domingo, 30 de julho de 2017

As questões do ciclo político na entrevista do DN ao Presidente

O DN de hoje, 30 de julho, publica uma entrevista ao Presidente da República, que distribui por diversas secções. Interessa comentar a que diz respeito ao atual o ciclo político.
***
Questionado quanto à acusação, sobretudo por parte do eleitorado de centro-direita, de que “O Presidente leva o Governo ao colo”, Marcelo Rebelo de Sousa reage escorado no papel constitucional do Presidente para cujo conhecimento invoca o seu estatuto de antigo deputado constituinte e o de professor de Direito Constitucional – o que é realmente excrescente, como se, por alegada ignorância, Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva não conhecessem o papel constitucional do Presidente. Com efeito, um órgão unipessoal desta natureza dispõe da Casa Civil e da Casa Militar, além de inúmeros conselheiros e assessores.
Depois, Marcelo diz que “o Presidente não tem de ter confiança política pessoal no Primeiro-Ministro ou nos membros do Governo”. Aqui, tem a razão por inteiro, o que todos nós sabemos, pois a gestão suprema do Estado não é assunto pessoal nem de clube de família ou de amigos.
Diz o entrevistado que o Presidente
“Tem de ter uma confiança institucional ou, se [se] quiser, político-institucional; o que significa que o Presidente deve permanentemente garantir o respeito dos princípios fundamentais e dos direitos consagrados na Constituição e deve, ao mesmo tempo, também garantir o cumprimento de certas metas institucionais que, no caso presente, são o respeito do Direito Internacional, o respeito da pertença de Portugal à NATO, da pertença de Portugal à CPLP, da pertença de Portugal às Nações Unidas e, de forma particular, da pertença de Portugal à União Europeia, implicando isso o respeito do Direito Europeu, económico e financeiro, concorde-se ou não com ele”.
E vai mais adiante ao dar largas a certa ambiguidade sobre o papel do Governo e do Presidente:
“O Governo está à vontade de tudo fazer para o alterar, mas enquanto não for alterado tem de o cumprir. Portanto, cabe ao Presidente ir garantindo que há um cumprimento dessas metas e desses compromissos, dos quais o mais falado ao longo deste tempo foi o do défice, mas não é apenas o défice; portanto, isto é a relação que um Presidente deve ter com um governo de acordo com a Constituição e no quadro daquelas prioridades que o Governo sabe que são prioridades institucionais que deve cumprir.”.
Primeiro, pertence ao estatuto constitucional do Presidente da República, segundo o artigo 120.º da CRP representar a República Portuguesa”, garantir “a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas” e ser, “por inerência, Comandante Supremo das Forças Armadas”.  Será que na garantia do “regular funcionamento das instituições democráticas” cabe o policiamento presidencial da ação do Governo? E esse policiamento atinge apenas os tratados e compromissos internacionais? E que fazer quanto ao não cumprimento dos outros misteres próprios do Governo?
Se lermos o rol das competências presidenciais, vemos que, no atinente às relações internacionais, lhe cabe “ratificar os tratados internacionais, depois de devidamente aprovados” (vd alínea b do art.º 135.º da CRP) e não propriamente a fiscalização do seu cumprimento. Aliás, embora incumba ao Governo a “condução da política geral do país” e ser “o órgão superior da administração pública” (vd art.º 182.º da CRP), é da Assembleia da República, e não do Presidente da República, a competência de:
a) Vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os atos do Governo e da Administração; b) Apreciar a aplicação da declaração do estado de sítio ou do estado de emergência; c) Apreciar, para efeito de cessação de vigência ou de alteração, os decretos-leis, salvo os feitos no exercício da competência legislativa exclusiva do Governo, e os decretos legislativos regionais previstos na alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º; d) Tomar as contas do Estado e das demais entidades públicas que a lei determinar, as quais serão apresentadas até 31 de dezembro do ano subsequente, com o parecer do Tribunal de Contas e os demais elementos necessários à sua apreciação; e) Apreciar os relatórios de execução dos planos nacionais.
E a CRP não define que tipo de cooperação existe ou deve existir entre Presidente e Governo.
Por isso, pode chamar-se coabitação, coexistência, cooperação institucional, cooperação estratégica, cooperação política, cooperação político-estratégica, cumprimento estrito de funções, ajuda mútua, interdependência. Só não pode haver confusão de poderes.
Em relação ao Governo, compete ao Presidente (segundo a alínea f) do art.º 133.º da CRP) “nomear o Primeiro-Ministro, nos termos do n.º 1 do artigo 187.º: “ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais” (n.º 1), sendo os restantes membros do Governo “nomeados pelo Presidente da República, sob proposta do Primeiro-Ministro” (n.º 2). E, segundo a alínea g) do art.º 133.º, só pode demitir o Governo, nos termos do n.º 2 do art.º 195.º, e exonerar o Primeiro-Ministro, nos termos do n.º 4 do artigo 186.º” – isto é: “só pode demitir o Governo quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado” (art.º 195.º/2); e, “em caso de demissão do Governo, o Primeiro-Ministro do Governo cessante é exonerado na data da nomeação e posse do novo Primeiro-Ministro” (art.º 186.º/4).
Obviamente que, segundo a alínea e) do art.º 133.º da CRP, pode atuar indiretamente contra o Governo pela dissolução da Assembleia da República, “observado o disposto no artigo 172.º, ouvidos os partidos nela representados e o Conselho de Estado” – ou seja;
1. A Assembleia da República não pode ser dissolvida nos seis meses posteriores à sua eleição, no último semestre do mandato do Presidente da República ou durante a vigência do estado de sítio ou do estado de emergência. 2. A inobservância do disposto no número anterior determina a inexistência jurídica do decreto de dissolução. 3. A dissolução da Assembleia não prejudica a subsistência do mandato dos Deputados, nem da competência da Comissão Permanente, até à primeira reunião da Assembleia após as subsequentes eleições.
Além disso, sobre responsabilidade do Governo, o art.º 190.º da CRP estabelece genericamente:
“O Governo é responsável perante o Presidente da República e a Assembleia da República”.
E o art.º 191.º estabelece, sobre a responsabilidade dos membros do Governo:
1. O Primeiro-Ministro é responsável perante o Presidente da República e, no âmbito da responsabilidade política do Governo, perante a Assembleia da República. 2. Os Vice-Primeiros-Ministros e os Ministros são responsáveis perante o Primeiro-Ministro e, no âmbito da responsabilidade política do Governo, perante a Assembleia da República. 3. Os Secretários e Subsecretários de Estado são responsáveis perante o Primeiro-Ministro e o respetivo Ministro.
Em nenhum caso está qualificada a responsabilidade do Governo ou do Primeiro-Ministro perante o Presidente da República, ao passo que, em relação ao Parlamento, o Governo tem definida uma responsabilidade “política”.
 ***
Depois, olhando “para a experiência constitucional portuguesa”, Marcelo evoca “duas situações em que o Presidente alegadamente interveio de forma relativamente rápida:
“O caso do Presidente Ramalho Eanes, porque o Governo do então Primeiro-Ministro Mário Soares apresentou uma moção de confiança e foi derrotado e, portanto, houve uma queda do Governo e a necessidade de se formar um governo, chamemos-lhe socialista com centristas e com independentes; e foi o caso do Presidente Mário Soares, porque foi votada uma moção de censura na Assembleia da República que o levou a ter de optar entre aceitar um governo que lhe era proposto ou dissolver o Parlamento”.
Como é que Marcelo pode falar da rapidez de atuação de Eanes, se o I Governo Constitucional caiu por não aprovação de moção de confiança a 7 de dezembro de 1977 e o II Governo só foi nomeado e empossado a 23 de janeiro de 1978, sem ter havido dissolução do Parlamento e novas eleições? Ou se o Governo do Bloco Central – que surgiu de eleições realizadas a 25 de abril de 1983 em virtude de dissolução do Parlamento – só foi empossado a 9 de junho de 1983? E se o mesmo assinou o Tratado de Adesão à CEE a 12 de junho já sob o látego cavaquista de denúncia do acordo de coligação e o Governo que se lhe seguiu só foi empossado a 6 de novembro de 1985? De facto, embora Portugal não seja exemplo de retardamento na demora de formação de governos, também não é exemplo de rapidez, muito menos com Eanes, ressalvando as circunstâncias dificílimas em que exerceu o cargo de Presidente da República!
Se Marcelo fala de longa coexistência de Soares com Aníbal e de Aníbal com José Sócrates, também pode falar da coexistência de Sampaio com Durão Barroso, sendo que a atitude de Sampaio e dos barões do PSD foi indescritível no cerco a Santana Lopes; e a postura de Cavaco a Sócrates após a reeleição presidencial também foi incrível, até porque, segundo veio a dizer mais tarde, não notou nele nenhum indício de comportamento irregular. E porque não saudou Marcelo a paciente coexistência de Eanes com sete primeiros-ministros e 10 governos?
***
No atinente à sua presidência, Marcelo refere que, à sua posse, Portugal estava em saída do processo de défice excessivo, após um período crítico e com urgentes prioridades económicas e financeiras: o controlo do défice; a recapitalização e consolidação do sistema bancário (estava em situação mais complexa do que aquela que ele imaginara como candidato); e a exigência de fazer tudo isto num clima de “equilíbrio das contas externas e passos para o crescimento económico, sem o qual o controlo do défice era sempre muito precário e de muito curta duração”. Era, pois, “um período muito complexo” a exigir estabilidade política, legislativa, fiscal, laboral e, sobretudo, “uma estabilidade essencial” para instituições que desconfiavam de Portugal (“instituições internas e internacionais, sobretudo económicas e financeiras”) “deixarem de desconfiar”. E confessa que “foi possível garantir a estabilidade política”. Porém, diz que, a partir do início de abril, quando em teoria, como Presidente poderia dissolver a Assembleia da República, “alguns dos eleitores de centro-direita esperaram isso ou desejaram isso ou ansiaram por isso e, nisso, tiveram alguma desilusão” – o que  estava completamente longe do seu pensamento, por ter “consequências dramáticas em termos do Orçamento do Estado para 2016”. Todavia, “foi possível fazer aprovar o Orçamento para 2016, o Orçamento para 2017 e estamos agora, decorrido quase um ano e meio, com alguns desafios que são iguais e outros desafios que são novos”.
Entre os iguais, conta a continuidade do controlo do défice (que tem de descer; e o Governo comprometeu-se com 1,5% do PIB); e a aceleração do crescimento (que Marcelo fala nos 3% para cumprir os objetivos do equilíbrio externo e do equilíbrio interno), pela garantia do “crescimento das exportações e do investimento que, por sua vez, permitem o crescimento da economia”. Depois, é preciso resolver o que falta: os ativos problemáticos do sistema bancário. Com efeito, “a questão da consolidação da banca conheceu um ano, um ano e meio, de passos positivos, mas há passos ainda por dar”. Mas isto continua a exigir a estabilidade política. E vêm as questões atinentes à mudança das leis, dos impostos, da legislação laboral, das condições dos custos de contexto…
E Marcelo – que, neste âmbito, apenas merece a crítica de não ter percebido enquanto candidato a complexidade do momento português; e agora colhe para si demasiados louros do controlo da crise – acaba por reconhecer que a criação de uma crise política prejudica as outras grandes prioridades nacionais. Na verdade, é necessário sempre
“Um período de tempo muito longo, porque entre as condições para dar qualquer passo que ponha em causa o Governo que existe ou, por maioria de razão, a Assembleia que existe, a convocação de eleições, a realização de eleições, a formação de Governo, a entrada em funções do Governo, temos meses que, mesmo que não encavalitem com o Orçamento do Estado, têm consequências verdadeiramente desastrosas para a economia e as finanças portuguesas”.
Por isso, o Presidente raciocina com razoabilidade política e sentido pragmático ao afirmar:
“Algum eleitorado de centro-direita que esperava a dissolução da Assembleia da República em abril, ou se não era em abril, um pouco mais tarde no decurso do ano passado, ou que periodicamente pensa que esse é um caminho que se coloca, tem de compreender que há realmente prioridades nacionais e que uma prioridade nacional é esta, nossa, concreta, de natureza económica e financeira e essa exige estabilidade política, que deve apontar para o cumprimento de legislaturas”.
Não se trata de levar o Governo ao colo, mas de “uma cooperação institucional em que estão bem definidas quais são algumas metas”, de que “o Governo não se deve afastar porque são compromissos internacionais, mas têm consequências na economia e nas finanças portuguesas”.
***
Interpelado quanto à sua afirmação de que, embora não lhe coubesse afirmar que determinado partido devia mudar para haver uma oposição mais dinâmica, contudo defendera a estabilidade para todos, Governo, oposição e suas lideranças, vindo a explicitar, mais tarde, que Passos coelho ainda poderia ser Primeiro-Ministro, respondeu curto, porque interrompido:
“Eu penso que é muito importante para este objetivo de estabilidade política, e tenho-o repetido, que a área do Governo seja forte e coesa...”
E à interrupção em torno dos adjetivos “forte e coesa” deu seguimento referindo que “temos a noção de que esta fórmula governativa é uma fórmula original nunca ensaiada na vida política portuguesa”. Nesta situação, “é importante, para haver estabilidade política, que haja acordo sobre os orçamentos de Estado, sobre os programas de reforma e de estabilidade porque são documentos prévios fundamentais a apresentar à UE”, o que “implica um mínimo de coesão interna e um mínimo de força do Governo e dos partidos que o apoiam no Parlamento”.
Quanto à oposição, é de reconhecer que a sua missão “não é fácil”. Só tivemos um líder da oposição, Mário Soares, “que antes tivesse sido Primeiro-Ministro e que tenha continuado depois de ter sido Primeiro-Ministro a exercer as funções de liderança”. Teve uma oposição tão acidentada que, por causa de eleições presidenciais, saiu da liderança do partido e regressou, mas passando “por uma travessia do deserto muito complicada até, mais tarde, se formar um acordo muito transitório chamado Bloco Central”. Quanto a Passos Coelho, frisou:
“Teve um resultado como líder de coligação superior ao resultado do Partido Socialista, que veio a formar Governo e que está no Governo, e, portanto, tinha de fazer essa experiência de passagem à oposição ficando no Parlamento, intervindo no Parlamento”.
E julga fundamental que as oposições sejam fortes (são duas e não uma, pois onde havia coligação passou a haver dois partidos com estratégias e posicionamentos diversos e, até, candidaturas diferentes nalguns casos com relevância nas autárquicas). E assegura:
“Não há nada pior para um Presidente da República do que não ter dois termos de alternativa fortes; porque, no caso de existir uma situação crítica, aguda, insuperável num dos termos da alternativa, é bom ter outro termo da alternativa que possa governar o país.”.
Está visto que não basta que um partido tenha mais votos numas eleições para formar Governo. Pode mesmo “acontecer que um partido, o partido mais forte da oposição ou a coligação, tenha uma votação superior a um partido, neste caso o partido do Governo, e isso não chegue para ser governo”. Assim, o centro-direita, se quer ter a garantia de que vem a ser governo, “deve apontar para a maioria absoluta”, sendo que um bloco central é sempre uma emergência.
***
Eis, de quem tem agenda política (oculta, mas vincada) e uma atuação política taticamente cooperante, um salomónico aviso ao Governo e à oposição!

2017.07.30 – Louro de Carvalho 

Sem comentários:

Enviar um comentário