Disse-o Marcelo no dia 5, em Coimbra, na cerimónia
comemorativa do sesquicentenário da abolição da pena de morte em Portugal,
organizada pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. No uso da
palavra, o Presidente da República sustentou:
“A abolição da pena de morte é ainda, passados
estes 150 anos, um combate atual, um ideal pelo qual devemos batalhar todos os
dias com a força do nosso exemplo”.
Segundo o Chefe de Estado, celebrar a data é um imperativo histórico e
ético e tem de ser um “ato pedagógico de cidadania, um gesto vocacionado para
as gerações atuais e, sobretudo, para os mais jovens”. Na sessão solene que
enquadrou a cerimónia e em que participou a Ministra da Justiça, o Presidente
salientou que as comemorações da abolição da pena de morte são um “gesto
vocacionado para os muitos Estados onde a pena capital ainda é aplicada e para
aqueles que pretendem restaurá-la, incluindo a Europa”. Por isso, afirmou
categoricamente:
“Reiteramos um princípio para as gerações atuais e
futuras, um princípio inscrito na nossa lei fundamental, que em caso algum
haverá pena de morte. É por esse ideal que nos devemos bater hoje com a mesma
coragem e determinação daqueles que há 150 anos decidiram a sua abolição.”.
No final, instado pelos jornalistas a comentar o resultado dum eventual
referendo em Portugal sobre a restauração da pena de morte, Marcelo mostrou-se
convicto de que se manteria a Constituição na proibição da pena de morte, pois,
mesmo relativamente a crimes particularmente violentos, há a profunda marca
cultural que tem a ver com o respeito da dignidade da pessoa e o valor da vida,
que o leva a concluir que referendo ou votação parlamentar sobre a matéria
manteria o que votou como jovem deputado constituinte em 1976.
Intervieram ainda a Ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, o Reitor da
Universidade de Coimbra, João Gabriel Silva, o Presidente da Comissão Executiva
das Comemorações, José de Faria Costa, e o Diretor da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, Rui de Figueiredo Marcos.
Além da predita sessão solene, o Presidente da República descerrou, na
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, uma placa comemorativa dos 150
Anos da abolição da pena de morte em Portugal e inaugurou a exposição “Condenados à Pena Última”, no Colégio da
Trindade, organizada em parceira com o Ministério da Justiça.
***
Portugal foi um país pioneiro na abolição da pena de morte e na renúncia à sua execução mesmo
antes de abolida por lei. Em 1867, a pena
capital deixou de constar na lei, com exceção dos crimes militares (cuja abolição definitiva
viria apenas a ser assumida em 1976). A este respeito, a Procuradoria-Geral da
República publicou, em 1997, um texto que sintetiza os avanços e recuos.
A abolição da pena capital para os crimes políticos foi proposta na
sessão de 10 de março de 1852 da Câmara dos Deputados (em Aditamento ao Ato
Adicional à Carta Constitucional), cuja discussão se iniciou a 29 de março, incidindo
as divergências sobre o processo legislativo. Sobre a questão de fundo, o representante do
Governo expôs o que ia ao encontro do sentir unânime da Câmara:
“...porque felizmente entre nós a pena
de morte para os crimes políticos está abolida nos corações de todos; e se,
porventura, aparecesse hoje entre nós, um Nero, ou um Calígula, não teria força
para a impor; e ainda bem que damos ao mundo um exemplo de tolerância que muito
nos honra”.
A proposta
foi aprovada e a abolição da pena de morte por crime político passou a constar
do artigo 16.º do Ato Adicional à Carta Constitucional (5 de julho de 1852), sancionado por Dona Maria II.
Sabe-se que, de facto, não foi executada pela prática de crime político desde
1834 (sendo comutada pelo
rei, após apelo). Na verdade,
o § 18.º do art.º 145.º da Carta aboliu as penas “atrozes e cruéis” e o Decreto
de 12 de dezembro de 1801 reservava a aplicação da pena de morte aos “crimes atrocíssimos”.
E o Código Penal de 1852 mantinha a pena de morte à cabeça das penas maiores (art.º 29.º), constituindo ela a simples provação
da vida (art.º 32.º).
A partir de
1852, a questão da abolição da pena de morte para os restantes crimes foi
levada, por diversas vezes, às câmaras. Na sessão de 3 de julho de 1863, o
arcebispo deputado e antigo Lente de Coimbra Ayres de Gouveia, depois de propor
a supressão, no orçamento do Estado, do ofício de carrasco, apresentou propôs a
abolição da pena de morte em todos os crimes, incluindo os militares – proposta
bem acolhida e secundada por outra, assinada por vários deputados, cujo texto é
o seguinte: “1.º – Fica abolida a pena de
morte; 2.º – É extinto o hediondo ofício de carrasco; 3.º – É riscada do
orçamento do Estado a verba de 49$200 réis para o executor”.
Não
houve consenso em torno da proposta então nem no ano seguinte, por não estar em
causa a reforma da lei penal, mas, em 1867, viria a ser aprovada a lei que
aboliu a pena de morte para todos os crimes, excetuados os militares – Carta de
Lei de 1 de julho de 1867, sancionada por Dom Luís I. A proposta do Ministro da
Justiça Barjona de Freitas, no âmbito da reforma prisional, foi submetida à
discussão na Câmara dos Deputados, onde teve a oposição do deputado Manuel
Carvalho, e transitou depois à Câmara dos Pares, onde foi aprovada.
Porém,
esta lei não foi referendada pelo Ministro da Marinha e do Ultramar, lacuna que
foi resolvida por Decreto de 9 de junho de 1870, por iniciativa do Marques de
Sá da Bandeira.
Relativamente
a crimes do foro militar, a pena de morte manteve-se até ao Decreto com força
de lei de 16 de março de 1911, que a aboliu, vindo a Constituição de 1911 a
preceituar que, em nenhum caso, poderia ser estabelecida. Contudo, anos mais
tarde, a participação de Portugal na guerra levou, pela Lei n.º 635, de 28 de
setembro de 1916, a restabelecer a pena de morte para “caso de guerra com país
estrangeiro”, em tanto quanto a sua aplicação fosse indispensável, e “apenas no
teatro de guerra”. Assim, na I Guerra Mundial houve a execução em
França, por traição, no exército português, ao abrigo do Direito Português, do
soldado João Ferreira de Almeida (nascido a 3 de abril de 1894 na Foz do Douro), no Lugar de Picantin, perto
de Laventie, região de Pas de Calais, 16 de setembro de 1917. E a Constituição
de 1933, no n.º 11.º do art.º 8.º estabelece como um dos direitos e garantias individuais
dos cidadãos portugueses “não haver penas
corporais perpétuas, nem a de morte, salvo, quanto a esta, o caso de
beligerância contra país estrangeiro e para ser aplicada em teatro de guerra”.
Ainda houve uma tentativa gorada do deputado José Cabral de introduzir uma emenda
constitucional de cominação de penas corporais perpetuas incluindo a pena
capital par crimes contra a segurança do Estado.
Assim, este
regime vigorou até à Constituição de 1976 que estabelece, no n.º 2 do artigo
24.º, que “em caso algum haverá pena de morte”. E, ao abrigo desta disposição
foi aprovado pelo Decreto-lei n.º 141/77, de 9
de abril, o novo Código de Justiça Militar, cuja pena máxima prevista é a
prisão maior de 24 a 28 anos.
O movimento
abolicionista foi estimulado por disposições introduzidas nas leis judiciárias
(Reforma Judiciária, Nova
Reforma Judiciária e Novíssima Reforma Judiciária) que impunham o recurso obrigatório à clemência régia
em todos os casos de sentenças capitais proferidas pelos tribunais.
A última
execução de pena de morte por delitos civis ocorreu em Lagos, em abril de 1846,
sobre José Joaquim, de alcunha o Grande,
que matou a criada do padrinho a tiro. Porém, curiosamente, remonta a 1 de
Julho de 1772 a data em que é executada pela última vez uma mulher. Chamava-se
Luísa de Jesus, tinha 22 anos e assassinara 33 expostos que ia buscar à roda de
Coimbra, uns em seu nome, outros em nome suposto, para se locupletar com o
enxoval e os 600 réis que correspondiam a cada entrega. E a penúltima e última
execuções por enforcamento foram as de Manuel Pires, em Rua (Moimenta da Beira), a 8 de maio de 1845 e de José
Maria, conhecido pelo Calças, no Campo do Tabolado (Chaves), a 19 de setembro de 1845.
No que se
refere a crimes militares, a última execução terá ocorrido em França, na pessoa
dum soldado do Corpo Expedicionário Português, condenado por espionagem.
***
No colóquio
internacional comemorativo do centenário da abolição da pena de morte,
realizado em Coimbra, em 1967, Miguel Torga e Vergílio Ferreira falaram assim:
– “A tragédia
do homem, cadáver adiado, como lhe chamou Fernando Pessoa, não necessita dum
remate extemporâneo no palco. É tensa bastante para dispensar um fim
artificial, gizado por magarefes, megalómanos, potentados, racismos e
ortodoxias. Por isso, humanos que somos, exijamos de forma inequívoca que seja
dado a todos os povos um código de humanidade. Um código que garanta a cada
cidadão o direito de morrer a sua própria morte.” (Miguel Torga).
– “...E acaso
o criminoso não poderá ascender à maioridade que não tem? Suprimi-lo é suprimir
a possibilidade de que o absoluto conscientemente se instale nele. Suprimi-lo é
suprimir o Universo que aí pode instaurar-se, porque, se o nosso ‘eu’ fecha um
cerco a tudo o que existe, a nossa morte é efetivamente, depois de mortos, a
morte do universo.” (Vergílio Ferreira).
***
No âmbito da atribuição da MPE (Marca do
Património Europeu) à
Carta de Lei de 1867, assinalam-se, como se disse, os 150 anos da Abolição da Pena de
Morte em Portugal (1867-2017).
Com efeito, Portugal foi um dos primeiros países a inscrever
no seu sistema legal uma lei de abolição da pena de morte para crimes civis,
colocando-se na linha da frente dos países pioneiros do desiderato inspirador
do filósofo milanês e humanitarista Cesar Beccaria (1764).
O ato teve forte impacto no contexto europeu de então. O exemplo
português serviu de argumento aos defensores das correntes abolicionistas
como o caso de um país que, nascido e herdeiro da mesma tradição histórica e
cultural de outras regiões da Europa, teve a coragem de abraçar e aplicar uma
reforma de grande alcance civilizacional.
Ontem, como hoje, a Carta
de Lei de 1867 tem um forte valor simbólico para a Europa, na medida
em que encerra em si muitos dos valores e ideais atualmente plasmados na Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia, designadamente, os que se fundamentam nos valores da tolerância e
do respeito pela vida humana. Pelo seu significado e contributo para a
história, cultura e ideais da União Europeia, a Carta de Lei de 1867 foi
reconhecida pela Comissão Europeia como Marca
do Património Europeu em abril de 2015.
A MPE é a nova iniciativa da UE com base na iniciativa intergovernamental
de 2006, que foi estabelecida pela Decisão
n.º 119/2011/EU (do Parlamento Europeu e do Conselho). Os objetivos gerais são o reforço do
sentimento de pertença à UE por parte dos cidadãos europeus, em especial dos
jovens, com base nos valores e elementos comuns da história e do património
cultural europeus; a valorização da diversidade nacional e regional; e o
incremento do diálogo intercultural – realçando o valor simbólico e a
visibilidade de sítios que tenham desempenhado um papel significativo na
história e na cultura da Europa e/ou na construção da UE.
***
Foi
longo o percurso abolicionista, mas assinala um itinerário civilizacional que
devia ser universalizado e irreversível, até pela maior proximidade do espírito
evangélico, segundo muitos doutores da Igreja e dos verdadeiros modeladores do
pensar dos séculos XVIII e XIX.
2017.07.06 – Louro de Carvalho
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