segunda-feira, 3 de julho de 2017

A Congregação para a Doutrina da Fé mudou de Prefeito!

O Boletim da Sala de Imprensa da Santa Sé, do passado dia 1 de julho, divulgava a seguinte nota, sob o título “Conclusão do mandato quinquenal do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e nomeação do sucessor”:
O santo Padre Francisco agradeceu os seus serviços ao Eminentíssimo Senhor Cardeal Gerhard Ludwig Müller na conclusão do seu mandato quinquenal de Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e de Presidente da Pontifícia Comissão “Ecclesia Dei”, da Pontifícia Comissão Bíblica e da Comissão Teológica Internacional, e designou pra lhe suceder nos mesmos cargos Sua Excelência Reverendíssima Monsenhor Luis Francisco Ladaria Ferrer, S.J., Arcebispo titular de Tibica, até agora Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé”.
Nada mais natural – dirão – o Papa nomeia quem entender para a chefia dos diversos dicastérios romanos. Alguns dirão que o Cardeal alemão poderia cumprir mais um quinquénio, dado que ainda só fez 69 anos, vindo a perfazer os 70 a 30 de novembro; portanto, encontra-se a mais de cinco anos da idade-limite para prestar serviço eclesiástico no topo dum dicastério. Todavia, o Papa não renovou o mandato do conservador Gerhard Müller enquanto Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), cargo que ocupava desde 2 de julho de 2012, juntamente com os demais cargos acima referidos. O Prefeito da mais poderosa Congregação Romana (e não o braço direito do líder da Igreja Católica, como dizem os jornais, pois esse é o Cardeal Secretário de Estado Pietro Parolin) é, partir de agora, o jesuíta espanhol Dom Luis Ladaria, que tem agora 73 anos e era Secretário da Congregação de que Müller era Prefeito.
Jornais italianos, como La Stampa e Il Messaggero, informaram que o Papa se encontrou na véspera com Müller, de 69 anos, para lhe comunicar que “o seu mandato terminará no domingo, justamente quando ele faz cinco anos no posto. Não são oficialmente conhecidas as razões da demissão, mas o purpurado, considerado linha-dura, era tido como contrário às reformas na Igreja Católica e é um crítico da exortação apostólica Amoris Laetitia, de Francisco, publicada em 2016, que sugere que pessoas casadas e divorciadas em segundo casamento poderiam, sob circunstâncias especiais, participar da comunhão.
O Prefeito Müller tinha sido escolhido por Bento XVI para ocupar um cargo que ele próprio desempenhara antes do Cardeal Levada. Tal como Joseph Ratzinger, Gerhard Müller é alemão, teólogo e académico, e são conhecidas as diferenças de opinião entre Francisco e ele.
Antes da vinda do Papa a Fátima, o cardeal disse ao Observador:
“As circunstâncias da vida e formação da razão e as experiências [de Francisco] são muito diferentes das de alguém oriundo da Alemanha, com uma vida académica, virada para o nível académico que existe na teologia alemã há vários séculos. O Papa Francisco tem uma espiritualidade que lhe vem dos Jesuítas, enquanto a do Papa Bento XVI lhe chega mais de Santo Agostinho, São Boaventura e da tradição da teologia existencial. Seguramente que a realidade do Papa Francisco, vindo de um contexto latino-americano, é muito diferente da história e da cultura europeias. No entanto, somos a mesma Igreja e a Fé não divide as pessoas. É a base da unidade.”.
As duas últimas frases da declaração do até agora Prefeito são totalmente verdadeiras, mas menorizar a teologia e a mundivisão do Pontífice argentino por não ter a escola alemã – o que não corresponde exatamente à verdade – ou atrelá-lo inexoravelmente aos jesuítas como se a teologia destes fosse de menor categoria e contrária à alemã, em comparação com a de Ratzinger, próxima de Santo Agostinho sabe a injusto, inexato e até arrogante. Aliás, tornou-se ridícula a afirmação do Prefeito de que tinha a competência de colmatar a necessidade de enquadrar teologicamente o pontificado de Francisco, como se este fosse obrigado a andar a toque de caixa da CDF e não fosse esta a prestar o serviço ao Papa como organismo de apuramento da doutrina e de morigeração dos costumes contrários aos inspirados no Evangelho.
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O Vaticano refere, na nota acima transcrita que o Papa está muito agradecido ao cardeal alemão pelo seu trabalho nos últimos cinco anos, mas que o mandato terminava este fim de semana. Não deixa de ter, apesar de tudo, alguma razão. Com efeito, nestes 5 anos, a CDF, além de vários livros e estudos, produziu dois documentos de bom senso e de excelência: a Carta Iuvenescit Ecclesia, sobre a relação entre os dons hierárquicos e carismáticos para a vida e a missão da Igreja, de 15 de maio de 2016; a Instrução Ad resurgendum cum Christo, a propósito da sepultura dos defuntos e da conservação das cinzas da cremação, de 15 de agosto de 2016.
A CDF é responsável pela difusão da doutrina e pela defesa dos pontos da tradição que possam estar em perigo devido a doutrinas não aceitáveis pela Igreja. E é responsável por investigar os casos de abuso sexual de sacerdotes. Em fins de fevereiro, Müller negou ter sistematicamente ocultado casos de abusos na Igreja, dizendo ao jornal La Repubblica:
“A Igreja não esconde nada. Em alguns casos, pode ter havido desconhecimento, mas não sistemático”.
No entanto, Müller tem pautado a maior parte das intervenções públicas pelo distanciamento em relação ao Papa, manifestado nos silêncios, quando era seu dever falar, nas afirmações contrárias às do Pontífice e no apoio (ora tácito, ora explícito) ao discurso e postura dos opositores – figurando para a opinião pública como opositor às reformas e crítico das posições do Pontífice.
Um dos pontos mais fraturantes entre o Cardeal e Francisco é a questão dos católicos divorciados que querem casar novamente – questão emergente nos dois sínodos sobre a família (outubro de 2014 e outubro de 2015). Para Müller, “o sacramento do matrimónio é indissolúvel por vontade de Deus”, o que ninguém pode mudar. Por isso, “uma possibilidade é voltar para o esposo legítimo ou então desistir das relações que não são válidas”, vivendo more fratris et sororis, ficando para o purpurado a questão “apenas em perceber se as condições para aquele matrimónio estavam reunidas, de acordo com os preceitos da Igreja”. Com efeito, “o casamento civil não é exatamente igual ao sacramento do matrimónio”, o que seguramente “há muitas pessoas que não conseguem entender”.
Ora, é preciso dizê-lo claramente: Francisco não mudou nem pretendeu mudar a doutrina; entende apenas que, no quadro da misericórdia evangélica, há de equacionar-se a forma eficaz de demonstrar pastoralmente que os divorciados recasados pelo civil (tendo refeito a vida com outra pessoa) não estão, por esse facto, fora da Igreja. E, se há outros bens a preservar ou o mister de não incorrer em mais situações injustas, é de equacionar, a juízo dos pastores, a possibilidade de aceder aos sacramentos da Reconciliação da Eucaristia, mediante um esclarecido itinerário penitencial, salvaguardando que a doutrina da Igreja sobre o matrimónio não muda, mas intentando a aproximação pastoral o mais eficaz e correta possível.
A Müller sucede o espanhol Luis Francisco Ladaria Ferrer, de 73 anos, que ocupava até agora o cargo de secretário na CDF. Natural de Maiorca, Ladaria tem sido um dos membros mais ativos da CDF e da Comissão Teológica Internacional. E, além dos cargos exercidos na Cúria, Ladaria é professor de Escatologia na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma. Com esta mudança de titulares na CDF, a perspetiva doutrinal e teológica não muda radicalmente, mas apenas muda a postura pastoral, tornando-se mais alinhada com o desígnio de Francisco e talvez se acelere o andamento dos processos judiciais que são da jurisdição da CDF.
O novo Prefeito da CDF (um teólogo europeu) entrou na Companhia de Jesus em 1966, já depois de se ter formado em Direito, em Madrid. Só depois é que se voltou para a vida sacerdotal. O Papa São João Paulo II nomeou-o para a Comissão Teológica Internacional em 1992, e Bento XVI viria a escolhê-lo para Secretário na CDF, em 2008. Por outro lado, Ladaria integra uma outra comissão muito importante da Santa Sé: a Comissão para o Diálogo com a Fraternidade Sacerdotal São Pio X, a sociedade de vida apostólica que o bispo francês Marcel Lefebvre criou em 1970 para manter a doutrina, os preceitos e a disciplina da Igreja anteriores ao Concílio Vaticano II. Trata-se duma das organizações mais polémicas da Igreja, pugnando pela celebração da Missa Tridentina (prática anterior ao Concílio Vaticano II, celebrada em latim, de costas para o povoe preferencialmente ad Orientem –rejeitando por motivos doutrinais o missal de Paulo VI) – com a qual a Santa Sé tem procurado aproximar o diálogo, sobretudo através desta comissão.
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O Papa, como se disse, não renovou o mandato do responsável pelo gabinete que processa e avalia todos os casos de sacerdotes acusados de violação ou de abuso sexual de menores. A notícia da não renovação do mandato, que era esperada por muitos, surgiu dias depois de Francisco ter autorizado o Prefeito da Secretaria da Economia do Vaticano, que pediu e obteve licença de funções, para se deslocar à Austrália a defender-se em tribunal num caso de alegado abuso sexual. E o que terá a ver um caso com o outro?
Durante a vigência de 5 anos de Müller, o gabinete acumulou dois mil casos e sofreu fortes críticas por parte da irlandesa Marie Collins. De facto, a 1 de março, Collins, uma das vítimas de abuso sexual cometido por sacerdotes, renunciou ao cargo que ocupava na Pontifícia Comissão para a Tutela de Menores, criada em 2014 para investigar tais crimes. Segundo Collins (que disse à revista jesuíta America que a atitude “vergonhosa” da Congregação a levou a retirar-se da Comissão), havia uma resistência “inaceitável” às propostas da comissão por alguns organismos da Santa Sé. Em maio, Francisco assegurou que nunca assinou um indulto a padres envolvidos em escândalos de abusos sexuais e reconheceu que os processos estão muito atrasados, com “dois mil casos amontoados”. E deu expressamente “alguma razão” à irlandesa, afirmando que “há muitos casos atrasados, porque se amontoavam ali”, e referiu que “há dois mil processos amontoados”, o que era inexplicável, apesar da complexidade processual.
A CDF assumiu a responsabilidade de processar os casos de abuso sexual de crianças em 2001, depois de o cardeal Joseph Ratzinger, que se tornou o Papa Bento XVI, determinar que as dioceses não estavam a penalizar os religiosos envolvidos como requeriam as leis eclesiais.
Ora, o cardeal George Pell anunciou que pediu a licença para se defender, já aceite pelo Papa, das funções que desempenha no Vaticano, na sequência das acusações da polícia australiana de abusos sexuais. Na verdade, a polícia do Estado australiano de Victoria acusou o cardeal de 76 anos de crimes de abusos sexuais de menores tendo ele sido intimado a comparecer perante o tribunal de 1.ª instância de Melbourne no dia 18 de julho. Pell disse aos jornalistas que vai comparecer e negou as acusações que classificou de “assassinato de caráter”.
Entretanto, Greg Burke, porta-voz do Vaticano, disse que Francisco autorizou a licença pedida pelo cardeal australiano, mas que ele mantém o cargo de máximo responsável pelas Finanças da Igreja católica. Na verdade, enquanto arcebispo de Melbourne e, depois, de Sidney, Pell enfrentou alegações que o acusavam de encobrir abusos cometidos por clérigos. Mais recentemente, tornou-se alvo de investigações da polícia de Victoria que o interrogou no Vaticano, em 2016.
Porque será que Müller nunca disse uma palavra a propósito do caso Pell? A defendê-lo, não por certo, que a defesa tem de ser ativa e explícita, quando a acusação é pública; encobri-lo, quando o Papa tem sido claro e drástico na punição destes crimes, seria falta de entendimento, dissonância e incurso em abominação. Obviamente, o meu desejo é que Pell esteja inocente e Müller aceite humildemente a destituição do cargo e tente a aproximação ao Pontífice esquecendo mais a questão da escola teológica alemã.  

2017.07.03 – Louro de Carvalho

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