Muitas vezes satisfazemo-nos em enclausurar determinadas
personalidades, incluindo santos e santas, em rótulos dourados e isso nos satisfaz.
Vem isto a propósito de Santa Marta cuja memória litúrgica é hoje objeto de
celebração.
É certo que passou, com alguma razão, para a memória coletiva
dos cristãos como a mulher da atividade em contraste com sua irmã Maria de
Betânia, a contemplativa. Esquecemos que tal atividade era de serviço ao Senhor
e configurava a hospitalidade própria dos judeus, que passou para a doutrina
cristã, com base em Mateus (25,35.38.43.44) como uma das
obras de misericórdia corporais, concretizada no acolhimento aos peregrinos e
sem teto, como serviço prestado ao próprio Jesus (cf 25,40.45).
Assim, a nótula histórica que introduz a Missa e a Liturgia
das Horas de Santa Marta especifica:
“Era irmã de Maria e de Lázaro.
Quando recebia o Senhor em sua casa de Betânia, servia-O com grande diligência
e, com suas orações obteve a ressurreição de seu irmão.”
Também a
oração coleta da Missa, que se reza nas diversas horas da Liturgia das Horas,
frisa a aceitação da hospitalidade oferecida por Marta a Jesus como pretexto
para implorarmos do Senhor, por intercessão da Bem-aventurada, o merecimento
de, “servindo a Cristo em cada um dos nossos irmãos”, sermos “recebidos
nas moradas eternas”.
A oração sobre as oblatas regista a nossa proclamação
das maravilhas (não se tratará apenas da hospitalidade) realizadas pelo Senhor em Santa Marta como ponto de
partida para solicitarmos de Deus que aceite “a oferta do nosso ministério” como
aceitou “a sua generosa hospitalidade”.
Por sua vez, a oração depois da comunhão faz-nos pedir
ao Senhor que “a comunhão do Corpo e Sangue” de Cristo “nos afaste das coisas
efémeras deste mundo, para que, a exemplo de Santa Marta”, servindo a
Deus “com sincera caridade na terra, contemplemos eternamente” o Seu rosto
no Céu. Afinal, Marta não se ocupava apenas das coisas da casa!
E um hino proposto para o Ofício de Leituras enaltece essa hospitalidade
ativa de Marta como serviço a “tão grande Hóspede” e como forma de promoção da
disponibilidade de Maria e de Lázaro para escutarem o Mestre. Vejamos o texto
do hino:
Ó Santa Marta, mulher feliz,
nós vos queremos felicitar.
Vós merecestes receber Cristo
por muitas vezes em vosso lar.
Vós recebestes tão grande Hóspede
com mil cuidados, nosso Senhor,
em muitas coisas sempre solícita
e impelida por terno amor.
Enquanto alegre servis a Cristo,
Maria e Lázaro, vossos irmãos,
podem atentos receber dele
a graça e vida por refeição
|
Enquanto a vossa feliz irmã
com seus aromas a Cristo ungia,
serviço extremo vós dedicastes
a Quem à morte se dirigia.
Ó hospedeira feliz do Mestre,
nos corações acendei o amor,
para que sejam eternamente
lares amigos para o Senhor.
Seja à Trindade eterna glória!
E no céu queira nos hospedar
para convosco, no lar celeste,
louvor perene sem fim cantar.
|
Além disso,
embora o Evangelho recomendado para a Missa seja Jo 11,19-27, pode ler-se em
alternativa Lc 10, 38-42, que salienta, dentro da atividade hospitaleira, o
ónus do trabalho:
Jesus entrou em certa
povoação e uma mulher chamada Marta recebeu-O em sua casa. Ela tinha
uma irmã chamada Maria, que, sentada aos pés de Jesus, ouvia a sua
palavra. Entretanto, Marta atarefava-se com muito serviço. Interveio
então e disse: ‘Senhor, não Te importas que minha irmã me deixe
sozinha a servir? Diz-lhe que venha ajudar-me’.
O Senhor respondeu-lhe: ‘Marta,
Marta, andas inquieta e preocupada com muitas coisas, quando uma só é
necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada’.”.
Marta, como responsável da casa, na ausência de
Lázaro, queria atender o visitante e companheiros como todo o esmero oriental.
E, como o trabalho doméstico estaria a ser demasiado pesado, com a
familiaridade de que se reveste a interpelação, queixa-se ao Mestre da não
ajuda de Maria na preparação da comida (μόνην με κατέλειπεν) e pede-lhe que a obrigue a ajudá-la. Na resposta,
Jesus assume o mesmo tom familiar expresso na repetição do nome de Marta, mas
dá a grande lição: andava mui atarefada (satagebat circa frequens
ministerium; em grego, περιεσπατο
περι πόλλην διακονίαν) com tantas
coisas (no grego
pode perceber-se que andava completamente distraída – da audição das palavra do
Senhor – por causa do muito serviço) quando
apenas uma só coisa é necessária, a escolhida por Maria.
Esta “uma só coisa” necessária é de tradução incerta:
alguns códices permitem traduzir, “de uma só coisa há necessidade”; de outros infere-se,
“poucas coisas são necessárias, ou melhor, uma só”. E Frederico Lourenço, no
vol. I da sua tradução da Bíblia, refere para o segmento “Maria escolheu a melhor
parte (την αγαθην μερίδα – a boa parte), que não lhe será tirada”:
A palavra parte (merís) poderia eventualmente ser entendida
como se entende “parte” (méros) em
12:46 [por lapso escreveu 12:26], Mateus 24:51 e João 13:8, isto é no sentido de
“lugar”. Segundo esta hipótese, Jesus estaria aqui a dizer: “Maria escolheu o
bom lugar, que não lhe será tirado”, sendo esse bom lugar estar simplesmente
sentada aos pés de Jesus.
Porém, todas estas hipóteses não eclipsam o sentido
fundamental da lição de Jesus (estar aos pés do mestre significava entre os judeus
aprender com ele). Com
efeito, é mais importante atender à lição e vida do Reino do que atarefar-se
com misteres que podem afastar-nos dele. Algo semelhante disse Jesus em Mateus:
“Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua
justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo” (Mt 6,33). Não se trata, porém, diretamente da promoção
da vida contemplativa sobre a vida ativa, mas da chamada de atenção para que os
trabalhos secundários não se tornem obsessão de vida e impeçam de apreciar
devidamente a doutrina do Reino e o Evangelho, que era a palavra que Jesus
dirigia a Maria de Betânia.
***
E Marta
aprendeu a lição. Na verdade, a antífona da comunhão proposta para a Missa quando
não há canto, é uma citação de João (Jo 11,27), “Marta disse
a Jesus: Vós sois o Messias, o Filho de Deus vivo, que veio ao mundo”.
Por seu turno,
Santo Agostinho ensina num dos seus sermões:
“Marta e
Maria eram irmãs, não apenas irmãs de sangue, mas também pelos sentimentos religiosos.
Ambas estavam unidas ao Senhor; ambas, em perfeita harmonia, serviam ao Senhor
corporalmente presente. Marta recebeu-o como costumam ser recebidos os peregrinos.
No entanto, era a serva que recebia o seu Senhor; uma doente que acolhia o Salvador;
uma criatura que hospedava o Criador. Recebeu o Senhor para lhe dar o alimento
corporal, ela que precisava do alimento espiritual. O Senhor quis tomar a forma
de servo e ser, nesta condição, alimentado pelos servos, por condescendência,
não por necessidade. Também foi por condescendência que se apresentou para ser alimentado,
pois tinha assumido um corpo que lhe fazia sentir fome e sede.” (cf Sermo
103, 1-2. 6: PL 38, 613.615).
***
E o Evangelho
recomendado para a Missa (Jo 11,19-27) contém o
ato de fé mais expressivo de Marta, o que mostra bem a comunhão de fé na verdade
da vida eterna e de esperança messiânica: “Acredito
que Tu és o Messias, o Filho de Deus”.
Muitos judeus vieram visitar Marta e
Maria as para condolências pela morte do irmão.
Ao saber que Jesus chegara, Marta
saiu-lhe ao encontro, porém, Maria ficou sentada em casa.
Marta disse a Jesus: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão
não teria morrido. Mas sei que, mesmo agora, tudo o que pedires a
Deus, Deus To concederá”.
Disse-lhe
Jesus: “Teu irmão ressuscitará”.
Marta
respondeu: “Eu sei que há de
ressuscitar na ressurreição do último dia”.
Disse-lhe
Jesus: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem acredita em Mim, ainda
que tenha morrido, viverá; e todo aquele que vive e acredita em Mim, nunca
morrerá. Acreditas nisto?”.
Disse-Lhe
Marta: “Acredito, Senhor, que Tu és
o Messias, o Filho de Deus, que havia de vir ao mundo”.
Ao aproximar-se Jesus de Betânia, alguém se adiantou a
dar a notícia da sua chegada. Marta saiu ao seu encontro, ao passo que Maria permaneceu
sentada entre a roda de pessoas que apresentavam os pêsames. Tratava-se de
visitas de condolências muito apreciadas entre os judeus. E o luto durava sete
dias. Segundo o uso rabínico, os primeiros três dias eram dedicados ao pranto e
os seguintes ao luto silencioso. Também era usual jejuar-se (1Sm 31,13). O ritual prescrevia, após o regresso do enterramento,
sentar-se no chão com os pés descalços e a cabeça coberta. Os primeiros sete
dias eram especialmente dedicados às visitas.
Eis um apequena indicação sobre as duas irmãs que está
em consonância com o caráter de ambas como as apresenta Lucas (Lc 10,38ss).
Parece, à primeira vista, que a fé de Marta sofre duma
certa imperfeição, pois, acreditava no poder da oração de Jesus, mas desde que
ele ali estivesse presente – exatamente como a fé de Maria quando é chamada por
Marta. Também Maria, quando chegou ao sítio onde estava Jesus, mal o
viu, caiu-lhe aos pés e disse-lhe: ‘Senhor, se Tu cá estivesses, o meu irmão
não teria morrido’ (Jo 11,32).
E,
apesar de Marta dizer a Jesus que sabe que tudo o que Ele pedir Deus, Deus lho
concederá, não crê para já na ressurreição imediata do irmão. Por isso, quando
o Mestre garante que Lázaro ressuscitará, Marta remete com desconsolo para a
ressurreição no último dia – fé que ela tem como firme no contexto da crença
ortodoxa de Israel. Contudo, a
pedagogia de Jesus conduz a um ensino carregado de grande novidade e riqueza teológica.
Jesus afirma-se perentoriamente como “a “ressurreição e a vida” e garante que, “ainda
que tenha morrido”, quem acredita n’ Ele “viverá”; e “todo aquele que vive
e acredita” n’ Ele, “nunca morrerá”.
Ora, os israelitas não sabiam que a ressurreição em
que acreditavam era obra do Messias. Mas Cristo, que se apresentou como o
Messias, é o agente da ressurreição dos mortos. Mais: Ele próprio é a
ressurreição, porque o Pai lhe outorgou o poder sobre a sua própria vida. Por isso,
Jesus é a causa da ressurreição dos mortos, tanto da alma como do corpo. E,
como no Antigo Testamento e na literatura rabínica o poder de dar a vida e de
ressuscitar é atributo exclusivo de Deus, Jesus está, com este ensinamento, a
proclamar-se Deus. Já antes Ele tinha dito: “Assim como o Pai ressuscita os mortos e os faz viver, também o Filho
faz viver aqueles que Ele quer” (Jo 5,21). Além disso, tal como está redigida a
proclamação de Jesus e tendo em conta expressões
como ‘aquele que crê em Cristo, ainda que morra, viverá’, ou ‘que este crente
nunca mais morrerá’ – expressões valorizadas no contexto da morte de Lázaro – tinham
que levar a pensar na ressurreição física.
Não obstante, no pensamento deste Evangelho, o conteúdo
é maior. A ressurreição de Lázaro, causada por ser Cristo a própria ressurreição,
ainda por cima física, está vinculada à fé em Jesus, que dá a vida sobrenatural
(cf Jo
5,19-47; 8,21-58; 14,16; 1Jo5,11-12) que traz consigo
a ressurreição (Jo 5,29; 6,40-50.53-58), aqui milagrosamente antecipada.
É esta a fé que Jesus pede expressamente a Marta, desafiando-a:
“Acreditas nisto?” E Marta responde
afirmativamente envolvendo a sua resposta por invólucro messiânico.
Frederico Lourenço traduz assim: “Sim, Senhor, eu acredito
que Tu és o Cristo, o filho de Deus que vem para o mundo”. De facto a forma verbal
que significa “que vem” é um particípio presente (voz média); ερχόμενος. E explica a expressão “Sim, Senhor, eu
acredito”:
“Marta emprega aqui o perfeito (pepísteuka), com o sentido ‘eu tenho
vindo a acreditar e, por isso, acredito’. É o resultado do processo de fé.” (Lourenço,
op cit).
Marta confessa que Jesus é o Messias, o filho de Deus,
que vem para o mundo. É evidente que Marta confessa a fé no Messias. Mas deve
dizer-se que em João o título de Filho de Deus não poder ser apenas um
apositivo de Messias ou Cristo, mas expressão clara da filiação divina
ontológica.
***
Assim, Agostinho entende a hospitalidade de Marta como
ato de fé. No aludido sermão, diz:
As palavras do Senhor Jesus Cristo
nos advertem de que, na multiplicidade das ocupações deste mundo, devemos
aspirar a um único fim. Aspiramos porque estamos a caminho e não em morada
permanente; ainda em viagem e não na pátria definitiva; ainda no tempo do
desejo e não na posse plena. Mas devemos aspirar, sem preguiça e sem desânimo,
a fim de podermos um dia chegar ao fim.
(…)
O Senhor foi
recebido como hóspede, ele que veio para o que era seu, e os seus
não o acolheram. Mas, a todos que o receberam, deu-lhes capacidade de se tornarem
filhos de Deus (Jo 1,11-12). Adotou os servos e fê-los irmãos;
remiu os cativos e fê-los coerdeiros. Que ninguém de entre vós ouse dizer: ‘Felizes
os que mereceram receber a Cristo em sua casa!’. Não te entristeças, não te
lamentes por teres nascido num tempo em que já não podes ver o Senhor
corporalmente. Ele não te privou desta honra, pois afirmou: Todas as
vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o
fizestes (Mt 25,40).
E, em viva
apostrofe, dirige-se a Marta nestes termos:
Aliás,
Marta, permite-me dizer-te: Bendita sejas pelo teu bom serviço! Buscas o descanso
como recompensa pelo teu trabalho. Agora estás ocupada com muitos serviços,
queres alimentar os corpos que são mortais, embora sejam de pessoas santas. Mas,
quando chegares à outra pátria, acaso encontrarás peregrinos para hospedar?
Encontrarás um faminto para repartires com ele o pão, um sedento para lhe dares
de beber, um doente para visitar, um desunido para reconciliar, um morto para
sepultar? Lá não haverá nada disso. Então o que haverá? O que Maria escolheu:
lá seremos alimentados, não alimentaremos. Lá se cumprirá com perfeição e em
plenitude o que Maria escolheu aqui: daquela mesa farta, ela recolhia as migalhas
da palavra do Senhor.
Queres mesmo
saber o que há de acontecer lá? É o próprio Senhor quem diz a respeito de seus
servos: Em verdade eu vos digo: ele mesmo vai fazê-los sentar-se à mesa
e, passando, os servirá (Lc 12,37).
***
Em suma, a
mulher de tanta atividade é a mulher da fé, porque aceitou desde a primeira hora
embarcar no processo de fé e ir aprendendo as lições do Mestre dos mestres com
quem tratava familiarmente. E nós, que somos da família de Jesus, também estamos
neste processo de fé messiânica e acalentamos a esperança de que o dia melhor
vai chegar?
2017.07.29 – Louro de Carvalho
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