Sim, não podemos
estar à espera da polícia, porque, tal como refere Maria José Morgado no Expresso do dia 8, “a polícia não prende
o fogo”. Por outro lado, há duas coisas que ficam a beliscar a memória dos
portugueses. E a célebre magistrada do Ministério Público aponta a ajuda que “o
carreirismo e a incompetência” emprestam à “massa combustível” – que se tornou
incontrolável mercê do não investimento na prevenção e da ausência de “programas
de prevenção com brigadas especializadas de intervenção rápida”, da não
existência dum eficaz “sistema de comunicações de emergência”, da não profissionalização
suficiente de bombeiros e da negociação obscena de Estado e empresas – e põe ao
acento no “eco do sino da aldeia de Pedrógão” a “perseguir-nos durante muito
tempo”.
Como todos querem e parecem exigir,
havia que já se ter concluído sobre o défice de segurança a que o território e
as populações têm direito. E os raios, os incendiários, os arcos voltaicos, a
convecção ambiental adormecem as consciências dos verdadeiros responsáveis pelos
estragos. Como assinala Morgado, atrás da “tese hipnótica dos incendiários” vem
“a desresponsabilização do Estado pela prevenção, a estupidificação da
população, o laxismo, a negligência crónica”.
E diz a douta magistrada que a resolução
do assunto não é para a polícia e para os tribunais, “que reprimem crimes, mas
não protegem a floresta”. Ademais, quaisquer que tenham sido as origens do fogo,
todos os especialistas na área florestal concluem pelo “falhanço institucional
inadmissível na segurança das pessoas e bens”, ao mesmo tempo que vem que se
deixa crescer o mato anarquicamente e campear o próspero negócio obsceno e descabelar
a corrupção.
***
É num
contexto destes que vem a propósito a reflexão do engenheiro florestal Tiago
Oliveira, vertida para o Expresso do
dia 8 no formato de entrevista concedida a Carla Tomás, em que fica sublinhada
a necessidade de “gerir a vegetação”, vindo o entrevistado a associar a perda da área arborizada aos incêndios, “que se
devem a não reconhecermos que para ter floresta é necessário gerir a vegetação”.
Com efeito, em consonância com a asserção jornalística de que “desde os anos 70, metade do país ardeu e
foi perdida superfície florestal”, o reputado técnico sustenta:
“No sul, onde há mais dias prováveis
para haver incêndios, arde menos, porque se gere a vegetação e se evita o fogo.
Não ficam à espera do sistema, que está cativo na lógica de proteção civil. A norte,
esse aprisionamento perdura, a par com o colapso agrícola.”.
E,
das duas uma: ou reconhecemos que estamos “presos
na armadilha do combate e que a prevenção é o melhor caminho” ou, continuando “nesta
armadilha, vai sempre escapar um fogo, e esse ‘um’ vai queimar tudo de forma
trágica, como aconteceu em Pedrógão”, uma vez que “o combate não serve de bala
de prata”.
Com efeito,
“a prevenção
sempre foi o parente pobre”, graças às “resistências
políticas”, fundadas “no imediatismo do resultado”. Dá muito mais nas vistas o
facto de o poder político “financiar um camião ou um helicóptero do que
investir na prevenção”, a qual pode evitar uma catástrofe no futuro, mas que
não facilita a lembrança do detentor do cargo político na posteridade. Vivendo
manietados por ciclos políticos de quatro anos ou menos, “atacam-se as
consequências e não as causas do problema”.
Apesar de se sucederem “planos
e estratégias de defesa da floresta contra incêndios”, “acabou tudo quase na
mesma”, porque “o sistema está
montado nas tropas que combatem os incêndios e não está preocupado em governar
o risco e o seu impacto”. Trata-se de um grave problema “sistémico”, que “exige
uma relação mais madura da sociedade com os processos de longo prazo, o que
será essencial no futuro, tendo em conta as alterações climáticas”.
Sobre a “reforma mais rápida
de sempre da floresta”, badalada pelo Ministro da Agricultura, o crítico
assenta em que “não basta ter
leis sem os meios para as implementar e para os proprietários aderirem”, pois, “leis
feitas a mata-cavalos para ter um sound
bite não produzem resultados”.
Falando da evidência dum
“colapso institucional” desde os anos 80, atribui-o “a terem desmanchado os serviços florestais, a não terem
tido energia nem recursos para chegarem ao proprietário privado e à armadilha
do combate”. Na verdade, “o Ministério da Agricultura descartou-se do problema
desde os anos 80 e achou que tudo se resolveria com bombeiros e entregando aos
municípios a execução de uma obra que não está supraplaneada”. E adverte que,
sendo a floresta “como o mar”, não pode ser dividida “por 308 municípios”. Como
“ainda agora se viu, o incêndio começou em Pedrógão e chegou a Góis, passando
por sete concelhos”.
E não tem o técnico superior
pejo em identificar as diferenças entre o que faz uma empresa de celulose e a
maioria do país, ao explicar:
“O sucesso das empresas de pasta de papel reside em
estarem focadas em defender um ativo com conhecimento e eficiência na gestão do
orçamento de que dispõem. Para isso, não compram um avião, que seria um custo,
e apostam na gestão da vegetação como um investimento. Executam a obra no
terreno 365 dias por ano e com uma única equipa, que aborda a prevenção e o
combate.”.
Aí, embora concorde com a
verificação que o engenheiro faz, só tenho a contradizê-lo num aspeto: se há uma
falha na prevenção, vigilância e combate da parte das empresas da pasta de papel,
logo se inventam formas encapotadas de atribuição das responsabilidades ao
Estado, às empresas e entidades envolvidas no combate ou às causas naturais e aos
putativos incendiários.
Como antídoto preventivo
contra a praga incendiária, Tiago Oliveira defende, além do racional ordenamento
da floresta e da necessidade de gerir a vegetação, a criação de “um comando único nacional”.
A este respeito, justifica:
“O comando
tripartido não funciona e é um sistema de ‘passa culpas’. É essencial um
comando único de base florestal focado na organização e execução da obra, que
depois é acompanhado no combate aos incêndios por bombeiros e equipas mais
profissionais. Pode ser criado emprego e colocar-se os bombeiros a fazer
prevenção. Seria transformar um custo num investimento com trabalho no inverno
e no verão.”.
Com efeito, a existência de responsabilidades distribuídas pelo Ministério
da Agricultura, Ministério da Administração Interna e pelo Ministério do
Ambiente – ou um comando no terreno repartido por bombeiros, polícias e autoridade
nacional de proteção civil – é pasto de alijamento de responsabilidades,
descoordenação e ‘passa culpas’. Há dificuldade em suscitar um dinamismo de
subordinação a uma autoridade estranha à corporação a que se pertence. E quem
sofre é povo e o pundonor da dedicação até ao esvaimento das forças físicas e
psíquicas!
Um comando único, forte, de competências pluridisciplinares e de conhecimento
do terreno será uma boa solução.
***
Também o bastonário da Ordem dos Engenheiros (OE), Carlos Mineiro, bradando “Portugal a arder: problema sem solução a
curto prazo”, defende uma estratégia
consistente baseada num pacto de regime à prova de fogos políticos (vd Expresso,
de 8 de julho, pg 33).
Só é de esperar que não seja
mais um pacto de regime que não ande nem desande!
Perante o crónico, mas com
marcas de acutilância, cenário de incêndios florestais, que todos os anos e em
quase todo o ano vêm flagelando o país, consumindo muitos bens significativos
do ponto de vista ecológico e económico e até integridades e vidas humanas,
Carlos Mineiro, ao invés de se debruçar sobre as várias “questões mediáticas e
algo inquisitórias” que afloram nos períodos pós-incêndios, vem “salientar
aspetos que têm sido desconsiderados”. E diz:
“Entre eles avulta o papel que
devia caber aos engenheiros de diversas especialidades, com natural relevância
para os engenheiros florestais, pois são estes profissionais que detêm conhecimento
e competência adequados para gerir e lidar com a floresta”.
Terá
sido pela desvalorização do papel destes profissionais e pela falta de mercado
de trabalho para eles e para os peritos em engenharia geográfica que os respetivos
cursos ficaram quase ou totalmente desertos – o que, a par da “extinção e
menorização das instituições conhecedoras da floresta e da sua gestão”, deu o
resultado catastrófico que agora somos obrigados a encarar.
Atualmente,
a quantidade e diversidade de “ferramentas e tecnologias com múltiplas possibilidades
podem facultar “uma gestão mais eficaz e segura do território, fruto da
investigação e da engenharia” – podendo e devendo a floresta passar do problema
que é anualmente fonte e palco de incêndios e mais incêndios a “valioso recurso
ambiental e económico, produtor de matéria-prima transacionável e com elevado
valor energético”, o que postula “uma gestão cuidada” da floresta e dos recursos
a ela atinentes.
Refere
que o colapso do SIRESP, uma solução para não falhar quando as outras falham,
deve ser objeto de “uma auditoria idónea” para retomar a confiança dos
utilizadores e dos cidadãos, “ou seja, uma tarefa para engenheiros e para as instituições
que a eles terão de recorrer”; e recorda o estudo que o Conselho de Engenharia
Florestal da Ordem dos Engenheiros produziu no rescaldo dos fogos de 2016, que
se mantém disponível no portal da OE e cuja leitura recomenda pela sua inovadora
atualidade e pelo seu caráter holístico e setorial.
E
sustenta a urgência da mudança de paradigma: a passagem das políticas mais de reação
que de prevenção à gestão que assegure o “adequado planeamento e a alocação de
recursos”.
Na
convicção de que “o envolvimento da engenharia é crucial num novo e adequado
ciclo, a par da promoção do ensino e da investigação e inovação nestas áreas”
entende que deve ser redefinido o “papel e funções que deverão caber ao Estado”.
Por
mim, creio que o papel e as funções do Estado não podem ser reduzidos aos
mínimos. Deve, pelo menos, caber-lhe a superior orientação e definição de políticas,
a coordenação de topo e a supervisão da alocação de recursos, com a competente
e assídua vigilância e fiscalização dos procedimentos.
Como
advoga Carlos Mineiro, se enfrentamos um problema sem solução a curto prazo, estamos
confrontados com a exigência da “perenidade de novas medidas”, que se
materializa numa “estratégia consistente baseada num pacto de regime que também
resista a sucessivos fogos políticos”.
Que o ouçam todos os políticos do hoje e do amanhã,
bem como todos aqueles e aquelas que se dedicam à gestão, à preservação e à
remediação e reconstituição da manha florestal.
Prosit!
2017.07.10 – Louro de Carvalho
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