O DN de
hoje, 30 de julho, publica uma entrevista ao Presidente da República, que
distribui por diversas secções. Interessa comentar a que diz respeito ao atual
o ciclo político.
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Questionado quanto à acusação, sobretudo por parte do
eleitorado de centro-direita, de que “O
Presidente leva o Governo ao colo”, Marcelo Rebelo de Sousa reage escorado
no papel constitucional do Presidente para cujo conhecimento invoca o seu
estatuto de antigo deputado constituinte e o de professor de Direito
Constitucional – o que é realmente excrescente, como se, por alegada ignorância,
Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva não conhecessem o
papel constitucional do Presidente. Com efeito, um órgão unipessoal desta
natureza dispõe da Casa Civil e da Casa Militar, além de inúmeros conselheiros
e assessores.
Depois, Marcelo diz que “o Presidente não tem de ter
confiança política pessoal no Primeiro-Ministro ou nos membros do Governo”.
Aqui, tem a razão por inteiro, o que todos nós sabemos, pois a gestão suprema
do Estado não é assunto pessoal nem de clube de família ou de amigos.
Diz o entrevistado que o Presidente
“Tem de ter uma confiança institucional ou, se [se] quiser,
político-institucional; o que significa que o Presidente deve permanentemente
garantir o respeito dos princípios fundamentais e dos direitos consagrados na
Constituição e deve, ao mesmo tempo, também garantir o cumprimento de certas
metas institucionais que, no caso presente, são o respeito do Direito
Internacional, o respeito da pertença de Portugal à NATO, da pertença de
Portugal à CPLP, da pertença de Portugal às Nações Unidas e, de forma
particular, da pertença de Portugal à União Europeia, implicando isso o
respeito do Direito Europeu, económico e financeiro, concorde-se ou não com ele”.
E vai mais adiante ao dar largas a certa ambiguidade
sobre o papel do Governo e do Presidente:
“O Governo está à vontade de tudo fazer para o alterar, mas enquanto não
for alterado tem de o cumprir. Portanto, cabe ao Presidente ir garantindo que
há um cumprimento dessas metas e desses compromissos, dos quais o mais falado
ao longo deste tempo foi o do défice, mas não é apenas o défice; portanto, isto
é a relação que um Presidente deve ter com um governo de acordo com a
Constituição e no quadro daquelas prioridades que o Governo sabe que são
prioridades institucionais que deve cumprir.”.
Primeiro, pertence ao estatuto constitucional do Presidente
da República, segundo o artigo 120.º da CRP representar “a República Portuguesa”,
garantir “a independência nacional, a
unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas”
e ser, “por inerência, Comandante Supremo
das Forças Armadas”. Será que na
garantia do “regular funcionamento das
instituições democráticas” cabe o policiamento presidencial da ação do
Governo? E esse policiamento atinge apenas os tratados e compromissos
internacionais? E que fazer quanto ao não cumprimento dos outros misteres
próprios do Governo?
Se lermos o rol das competências presidenciais, vemos que, no
atinente às relações internacionais, lhe cabe “ratificar os tratados
internacionais, depois de devidamente aprovados” (vd alínea b do art.º 135.º da CRP) e não propriamente a fiscalização
do seu cumprimento. Aliás, embora incumba ao Governo a “condução da política
geral do país” e ser “o órgão superior da administração pública” (vd art.º
182.º da CRP), é da Assembleia da República, e não do Presidente da República,
a competência de:
a) Vigiar pelo cumprimento da Constituição
e das leis e apreciar os atos do Governo e da Administração; b) Apreciar a aplicação da declaração
do estado de sítio ou do estado de emergência; c) Apreciar, para efeito de cessação de vigência ou de alteração,
os decretos-leis, salvo os feitos no exercício da competência legislativa
exclusiva do Governo, e os decretos legislativos regionais previstos na alínea
b) do n.º 1 do artigo 227.º; d) Tomar
as contas do Estado e das demais entidades públicas que a lei determinar, as
quais serão apresentadas até 31 de dezembro do ano subsequente, com o parecer
do Tribunal de Contas e os demais elementos necessários à sua apreciação; e) Apreciar os relatórios de execução
dos planos nacionais.
E a CRP não define que tipo de cooperação existe ou deve existir
entre Presidente e Governo.
Por isso, pode chamar-se coabitação, coexistência, cooperação
institucional, cooperação estratégica, cooperação política, cooperação político-estratégica,
cumprimento estrito de funções, ajuda mútua, interdependência. Só não pode
haver confusão de poderes.
Em relação ao Governo, compete ao Presidente (segundo a alínea f) do art.º 133.º da
CRP) “nomear o
Primeiro-Ministro, nos termos do n.º 1 do artigo 187.º: “ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em
conta os resultados eleitorais” (n.º 1),
sendo os restantes membros do Governo “nomeados pelo Presidente da República, sob proposta do
Primeiro-Ministro” (n.º 2). E, segundo a alínea g) do art.º 133.º, só pode
demitir o Governo, nos termos do n.º 2 do art.º 195.º, e exonerar o
Primeiro-Ministro, nos termos do n.º 4 do artigo 186.º” – isto é: “só pode
demitir o Governo quando tal se torne necessário para assegurar o regular
funcionamento das instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado” (art.º 195.º/2); e, “em caso de demissão do
Governo, o Primeiro-Ministro do Governo cessante é exonerado na data da
nomeação e posse do novo Primeiro-Ministro” (art.º 186.º/4).
Obviamente que, segundo a alínea e) do art.º 133.º da CRP,
pode atuar indiretamente contra o Governo pela dissolução da Assembleia da
República, “observado o disposto no artigo 172.º, ouvidos os partidos nela
representados e o Conselho de Estado” – ou seja;
1. A Assembleia da República não pode
ser dissolvida nos seis meses posteriores à sua eleição, no último semestre do
mandato do Presidente da República ou durante a vigência do estado de sítio ou
do estado de emergência. 2. A
inobservância do disposto no número anterior determina a inexistência jurídica
do decreto de dissolução. 3. A dissolução da Assembleia não prejudica a subsistência do
mandato dos Deputados, nem da competência da Comissão Permanente, até à
primeira reunião da Assembleia após as subsequentes eleições.
Além disso, sobre
responsabilidade do Governo, o art.º 190.º da CRP estabelece genericamente:
“O Governo é
responsável perante o Presidente da República e a Assembleia da República”.
E o art.º 191.º estabelece, sobre
a responsabilidade dos membros do Governo:
1. O
Primeiro-Ministro é responsável perante o Presidente da República e, no âmbito
da responsabilidade política do Governo, perante a Assembleia da República. 2.
Os Vice-Primeiros-Ministros e os Ministros são responsáveis perante o
Primeiro-Ministro e, no âmbito da responsabilidade política do Governo, perante
a Assembleia da República. 3. Os Secretários e Subsecretários de Estado
são responsáveis perante o Primeiro-Ministro e o respetivo Ministro.
Em nenhum caso está qualificada a
responsabilidade do Governo ou do Primeiro-Ministro perante o Presidente da
República, ao passo que, em relação ao Parlamento, o Governo tem definida uma
responsabilidade “política”.
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Depois, olhando “para a experiência constitucional
portuguesa”, Marcelo evoca “duas situações em que o Presidente alegadamente interveio
de forma relativamente rápida:
“O caso
do Presidente Ramalho Eanes, porque o Governo do então Primeiro-Ministro Mário
Soares apresentou uma moção de confiança e foi derrotado e, portanto, houve uma
queda do Governo e a necessidade de se formar um governo, chamemos-lhe
socialista com centristas e com independentes; e foi o caso do Presidente Mário
Soares, porque foi votada uma moção de censura na Assembleia da República que o
levou a ter de optar entre aceitar um governo que lhe era proposto ou dissolver
o Parlamento”.
Como é que Marcelo pode falar da rapidez de atuação de Eanes,
se o I Governo Constitucional caiu por não aprovação de moção de confiança a 7
de dezembro de 1977 e o II Governo só foi nomeado e empossado a 23 de janeiro
de 1978, sem ter havido dissolução do Parlamento e novas eleições? Ou se o
Governo do Bloco Central – que surgiu de eleições realizadas a 25 de abril de
1983 em virtude de dissolução do Parlamento – só foi empossado a 9 de junho de
1983? E se o mesmo assinou o Tratado de Adesão à CEE a 12 de junho já sob o
látego cavaquista de denúncia do acordo de coligação e o Governo que se lhe
seguiu só foi empossado a 6 de novembro de 1985? De facto, embora Portugal não
seja exemplo de retardamento na demora de formação de governos, também não é
exemplo de rapidez, muito menos com Eanes, ressalvando as circunstâncias
dificílimas em que exerceu o cargo de Presidente da República!
Se Marcelo fala de longa coexistência de Soares com Aníbal e
de Aníbal com José Sócrates, também pode falar da coexistência de Sampaio com
Durão Barroso, sendo que a atitude de Sampaio e dos barões do PSD foi
indescritível no cerco a Santana Lopes; e a postura de Cavaco a Sócrates após a
reeleição presidencial também foi incrível, até porque, segundo veio a dizer
mais tarde, não notou nele nenhum indício de comportamento irregular. E porque
não saudou Marcelo a paciente coexistência de Eanes com sete
primeiros-ministros e 10 governos?
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No atinente à sua presidência, Marcelo refere que, à sua
posse, Portugal estava em saída do processo de défice excessivo, após um
período crítico e com urgentes prioridades económicas e financeiras: o controlo
do défice; a recapitalização e consolidação do sistema bancário (estava em situação mais complexa do
que aquela que ele imaginara como candidato); e a exigência de fazer tudo isto num clima de “equilíbrio
das contas externas e passos para o crescimento económico, sem o qual o
controlo do défice era sempre muito precário e de muito curta duração”. Era,
pois, “um período muito complexo” a exigir estabilidade política, legislativa,
fiscal, laboral e, sobretudo, “uma estabilidade essencial” para instituições
que desconfiavam de Portugal (“instituições internas e internacionais, sobretudo económicas e
financeiras”) “deixarem
de desconfiar”. E confessa que “foi possível garantir a estabilidade política”.
Porém, diz que, a partir do início de abril, quando em teoria, como Presidente
poderia dissolver a Assembleia da República, “alguns dos eleitores de
centro-direita esperaram isso ou desejaram isso ou ansiaram por isso e, nisso,
tiveram alguma desilusão” – o que estava
completamente longe do seu pensamento, por ter “consequências dramáticas em
termos do Orçamento do Estado para 2016”. Todavia, “foi possível fazer aprovar
o Orçamento para 2016, o Orçamento para 2017 e estamos agora, decorrido quase
um ano e meio, com alguns desafios que são iguais e outros desafios que são
novos”.
Entre os iguais, conta a continuidade do
controlo do défice (que tem de descer; e o Governo comprometeu-se com 1,5% do PIB); e a aceleração do
crescimento (que Marcelo fala nos 3% para cumprir os objetivos do equilíbrio externo e do
equilíbrio interno), pela garantia do “crescimento das exportações e do
investimento que, por sua vez, permitem o crescimento da economia”. Depois, é
preciso resolver o que falta: os ativos problemáticos do sistema bancário. Com
efeito, “a questão da consolidação da banca conheceu um ano, um ano e meio, de
passos positivos, mas há passos ainda por dar”. Mas isto continua a exigir a
estabilidade política. E vêm as questões atinentes à mudança das leis, dos
impostos, da legislação laboral, das condições dos custos de contexto…
E Marcelo –
que, neste âmbito, apenas merece a crítica de não ter percebido enquanto
candidato a complexidade do momento português; e agora colhe para si demasiados
louros do controlo da crise – acaba por reconhecer que a criação de uma crise
política prejudica as outras grandes prioridades nacionais. Na verdade, é
necessário sempre
“Um período
de tempo muito longo, porque entre as condições para dar qualquer passo que
ponha em causa o Governo que existe ou, por maioria de razão, a Assembleia que
existe, a convocação de eleições, a realização de eleições, a formação de Governo,
a entrada em funções do Governo, temos meses que, mesmo que não encavalitem com
o Orçamento do Estado, têm consequências verdadeiramente desastrosas para a
economia e as finanças portuguesas”.
Por isso, o
Presidente raciocina com razoabilidade política e sentido pragmático ao
afirmar:
“Algum
eleitorado de centro-direita que esperava a dissolução da Assembleia da
República em abril, ou se não era em abril, um pouco mais tarde no decurso do
ano passado, ou que periodicamente pensa que esse é um caminho que se coloca,
tem de compreender que há realmente prioridades nacionais e que uma prioridade
nacional é esta, nossa, concreta, de natureza económica e financeira e essa
exige estabilidade política, que deve apontar para o cumprimento de
legislaturas”.
Não se trata
de levar o Governo ao colo, mas de “uma
cooperação
institucional em que estão bem definidas quais são algumas metas”, de que “o
Governo não se deve afastar porque são compromissos internacionais, mas têm
consequências na economia e nas finanças portuguesas”.
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Interpelado
quanto à sua afirmação de que, embora não lhe coubesse afirmar que determinado
partido devia mudar para haver uma oposição mais dinâmica, contudo defendera a
estabilidade para todos, Governo, oposição e suas lideranças, vindo a
explicitar, mais tarde, que Passos coelho ainda poderia ser Primeiro-Ministro,
respondeu curto, porque interrompido:
“Eu penso
que é muito importante para este objetivo de estabilidade política, e tenho-o
repetido, que a área do Governo seja forte e coesa...”
E à interrupção em torno dos adjetivos “forte e coesa” deu
seguimento referindo que “temos a noção de que esta fórmula governativa é uma
fórmula original nunca ensaiada na vida política portuguesa”. Nesta situação, “é
importante, para haver estabilidade política, que haja acordo sobre os
orçamentos de Estado, sobre os programas de reforma e de estabilidade porque
são documentos prévios fundamentais a apresentar à UE”, o que “implica um
mínimo de coesão interna e um mínimo de força do Governo e dos partidos que o
apoiam no Parlamento”.
Quanto à oposição, é de reconhecer que a sua missão “não é
fácil”. Só tivemos um líder da oposição, Mário Soares, “que antes tivesse sido
Primeiro-Ministro e que tenha continuado depois de ter sido Primeiro-Ministro a
exercer as funções de liderança”. Teve uma oposição tão acidentada que, por
causa de eleições presidenciais, saiu da liderança do partido e regressou, mas
passando “por uma travessia do deserto muito complicada até, mais tarde, se
formar um acordo muito transitório chamado Bloco Central”. Quanto a Passos
Coelho, frisou:
“Teve um
resultado como líder de coligação superior ao resultado do Partido Socialista,
que veio a formar Governo e que está no Governo, e, portanto, tinha de fazer
essa experiência de passagem à oposição ficando no Parlamento, intervindo no
Parlamento”.
E julga
fundamental que as oposições sejam fortes (são duas e não uma, pois onde havia coligação passou a haver
dois partidos com estratégias e posicionamentos diversos e, até, candidaturas
diferentes nalguns casos com relevância nas autárquicas). E assegura:
“Não há
nada pior para um Presidente da República do que não ter dois termos de
alternativa fortes; porque, no caso de existir uma situação crítica, aguda,
insuperável num dos termos da alternativa, é bom ter outro termo da alternativa
que possa governar o país.”.
Está visto que não basta que um partido tenha mais votos
numas eleições para formar Governo. Pode mesmo “acontecer que um partido, o
partido mais forte da oposição ou a coligação, tenha uma votação superior a um
partido, neste caso o partido do Governo, e isso não chegue para ser governo”.
Assim, o centro-direita, se quer ter a garantia de que vem a ser governo, “deve
apontar para a maioria absoluta”, sendo que um bloco central é sempre uma
emergência.
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Eis, de quem tem agenda política (oculta, mas vincada) e uma atuação política taticamente
cooperante, um salomónico aviso ao Governo e à oposição!
2017.07.30 –
Louro de Carvalho
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