de não ter percebido enquanto candidato a complexidade do momento português; e agora colhe para si demasiados louros do controlo da crise – acaba por reconhecer que a criação de uma crise política prejudica as outras grandes prioridades nacionais. Na verdade, é necessário sempre
“Um período de tempo muito longo, porque entre as condições para dar qualquer passo que ponha em causa o Governo que existe ou, por maioria de razão, a Assembleia que existe, a convocação de eleições, a realização de eleições, a formação de Governo, a entrada em funções do Governo, temos meses que, mesmo que não encavalitem com o Orçamento do Estado, têm consequências verdadeiramente desastrosas para a economia e as finanças portuguesas”.
Por isso, o Presidente raciocina com razoabilidade política e sentido pragmático ao afirmar:
“Algum eleitorado de centro-direita que esperava a dissolução da Assembleia da República em abril, ou se não era em abril, um pouco mais tarde no decurso do ano passado, ou que periodicamente pensa que esse é um caminho que se coloca, tem de compreender que há realmente prioridades nacionais e que uma prioridade nacional é esta, nossa, concreta, de natureza económica e financeira e essa exige estabilidade política, que deve apontar para o cumprimento de legislaturas”.
Não se trata de levar o Governo ao colo, mas de “uma cooperação institucional em que estão bem definidas quais são algumas metas”, de que “o Governo não se deve afastar porque são compromissos internacionais, mas têm consequências na economia e nas finanças portuguesas”.
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Interpelado quanto à sua afirmação de que, embora não lhe coubesse afirmar que determinado partido devia mudar para haver uma oposição mais dinâmica, contudo defendera a estabilidade para todos, Governo, oposição e suas lideranças, vindo a explicitar, mais tarde, que Passos coelho ainda poderia ser Primeiro-Ministro, respondeu curto, porque interrompido:
“Eu penso que é muito importante para este objetivo de estabilidade política, e tenho-o repetido, que a área do Governo seja forte e coesa...”
E à interrupção em torno dos adjetivos “forte e coesa” deu seguimento referindo que “temos a noção de que esta fórmula governativa é uma fórmula original nunca ensaiada na vida política portuguesa”. Nesta situação, “é importante, para haver estabilidade política, que haja acordo sobre os orçamentos de Estado, sobre os programas de reforma e de estabilidade porque são documentos prévios fundamentais a apresentar à UE”, o que “implica um mínimo de coesão interna e um mínimo de força do Governo e dos partidos que o apoiam no Parlamento”.
Quanto à oposição, é de reconhecer que a sua missão “não é fácil”. Só tivemos um líder da oposição, Mário Soares, “que antes tivesse sido Primeiro-Ministro e que tenha continuado depois de ter sido Primeiro-Ministro a exercer as funções de liderança”. Teve uma oposição tão acidentada que, por causa de eleições presidenciais, saiu da liderança do partido e regressou, mas passando “por uma travessia do deserto muito complicada até, mais tarde, se formar um acordo muito transitório chamado Bloco Central”. Quanto a Passos Coelho, frisou:
“Teve um resultado como líder de coligação superior ao resultado do Partido Socialista, que veio a formar Governo e que está no Governo, e, portanto, tinha de fazer essa experiência de passagem à oposição ficando no Parlamento, intervindo no Parlamento”.
E julga fundamental que as oposições sejam fortes (são duas e não uma, pois onde havia coligação passou a haver dois partidos com estratégias e posicionamentos diversos e, até, candidaturas diferentes nalguns casos com relevância nas autárquicas). E assegura:
“Não há nada pior para um Presidente da República do que não ter dois termos de alternativa fortes; porque, no caso de existir uma situação crítica, aguda, insuperável num dos termos da alternativa, é bom ter outro termo da alternativa que possa governar o país.”.
Está visto que não basta que um partido tenha mais votos numas eleições para formar Governo. Pode mesmo “acontecer que um partido, o partido mais forte da oposição ou a coligação, tenha uma votação superior a um partido, neste caso o partido do Governo, e isso não chegue para ser governo”. Assim, o centro-direita, se quer ter a garantia de que vem a ser governo, “deve apontar para a maioria absoluta”, sendo que um bloco central é sempre uma emergência.
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Eis, de quem tem agenda política (oculta, mas vincada) e uma atuação política taticamente cooperante, um salomónico aviso ao Governo e à oposição!

2017.07.30 – Louro de Carvalho 

sábado, 29 de julho de 2017

Santa Marta, mulher de fé

Muitas vezes satisfazemo-nos em enclausurar determinadas personalidades, incluindo santos e santas, em rótulos dourados e isso nos satisfaz. Vem isto a propósito de Santa Marta cuja memória litúrgica é hoje objeto de celebração.
É certo que passou, com alguma razão, para a memória coletiva dos cristãos como a mulher da atividade em contraste com sua irmã Maria de Betânia, a contemplativa. Esquecemos que tal atividade era de serviço ao Senhor e configurava a hospitalidade própria dos judeus, que passou para a doutrina cristã, com base em Mateus (25,35.38.43.44) como uma das obras de misericórdia corporais, concretizada no acolhimento aos peregrinos e sem teto, como serviço prestado ao próprio Jesus (cf 25,40.45).
Assim, a nótula histórica que introduz a Missa e a Liturgia das Horas de Santa Marta especifica:
“Era irmã de Maria e de Lázaro. Quando recebia o Senhor em sua casa de Betânia, servia-O com grande diligência e, com suas orações obteve a ressurreição de seu irmão.”
Também a oração coleta da Missa, que se reza nas diversas horas da Liturgia das Horas, frisa a aceitação da hospitalidade oferecida por Marta a Jesus como pretexto para implorarmos do Senhor, por intercessão da Bem-aventurada, o merecimento de, “servindo a Cristo em cada um dos nossos irmãos”, sermos “recebidos nas moradas eternas”. 
A oração sobre as oblatas regista a nossa proclamação das maravilhas (não se tratará apenas da hospitalidade) realizadas pelo Senhor em Santa Marta como ponto de partida para solicitarmos de Deus que aceite “a oferta do nosso ministério” como aceitou “a sua generosa hospitalidade”. 
Por sua vez, a oração depois da comunhão faz-nos pedir ao Senhor que “a comunhão do Corpo e Sangue” de Cristo “nos afaste das coisas efémeras deste mundo, para que, a exemplo de Santa Marta”, servindo a Deus “com sincera caridade na terra, contemplemos eternamente” o Seu rosto no Céu. Afinal, Marta não se ocupava apenas das coisas da casa!
E um hino proposto para o Ofício de Leituras enaltece essa hospitalidade ativa de Marta como serviço a “tão grande Hóspede” e como forma de promoção da disponibilidade de Maria e de Lázaro para escutarem o Mestre. Vejamos o texto do hino:

Ó Santa Marta, mulher feliz,
nós vos queremos felicitar.
Vós merecestes receber Cristo
por muitas vezes em vosso lar.

Vós recebestes tão grande Hóspede
com mil cuidados, nosso Senhor,
em muitas coisas sempre solícita
e impelida por terno amor.

Enquanto alegre servis a Cristo,
Maria e Lázaro, vossos irmãos,
podem atentos receber dele
a graça e vida por refeição
Enquanto a vossa feliz irmã
com seus aromas a Cristo ungia,
serviço extremo vós dedicastes
a Quem à morte se dirigia.

Ó hospedeira feliz do Mestre,
nos corações acendei o amor,
para que sejam eternamente
lares amigos para o Senhor.

Seja à Trindade eterna glória!
E no céu queira nos hospedar
para convosco, no lar celeste,
louvor perene sem fim cantar.

Além disso, embora o Evangelho recomendado para a Missa seja Jo 11,19-27, pode ler-se em alternativa Lc 10, 38-42, que salienta, dentro da atividade hospitaleira, o ónus do trabalho: 
Jesus entrou em certa povoação e uma mulher chamada Marta recebeu-O em sua casa. Ela tinha uma irmã chamada Maria, que, sentada aos pés de Jesus, ouvia a sua palavra. Entretanto, Marta atarefava-se com muito serviço. Interveio então e disse: ‘Senhor, não Te importas que minha irmã me deixe sozinha a servir? Diz-lhe que venha ajudar-me’. 
O Senhor respondeu-lhe: ‘Marta, Marta, andas inquieta e preocupada com muitas coisas, quando uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada’.”. 
Marta, como responsável da casa, na ausência de Lázaro, queria atender o visitante e companheiros como todo o esmero oriental. E, como o trabalho doméstico estaria a ser demasiado pesado, com a familiaridade de que se reveste a interpelação, queixa-se ao Mestre da não ajuda de Maria na preparação da comida (μόνην με κατέλειπεν) e pede-lhe que a obrigue a ajudá-la. Na resposta, Jesus assume o mesmo tom familiar expresso na repetição do nome de Marta, mas dá a grande lição: andava mui atarefada (satagebat circa frequens ministerium; em grego, περιεσπατο περι πόλλην διακονίαν) com tantas coisas (no grego pode perceber-se que andava completamente distraída – da audição das palavra do Senhor – por causa do muito serviço) quando apenas uma só coisa é necessária, a escolhida por Maria.
Esta “uma só coisa” necessária é de tradução incerta: alguns códices permitem traduzir, “de uma só coisa há necessidade”; de outros infere-se, “poucas coisas são necessárias, ou melhor, uma só”. E Frederico Lourenço, no vol. I da sua tradução da Bíblia, refere para o segmento “Maria escolheu a melhor parte (την αγαθην μερίδα – a boa parte), que não lhe será tirada”:
A palavra parte (merís) poderia eventualmente ser entendida como se entende “parte” (méros) em 12:46 [por lapso escreveu 12:26], Mateus 24:51 e João 13:8, isto é no sentido de “lugar”. Segundo esta hipótese, Jesus estaria aqui a dizer: “Maria escolheu o bom lugar, que não lhe será tirado”, sendo esse bom lugar estar simplesmente sentada aos pés de Jesus.
Porém, todas estas hipóteses não eclipsam o sentido fundamental da lição de Jesus (estar aos pés do mestre significava entre os judeus aprender com ele). Com efeito, é mais importante atender à lição e vida do Reino do que atarefar-se com misteres que podem afastar-nos dele. Algo semelhante disse Jesus em Mateus: “Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo” (Mt 6,33). Não se trata, porém, diretamente da promoção da vida contemplativa sobre a vida ativa, mas da chamada de atenção para que os trabalhos secundários não se tornem obsessão de vida e impeçam de apreciar devidamente a doutrina do Reino e o Evangelho, que era a palavra que Jesus dirigia a Maria de Betânia.
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E Marta aprendeu a lição. Na verdade, a antífona da comunhão proposta para a Missa quando não há canto, é uma citação de João (Jo 11,27), Marta disse a Jesus: Vós sois o Messias, o Filho de Deus vivo, que veio ao mundo”. 
Por seu turno, Santo Agostinho ensina num dos seus sermões:
“Marta e Maria eram irmãs, não apenas irmãs de sangue, mas também pelos sentimentos religiosos. Ambas estavam unidas ao Senhor; ambas, em perfeita harmonia, serviam ao Senhor corporalmente presente. Marta recebeu-o como costumam ser recebidos os peregrinos. No entanto, era a serva que recebia o seu Senhor; uma doente que acolhia o Salvador; uma criatura que hospedava o Criador. Recebeu o Senhor para lhe dar o alimento corporal, ela que precisava do alimento espiritual. O Senhor quis tomar a forma de servo e ser, nesta condição, alimentado pelos servos, por condescendência, não por necessidade. Também foi por condescendência que se apresentou para ser alimentado, pois tinha assumido um corpo que lhe fazia sentir fome e sede.” (cf Sermo 103, 1-2. 6: PL 38, 613.615).
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E o Evangelho recomendado para a Missa (Jo 11,19-27) contém o ato de fé mais expressivo de Marta, o que mostra bem a comunhão de fé na verdade da vida eterna e de esperança messiânica: “Acredito que Tu és o Messias, o Filho de Deus”.  
Muitos judeus vieram visitar Marta e Maria as para condolências pela morte do irmão. 
Ao saber que Jesus chegara, Marta saiu-lhe ao encontro, porém, Maria ficou sentada em casa. 
Marta disse a Jesus: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido. Mas sei que, mesmo agora, tudo o que pedires a Deus, Deus To concederá”. 
Disse-lhe Jesus: “Teu irmão ressuscitará”. 
Marta respondeu: “Eu sei que há de ressuscitar na ressurreição do último dia”. 
Disse-lhe Jesus: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem acredita em Mim, ainda que tenha morrido, viverá; e todo aquele que vive e acredita em Mim, nunca morrerá. Acreditas nisto?”. 
Disse-Lhe Marta: “Acredito, Senhor, que Tu és o Messias, o Filho de Deus, que havia de vir ao mundo”. 


Ao aproximar-se Jesus de Betânia, alguém se adiantou a dar a notícia da sua chegada. Marta saiu ao seu encontro, ao passo que Maria permaneceu sentada entre a roda de pessoas que apresentavam os pêsames. Tratava-se de visitas de condolências muito apreciadas entre os judeus. E o luto durava sete dias. Segundo o uso rabínico, os primeiros três dias eram dedicados ao pranto e os seguintes ao luto silencioso. Também era usual jejuar-se (1Sm 31,13). O ritual prescrevia, após o regresso do enterramento, sentar-se no chão com os pés descalços e a cabeça coberta. Os primeiros sete dias eram especialmente dedicados às visitas.
Eis um apequena indicação sobre as duas irmãs que está em consonância com o caráter de ambas como as apresenta Lucas (Lc 10,38ss).
Parece, à primeira vista, que a fé de Marta sofre duma certa imperfeição, pois, acreditava no poder da oração de Jesus, mas desde que ele ali estivesse presente – exatamente como a fé de Maria quando é chamada por Marta. Também Maria, quando chegou ao sítio onde estava Jesus, mal o viu, caiu-lhe aos pés e disse-lhe: ‘Senhor, se Tu cá estivesses, o meu irmão não teria morrido’ (Jo 11,32).
E, apesar de Marta dizer a Jesus que sabe que tudo o que Ele pedir Deus, Deus lho concederá, não crê para já na ressurreição imediata do irmão. Por isso, quando o Mestre garante que Lázaro ressuscitará, Marta remete com desconsolo para a ressurreição no último dia – fé que ela tem como firme no contexto da crença ortodoxa de Israel. Contudo, a pedagogia de Jesus conduz a um ensino carregado de grande novidade e riqueza teológica. Jesus afirma-se perentoriamente como “a “ressurreição e a vida” e garante que, “ainda que tenha morrido”, quem acredita n’ Ele “viverá”; e “todo aquele que vive e acredita” n’ Ele, “nunca morrerá”.
Ora, os israelitas não sabiam que a ressurreição em que acreditavam era obra do Messias. Mas Cristo, que se apresentou como o Messias, é o agente da ressurreição dos mortos. Mais: Ele próprio é a ressurreição, porque o Pai lhe outorgou o poder sobre a sua própria vida. Por isso, Jesus é a causa da ressurreição dos mortos, tanto da alma como do corpo. E, como no Antigo Testamento e na literatura rabínica o poder de dar a vida e de ressuscitar é atributo exclusivo de Deus, Jesus está, com este ensinamento, a proclamar-se Deus. Já antes Ele tinha dito: Assim como o Pai ressuscita os mortos e os faz viver, também o Filho faz viver aqueles que Ele quer” (Jo 5,21). Além disso, tal como está redigida a proclamação de Jesus e tendo em conta expressões como ‘aquele que crê em Cristo, ainda que morra, viverá’, ou ‘que este crente nunca mais morrerá’ – expressões valorizadas no contexto da morte de Lázaro – tinham que levar a pensar na ressurreição física.
Não obstante, no pensamento deste Evangelho, o conteúdo é maior. A ressurreição de Lázaro, causada por ser Cristo a própria ressurreição, ainda por cima física, está vinculada à fé em Jesus, que dá a vida sobrenatural (cf Jo 5,19-47; 8,21-58; 14,16; 1Jo5,11-12) que traz consigo a ressurreição (Jo 5,29; 6,40-50.53-58), aqui milagrosamente antecipada.
É esta a fé que Jesus pede expressamente a Marta, desafiando-a: “Acreditas nisto?” E Marta responde afirmativamente envolvendo a sua resposta por invólucro messiânico.
Frederico Lourenço traduz assim: “Sim, Senhor, eu acredito que Tu és o Cristo, o filho de Deus que vem para o mundo”. De facto a forma verbal que significa “que vem” é um particípio presente (voz média); ερχόμενος. E explica a expressão “Sim, Senhor, eu acredito”:
“Marta emprega aqui o perfeito (pepísteuka), com o sentido ‘eu tenho vindo a acreditar e, por isso, acredito’. É o resultado do processo de fé.” (Lourenço, op cit).
Marta confessa que Jesus é o Messias, o filho de Deus, que vem para o mundo. É evidente que Marta confessa a fé no Messias. Mas deve dizer-se que em João o título de Filho de Deus não poder ser apenas um apositivo de Messias ou Cristo, mas expressão clara da filiação divina ontológica.
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Assim, Agostinho entende a hospitalidade de Marta como ato de fé. No aludido sermão, diz:
As palavras do Senhor Jesus Cristo nos advertem de que, na multiplicidade das ocupações deste mundo, devemos aspirar a um único fim. Aspiramos porque estamos a caminho e não em morada permanente; ainda em viagem e não na pátria definitiva; ainda no tempo do desejo e não na posse plena. Mas devemos aspirar, sem preguiça e sem desânimo, a fim de podermos um dia chegar ao fim.
(…)
O Senhor foi recebido como hóspede, ele que veio para o que era seu, e os seus não o acolheram. Mas, a todos que o receberam, deu-lhes capacidade de se tornarem filhos de Deus (Jo 1,11-12). Adotou os servos e fê-los irmãos; remiu os cativos e fê-los coerdeiros. Que ninguém de entre vós ouse dizer: ‘Felizes os que mereceram receber a Cristo em sua casa!’. Não te entristeças, não te lamentes por teres nascido num tempo em que já não podes ver o Senhor corporalmente. Ele não te privou desta honra, pois afirmou: Todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes (Mt 25,40).
E, em viva apostrofe, dirige-se a Marta nestes termos:
Aliás, Marta, permite-me dizer-te: Bendita sejas pelo teu bom serviço! Buscas o descanso como recompensa pelo teu trabalho. Agora estás ocupada com muitos serviços, queres alimentar os corpos que são mortais, embora sejam de pessoas santas. Mas, quando chegares à outra pátria, acaso encontrarás peregrinos para hospedar? Encontrarás um faminto para repartires com ele o pão, um sedento para lhe dares de beber, um doente para visitar, um desunido para reconciliar, um morto para sepultar? Lá não haverá nada disso. Então o que haverá? O que Maria escolheu: lá seremos alimentados, não alimentaremos. Lá se cumprirá com perfeição e em plenitude o que Maria escolheu aqui: daquela mesa farta, ela recolhia as migalhas da palavra do Senhor.
Queres mesmo saber o que há de acontecer lá? É o próprio Senhor quem diz a respeito de seus servos: Em verdade eu vos digo: ele mesmo vai fazê-los sentar-se à mesa e, passando, os servirá (Lc 12,37).
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Em suma, a mulher de tanta atividade é a mulher da fé, porque aceitou desde a primeira hora embarcar no processo de fé e ir aprendendo as lições do Mestre dos mestres com quem tratava familiarmente. E nós, que somos da família de Jesus, também estamos neste processo de fé messiânica e acalentamos a esperança de que o dia melhor vai chegar?

2017.07.29 – Louro de Carvalho