O Boletim da Sala de Imprensa da Santa Sé, do passado dia 1 de julho,
divulgava a seguinte nota, sob o título “Conclusão
do mandato quinquenal do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e
nomeação do sucessor”:
“O santo Padre Francisco agradeceu os seus serviços ao
Eminentíssimo Senhor Cardeal Gerhard Ludwig Müller na conclusão do
seu mandato quinquenal de Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e de
Presidente da Pontifícia Comissão “Ecclesia
Dei”, da Pontifícia Comissão Bíblica e da Comissão Teológica Internacional,
e designou pra lhe suceder nos mesmos cargos Sua Excelência Reverendíssima
Monsenhor Luis Francisco Ladaria Ferrer, S.J., Arcebispo titular de
Tibica, até agora Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé”.
Nada mais
natural – dirão – o Papa nomeia quem entender para a chefia dos diversos dicastérios
romanos. Alguns dirão que o Cardeal alemão poderia cumprir mais um quinquénio,
dado que ainda só fez 69 anos, vindo a perfazer os 70 a 30 de novembro; portanto,
encontra-se a mais de cinco anos da idade-limite para prestar serviço
eclesiástico no topo dum dicastério. Todavia, o Papa não renovou o mandato do
conservador Gerhard Müller enquanto Prefeito da Congregação para a Doutrina da
Fé (CDF), cargo que ocupava desde 2 de julho
de 2012, juntamente com os demais cargos acima referidos. O Prefeito da mais
poderosa Congregação Romana (e não o braço direito do líder da Igreja Católica, como dizem os jornais,
pois esse é o Cardeal Secretário de Estado Pietro Parolin) é, partir de agora, o jesuíta espanhol
Dom Luis Ladaria, que tem agora 73 anos e era Secretário da Congregação de que
Müller era Prefeito.
Jornais
italianos, como La Stampa e Il Messaggero, informaram que o Papa se
encontrou na véspera com Müller, de 69 anos, para lhe comunicar que “o seu
mandato terminará no domingo, justamente quando ele faz cinco anos no posto.
Não são oficialmente conhecidas
as razões da demissão, mas o purpurado, considerado linha-dura, era tido como
contrário às reformas na Igreja Católica e é um crítico da exortação apostólica
Amoris Laetitia, de Francisco, publicada
em 2016, que sugere que pessoas casadas e divorciadas em segundo casamento
poderiam, sob circunstâncias especiais, participar da comunhão.
O Prefeito Müller tinha sido escolhido por Bento XVI
para ocupar um cargo que ele próprio desempenhara antes do Cardeal Levada. Tal
como Joseph Ratzinger, Gerhard Müller é alemão, teólogo e académico, e são
conhecidas as diferenças de opinião entre Francisco e ele.
Antes da
vinda do Papa a Fátima, o cardeal disse ao Observador:
“As circunstâncias da vida e formação
da razão e as experiências [de Francisco] são muito diferentes das de alguém
oriundo da Alemanha, com uma vida académica, virada para o nível académico que
existe na teologia alemã há vários séculos. O Papa Francisco tem uma
espiritualidade que lhe vem dos Jesuítas, enquanto a do Papa Bento XVI lhe chega
mais de Santo Agostinho, São Boaventura e da tradição da teologia existencial.
Seguramente que a realidade do Papa Francisco, vindo de um contexto
latino-americano, é muito diferente da história e da cultura europeias. No
entanto, somos a mesma Igreja e a Fé não divide as pessoas. É a base da unidade.”.
As duas
últimas frases da declaração do até agora Prefeito são totalmente verdadeiras,
mas menorizar a teologia e a mundivisão do Pontífice argentino por não ter a
escola alemã – o que não corresponde exatamente à verdade – ou atrelá-lo
inexoravelmente aos jesuítas como se a teologia destes fosse de menor categoria
e contrária à alemã, em comparação com a de Ratzinger, próxima de Santo
Agostinho sabe a injusto, inexato e até arrogante. Aliás, tornou-se ridícula a afirmação
do Prefeito de que tinha a competência de colmatar a necessidade de enquadrar teologicamente
o pontificado de Francisco, como se este fosse obrigado a andar a toque de
caixa da CDF e não fosse esta a prestar o serviço ao Papa como organismo de
apuramento da doutrina e de morigeração dos costumes contrários aos inspirados
no Evangelho.
***
O Vaticano
refere, na nota acima transcrita que o Papa está muito agradecido ao cardeal alemão
pelo seu trabalho nos últimos cinco anos, mas que o mandato terminava este fim
de semana. Não deixa de ter, apesar de tudo, alguma razão. Com efeito, nestes 5
anos, a CDF, além de vários livros e estudos, produziu dois documentos de bom
senso e de excelência: a Carta Iuvenescit
Ecclesia, sobre a relação entre os dons hierárquicos e carismáticos para a
vida e a missão da Igreja, de 15 de maio de 2016; a Instrução Ad resurgendum cum Christo, a propósito da sepultura
dos defuntos e da conservação das cinzas da cremação, de 15 de agosto de 2016.
A CDF é responsável pela difusão da doutrina e pela defesa
dos pontos da tradição que possam estar em perigo devido a doutrinas não aceitáveis
pela Igreja. E é responsável por investigar os casos de abuso sexual de sacerdotes.
Em fins de fevereiro, Müller negou ter sistematicamente ocultado casos de
abusos na Igreja, dizendo ao jornal La
Repubblica:
“A Igreja não esconde nada. Em alguns
casos, pode ter havido desconhecimento, mas não sistemático”.
No entanto, Müller tem pautado a maior parte das intervenções públicas pelo distanciamento
em relação ao Papa, manifestado nos silêncios, quando era seu dever falar, nas
afirmações contrárias às do Pontífice e no apoio (ora tácito, ora explícito) ao discurso e postura dos
opositores – figurando para a opinião pública como opositor às reformas e crítico das posições do Pontífice.
Um dos pontos
mais fraturantes entre o Cardeal e Francisco é a questão dos católicos
divorciados que querem casar novamente – questão emergente nos dois sínodos
sobre a família (outubro
de 2014 e outubro de 2015).
Para Müller, “o sacramento do matrimónio é indissolúvel por vontade de Deus”, o
que ninguém pode mudar. Por isso, “uma possibilidade é voltar para o esposo
legítimo ou então desistir das relações que não são válidas”, vivendo more fratris et sororis, ficando para o
purpurado a questão “apenas em perceber se as condições para aquele matrimónio
estavam reunidas, de acordo com os preceitos da Igreja”. Com efeito, “o
casamento civil não é exatamente igual ao sacramento do matrimónio”, o que
seguramente “há muitas pessoas que não conseguem entender”.
Ora, é preciso
dizê-lo claramente: Francisco não mudou nem pretendeu mudar a doutrina; entende
apenas que, no quadro da misericórdia evangélica, há de equacionar-se a forma
eficaz de demonstrar pastoralmente que os divorciados recasados pelo civil (tendo refeito a vida com outra pessoa) não estão, por esse facto, fora da
Igreja. E, se há outros bens a preservar ou o mister de não incorrer em mais
situações injustas, é de equacionar, a juízo dos pastores, a possibilidade de
aceder aos sacramentos da Reconciliação da Eucaristia, mediante um esclarecido itinerário
penitencial, salvaguardando que a doutrina da Igreja sobre o matrimónio não
muda, mas intentando a aproximação pastoral o mais eficaz e correta possível.
A Müller
sucede o espanhol Luis Francisco Ladaria Ferrer, de 73 anos, que ocupava até agora
o cargo de secretário na CDF. Natural de Maiorca, Ladaria tem sido um dos
membros mais ativos da CDF e da Comissão Teológica Internacional. E, além dos
cargos exercidos na Cúria, Ladaria é professor de Escatologia na Pontifícia
Universidade Gregoriana, em Roma. Com esta mudança de titulares na CDF, a
perspetiva doutrinal e teológica não muda radicalmente, mas apenas muda a
postura pastoral, tornando-se mais alinhada com o desígnio de Francisco e
talvez se acelere o andamento dos processos judiciais que são da jurisdição da
CDF.
O novo
Prefeito da CDF (um teólogo
europeu) entrou na
Companhia de Jesus em 1966, já depois de se ter formado em Direito, em Madrid.
Só depois é que se voltou para a vida sacerdotal. O Papa São João Paulo II
nomeou-o para a Comissão Teológica Internacional em 1992, e Bento XVI viria a
escolhê-lo para Secretário na CDF, em 2008. Por outro lado, Ladaria integra uma
outra comissão muito importante da Santa Sé: a Comissão para o Diálogo com a Fraternidade Sacerdotal São Pio X, a
sociedade de vida apostólica que o bispo francês Marcel Lefebvre criou em 1970
para manter a doutrina, os preceitos e a disciplina da Igreja anteriores ao
Concílio Vaticano II. Trata-se duma das organizações mais polémicas da Igreja,
pugnando pela celebração da Missa Tridentina (prática anterior ao Concílio Vaticano II, celebrada em
latim, de costas para o povoe preferencialmente ad Orientem –rejeitando por motivos doutrinais o missal de Paulo VI) – com a qual a Santa Sé tem
procurado aproximar o diálogo, sobretudo através desta comissão.
***
O Papa, como se disse, não renovou o mandato do responsável
pelo gabinete que processa e avalia todos os casos de sacerdotes acusados de
violação ou de abuso sexual de menores. A notícia da não renovação do mandato,
que era esperada por muitos, surgiu dias depois de Francisco ter autorizado o
Prefeito da Secretaria da Economia do Vaticano, que pediu e obteve licença de
funções, para se deslocar à Austrália a defender-se em tribunal num caso de
alegado abuso sexual. E o que terá a ver um caso com o outro?
Durante a vigência de 5 anos de Müller, o gabinete acumulou
dois mil casos e sofreu fortes críticas por parte da irlandesa Marie Collins. De
facto, a 1 de março, Collins, uma das vítimas de abuso sexual cometido por
sacerdotes, renunciou ao cargo que ocupava na Pontifícia Comissão para a Tutela de Menores, criada em 2014 para
investigar tais crimes. Segundo Collins (que disse à revista jesuíta America que a atitude “vergonhosa” da Congregação a levou a retirar-se
da Comissão), havia uma
resistência “inaceitável” às propostas da comissão por alguns organismos da
Santa Sé. Em maio, Francisco assegurou que nunca assinou um indulto a padres
envolvidos em escândalos de abusos sexuais e reconheceu que os processos estão
muito atrasados, com “dois mil casos amontoados”. E deu expressamente “alguma
razão” à irlandesa, afirmando que “há muitos casos atrasados, porque se
amontoavam ali”, e referiu que “há dois mil processos amontoados”, o que era inexplicável,
apesar da complexidade processual.
A CDF assumiu a responsabilidade de processar os casos de
abuso sexual de crianças em 2001, depois de o cardeal Joseph Ratzinger, que se
tornou o Papa Bento XVI, determinar que as dioceses não estavam a penalizar os
religiosos envolvidos como requeriam as leis eclesiais.
Ora, o cardeal George Pell anunciou que pediu a licença para
se defender, já aceite pelo Papa, das funções que desempenha no Vaticano, na
sequência das acusações da polícia australiana de abusos sexuais. Na verdade, a
polícia do Estado australiano de Victoria acusou o cardeal de 76 anos de crimes
de abusos sexuais de menores tendo ele sido intimado a comparecer perante o
tribunal de 1.ª instância de Melbourne no dia 18 de julho. Pell disse aos
jornalistas que vai comparecer e negou as acusações que classificou de “assassinato
de caráter”.
Entretanto, Greg Burke, porta-voz do Vaticano, disse que Francisco
autorizou a licença pedida pelo cardeal australiano, mas que ele mantém o cargo
de máximo responsável pelas Finanças da Igreja católica. Na verdade, enquanto
arcebispo de Melbourne e, depois, de Sidney, Pell enfrentou alegações que o
acusavam de encobrir abusos cometidos por clérigos. Mais recentemente, tornou-se
alvo de investigações da polícia de Victoria que o interrogou no Vaticano, em
2016.
Porque será que Müller nunca disse uma palavra a propósito do
caso Pell? A defendê-lo, não por certo, que a defesa tem de ser ativa e
explícita, quando a acusação é pública; encobri-lo, quando o Papa tem sido
claro e drástico na punição destes crimes, seria falta de entendimento, dissonância
e incurso em abominação. Obviamente, o meu desejo é que Pell esteja inocente e
Müller aceite humildemente a destituição do cargo e tente a aproximação ao
Pontífice esquecendo mais a questão da escola teológica alemã.
2017.07.03 – Louro
de Carvalho
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