segunda-feira, 24 de julho de 2017

A singularidade do Reino dos Céus

Nota preambular
A cada passo se fala no Reino de Deus ou Reino dos Céus sem que se atente a fundo na compreensão do conceito e sobretudo das implicações práticas do estabelecimento desta categoria divina entre os homens. Com efeito, ao falarmos do Reino de Deus (em grego, βασιλεία τοῦ θεοῦ: basileia tou theou) designamos um domínio que tem Deus por soberano. Segundo o Génesis, os primeiros seres humanos foram expulsos do Éden (ou paraíso terrestre) porque se rebelaram deliberadamente contra a soberania de Deus – o pecado original. O reino é, pois, uma categoria fundamental nas três principais religiões abraâmica: o Judaísmo, o Islamismo e, mais notavelmente, o Cristianismo. Nesta última religião monoteísta, o Reino de Deus constitui o tema principal de Jesus, pregado através de parábolas.
No Judaísmo, vem frequentemente referido, no Tanak, muito ligado à crença judaica de que Javé (Deus) iria restaurar a nação de Israel. Aliás, o Reino foi prometido por Javé ao Rei David. Mas no Tanakh, Javé é que é o verdadeiro Rei de Israel, sobretudo a partir da monarquia, quando são ungidos reis para governarem o povo em nome de Javé. Neste caso, o Reino de Deus é assumido mais como um reino material com caraterísticas políticas, um reino deste mundo, semelhante à monarquia teocrática. Porém, após o Exílio na Babilónia, o conceito foi espiritualizado, passando o culto de Javé a ser predominantemente religioso e universal – espiritualização que se deveu sobretudo ao esforço e trabalho dos profetas. Assim, no livro de Daniel, em que ele interpreta o sonho do Rei Nabucodonosor que é uma profecia, é citado o reino de Deus: “nos dias desses reis, o Deus do céu levantará um reino que não mais será destruído; e este reino não passará a outro povo; esmiuçará e consumirá todos esses reinos, mas ele mesmo subsistirá para sempre (Dn 2,44).
No Cristianismo, existem conceitos divergentes mas não incompatíveis quanto ao que é, em concreto, o Reino de Deus, sintetizáveis em dois vetores: um governo real e/ou universal de Deus estabelecido no Céu e instaurado na Terra completamente renovada no fim dos tempos, no dia do Juízo final, e com existência eterna; uma condição interior de dimensão pessoal, de caráter espiritual, moral, mental e psíquico/psicológico, existente em todos os que estão na graça de Deus e que seguem a vontade de Deus e os ensinamentos e exemplo de Jesus Cristo.
Digamos que a Igreja Católica viveu demasiado tempo e com excessiva intensidade a predominância da dimensão terrena e dominadora do Reino e muito combateu sob estas insígnias da realeza – dimensão a que Jesus, dando mostras de que a poderia ter assumido, renunciou explicitamente: é Rei, mas não deste mundo; é Rei, mas da Verdade. A par desta luta insana, muitos quiseram remeter o Reino de Deus para o campo restrito da consciência e do espírito. Ora Reino intimista sem consequências no mundo dos homens é anódino, não interessa. Por isso, a doutrina da Igreja Católica atribui ao Reino de Deus simultaneamente uma dimensão pessoal, de caráter espiritual e moral, em cada homem; e uma dimensão universal que, já estabelecida e iniciada, precisa de incremento e alastramento e se manifestará no fim dos tempos, no dia do Juízo final, quando tudo se consumará e se estabelecerá a nova Terra e o novo Céu, onde os justos vivem em Deus, com Deus e junto de Deus. Tal só acontecerá quando o Reino, que já foi instaurado na Terra por Jesus, estiver perfeito e maduro com a relevância dos seus valores principais: a verdade, a justiça, a paz, a fraternidade, o perdão, a liberdade, a alegria e a dignidade da pessoa humana.
***
Reino de Deus e Reino dos Céus no Novo Testamento
João, o precursor, aparece a pregar no deserto da Judeia, dizendo: “Convertei-vos, porque está próximo o Reino do Céus” (cf Mt 3,2). E, neste Reino, “Deus pode suscitar, das pedras, filhos de Abraão” (cf Mt 3,9). O seu pregador batizará no Espírito Santo e no fogo, tem na sua mão a pá de joeirar, limpará a eira e recolherá o trigo no celeiro, mas queimará a palha no fogo inextinguível (cf Mt 3,11-12). Com efeito, Jesus começa a pregar, dizendo: “Convertei-vos, porque está próximo o Reino do Céus” (Mt 4,17) – ou como refere Marcos (1,5): “Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei-vos e acreditai no Evangelho”.
O sermão das Bem-aventuranças faz consistir a felicidade na pobreza (cf Lc 6,20) ou na pobreza em espírito e na aceitação da perseguição por causa da justiça (cf Mt 5,3.10), porque por elas se ganhará a posse do Reino dos Céus. A oração que Jesus ensinou contém como petição a vinda do Reino (Mt 6,10; Lc 11,2). A grande preocupação que Jesus evidenciou aos discípulos foi que procurassem primeiro o Reino dos Céus e a sua justiça, que tudo o mais virá por acréscimo (cf Mt 6,33). E a condição para entrar no Reino não é dizer “Senhor, Senhor”, mas fazer a vontade do Pai que está no Céu (cf Mt 7,21).
Um dos dinamismos da pregação dos Doze, quando Jesus os mandou em experiência missionária era pelo caminho proclamar que o Reino dos Céus está perto (cf Mt 10,7; Lc 9,7; 10,9). E. mesmo que tivessem que sacudir o pó dos pés porque não foi aceite a pregação, era preciso advertir que, no entanto, esta é a verdade: “ficai sabendo que o Reino de Deus já chegou” (Lc 10,11). Por outro lado, o maior no Reino é aquele que acolhe uma criança em nome de Jesus (cf Lc 9,48; Mc 9,36-37). E mais: “Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino dos Céus. Quem, pois, se fizer humilde como este menino será o maior no Reino dos Céus. (Mt 18,3-4). Com efeito, apesar de ter dito que, “entre os nascidos de mulher, não apareceu ninguém maior do que João Batista”, garantiu que “o mais pequeno no Reino dos Céus é maior do que ele” e que “desde o tempo de João Batista até agora, o Reino do Céu tem sido objeto de violência e os violentos apoderam-se dele à força” (cf Mt 11,11-12).
Contra o escândalo, o Mestre avisa: “Se um dos teus olhos é para ti ocasião de queda, arranca-o; mais vale entrares com um só no Reino de Deus (em Mateus, em vez de Reino está a Vida, aliás como em Marcos para o escândalo provocado pela mão ou pelo pé), do que seres lançado à Geena com os dois olhos” (Mc 9, 47). E, interrogado pelos fariseus sobre quando chegaria o Reino de Deus, Jesus respondeu-lhes: “O Reino de Deus não vem de maneira ostensiva. Ninguém poderá afirmar: ‘Ei-lo aqui’ ou ‘Ei-lo ali’, pois o Reino de Deus está entre vós.” (Lc 17,20-21).
O Reino de Deus é tão exigente que se sobrepõe a todos os interesses, nomeadamente a família:
“E disse a outro: ‘Segue-me’. Mas ele respondeu: ‘Senhor, deixa-me ir primeiro sepultar o meu pai’. Jesus disse-lhe: ‘Deixa que os mortos sepultem os seus mortos. Quanto a ti, vai anunciar o Reino de Deus.’. Disse-lhe ainda outro: ‘Eu vou seguir-te, Senhor, mas primeiro permite que me despeça da minha família’. Jesus respondeu-lhe: ‘Quem olha para trás, depois de deitar a mão ao arado, não é apto para o Reino de Deus’.” (Lc 9,59-62).
O tema do Reino é nuclear, pois o seu anúncio por palavras e obras abrange os capítulos 3 a 25. E o seu dinamismo ocupa os capítulos 8 e 9,34: cura-se lepra, estado febril, paralisia, cegueira, hemorragia, possessão demoníaca; acalma-se a tempestade; estabelecem-se condições do seguimento de Jesus e pertença à sua Família; ressuscitam-se mortos; recrutam-se os discípulos para o Reino; e discutem-se as questões do jejum. Jesus procede ao estabelecimento da pregação missionária do Reino enviando os discípulos, que se devem revestir de destemor e coragem (Mt 9,35 – 10,2). O mistério do Reino é abordado em Mt 11,1 – 12,50. Se João fica em dúvida se o novo pregador é o Messias, Jesus louva o Batista e indica os sinais do reino messiânico:
Os cegos veem e os coxos andam, os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa-Nova é anunciada aos pobres” (Mt 11,5). 
Critica as cidades desatentas, convida à aprendizagem, sublinha a leveza do seu jugo e agradece ao Pai a revelação do mistério aos humildes. Repõe o sentido do sábado, refere os frutos da boa árvore, assemelha-se ao Servo sofrente de Javé, descrito por Isaías e promete o sinal de Jonas.
***
Anote-se, antes de mais, que, enquanto o evangelho de Mateus se dirige aos judeus falando em Reino dos Céus, em Marcos e de Lucas, fala-se do Reino de Deus, expressão esta que tem o mesmo sentido daquela, ainda mais que inteligível para os que não eram judeus. O emprego de Reino dos Céus, no evangelho de Mateus, é devido à tendência judaica de evitar o uso direto do nome de Deus. Na verdade, “Reino de Deus” na interpretação direta da expressão induz uma verdade inegável: o Reino é de Deus e do seu Cristo. Esta expressão aponta para o Rei (Deus), enquanto a expressão “Reino dos Céus” remete para a origem do Reino: o Reino vem dos Céus, não é deste mundo, ou seja, não é feito de políticas nem de relações sociais terrenas. O Reino tornar-se-á, pois, mais do que em excelente monarquia, numa grande família de amor onde o Pai (Deus) vive em, com e junto dos seus filhos (os humanos bem-aventurados) e onde não existirão mais súbditos ou governados nem classes sociais distintas.
***
Igreja e Reino de Deus
A  Igreja  não é o Reino, mas é o seu germe e o começo na Terra,  dado que foi Jesus, o fundador e a Cabeça da Igreja, que inaugurou o Reino de Deus na Terra e que o semeou nos corações de cada homem (que pode dar frutos ou não). Ele, que foi elevado ao céu, continua a estar presente na Terra na sua Igreja. O Reino de Deus já está misteriosamente presente na Igreja e manifesta-se nela, de forma sacramental. Ela é a testemunha e o sacramento do Reino e não a sua dona ou detentora. Enquanto tudo e todos os homens não forem submetidos ao Reino de Deus e enquanto não houver novos céus e nova terra, nos quais habita a justiça, a Igreja peregrina (Igreja na Terra), auxiliada e guiada pelo Espírito Santo, aguarda em jubilosa esperança a realização final do Reino, juntamente com os sacramentos, instituições e membros. Mas, esta realização final pode ser antecipada por ela pela evangelização, que engloba o anúncio de Cristo e seu do Reino a todo o mun­do. É o trabalho da Igreja. Com isto, acelera-se o alastramento do Reino a todos os povos e a união de todas as pessoas pela fé em Jesus. E os cristãos, como membros vivos da Igreja, num trabalho de discernimento segundo o Espírito Santo, distinguem entre o crescimento do Reino de Deus e o progresso da cultura e da sociedade a que pertencem e de que fazem parte. Como distinguir não é sinónimo de separar, a vocação do homem para a vida eterna não suprime, antes reforça, o dever de acionar as energias e os meios recebidos do Criador para servir, no mundo, a causa da justiça e da paz – em cooperação com os outros.
***
Anúncio, caraterísticas e sinais do Reino
O Reino inaugurado na Terra por Cristo,  embora anunciado primeiramente aos filhos de Israel, acolhe todos os homens. Foi preconizado por João Batista, que exortou as pessoas a arrependerem-se, porque está próximo o Reino dos Céus (Mt 3,2). Mais tarde, Jesus de Nazaré, o Messias prometido pelos profetas e Salvador da humanidade, foi batizado e ungido (Lc 3,30-31), iniciando assim o seu ministério, que se centrou no Reino de Deus. Ele instruiu os apóstolos a que pregassem a proximidade do Reino de Deus e que ele já tinha chegado. Tais instruções seriam repetidas a todos os discípulos, a todos os cristãos (Mt 10,7; 24,14; 28,19-20; At 1,8). Toda a Bíblia gravita em torno da vinda do Messias e do Reino do Deus. Por isso, o Reino de Deus, grande e misteriosa realidade, tem grande sentido profético e missionário no ser, na vida e na ação da Igreja, que não é o Reino (ela não pode autorreferenciar-se), mas serva e paladina dele. E Jesus convida, através de parábolas, todas as pessoas a entrarem no Reino, ou seja, a tornarem-se discípulos, para conhecerem os mistérios do Reino dos Céus (Mt 13,11). Segundo o CIC (Catecismo da Igreja Católica), Jesus e a presença do Reino neste mundo estão discretamente no coração das parábolas. Para os que se põem “de fora” (Mc 4,11), tudo é enigmático. Mas Jesus exorta os discípulos a buscarem, em primeiro lugar, o Reino de Deus e sua justiça (Mt 6,33). O Reino de Deus não terá fim e já está no meio de nós (Lc 17,21);  é “justiça, paz e alegria no Espírito Santo” (Rm 14,17); é o fim último a que Deus nos chama; é obra do Espírito Santo; e é um império eterno que jamais passará e…jamais será destruído (Dn 7,14).
Todas as pessoas que querem pertencer ao Reino de Deus têm de converter-se, de realizar a vontade divina, de ter fé em Jesus e de acolher a sua palavra. Com efeito, Jesus convida todas pessoas à conversão (metanoia – mudança de mentalidade, coração, atitudes e ações), o pré-requisito para o acesso ao Reino, a renunciar ao mal e ao pecado (o grande obstáculo para o acesso ao Reino), a arrependerem-se dos pecados e a experimentarem o ilimitado perdão e misericórdia de Deus. Este apelo constitui a parte fundamental do anúncio do Reino de Deus: “Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15). Este apelo à conversão é sobretudo para os não cristãos e os pecadores, pois Jesus afirma que não veio “chamar os justos, mas os pecadores” (Mc 2,17) e que Deus Pai sentirá imensa “alegria no céu por um único pecador que se arrepende” (Lc 15,7). A conversão e a “remissão dos pecados” (Mt 26,28) só foi possível pelo sacrifício de Jesus, Filho de Deus Pai, na cruz, constituindo a suprema prova do amor que Deus tem pelos homens. E Jesus afirmou que não entrará no Reino quem não o receber com a mentalidade de criança (Mc 10,15), quem não nascer de novo (Jo 3,3), o que não faz a vontade de meu Pai que está nos céus (Mt 7,21) e os injustos (1Cor 6,9). Para aceder ao Reino, é preciso passarmos por muitas tribulações (At 14,22) e cumprir a Lei de Deus, porque 
Aquele que violar um só destes menores mandamentos e ensinar os homens a fazerem o mesmo [vai] ser chamado o menor no Reino dos Céus; aquele, porém, que os praticar e os ensinar, esse será chamado grande no Reino dos Céus” (Mt 5,17-19).
As Bem-aventuradas, enunciadas por Jesus no Sermão da Montanha, que anunciam e revelam aos homens a verdadeira felicidade, são também o grande anúncio da vinda do Reino de Deus através da palavra e ação de Jesus e também do caráter das pessoas que pertencem ao Reino, os filhos do Reino, o trigo da parábola (Mt 13,24-10). Jesus exorta as pessoas a seguirem este caráter exemplar, para poderem entrar no Reino, ou seja, para obterem a salvação e a vida eterna.
Uma vez inaugurada na Terra por Jesus, ninguém, nem mesmo Satanás, consegue travar e impedir a edificação e a realização final e perfeita do Reino. Mas, este Reino, enquanto não atingir a sua perfeição, é ainda atacado pelos poderes maus, embora estes já tenham sido vencidos em suas bases pela Morte na cruz e Ressurreição de Jesus. Satanás, muito poderoso e maligno, só consegue atrasar a realização final do Reino na Terra, pelo cultivo do ódio no mundo contra Deus. Este Reino, para desapontamento de muitos judeus da época, não vinha restabelecer o reinado temporal de Israel e não é um reino deste mundo, ou seja, não é um reino com caraterísticas políticas, mas de caraterísticas predominantemente espirituais.
Em suma, o Reino de Deus, cresce como uma semente (cf Mt 13,3-8.31-32,) que Deus coloca no coração de cada homem (dimensão pessoal), é a plena instauração da lei do amor a Deus e ao próximo e terá a sua realização final e perfeita na vida do mundo que há de vir, na nova Terra e no novo Céu implantados por Deus no fim dos tempos (dimensão universal).
Jesus operou muitos milagres, prodígios e sinais (At 2,22), que provam que Ele é o Messias anunciado, o Filho de Deus e o Salvador enviado por Deus Pai e que o Reino de Deus está presente n'Ele e “já está no meio de nós” (Lc 17,21). A operação destes sinais, que pode ser ocasião de escândalo para alguns, visa convidar as pessoas a crerem em Jesus e nas suas palavras. Aos que a Ele se dirigem com fé, concede o que pedem. Apesar de os milagres serem tão evidentes, Jesus é rejeitado por alguns e até acusado de agir por intermédio dos demónios (CIC, 547 e 548). Jesus, que não veio abolir todos os males da Terra, libertou ainda assim certas pessoas dos males terrestres da fome, da injustiça, da doença e da morte, antevendo que, ao chegar na altura da realização final do Reino, todos estes males desaparecerão. Aliás, Jesus operou sinais messiânicos para mostrar que veio para libertar os homens da mais grave das escravidões, a do pecado, que os entrava em sua vocação de filhos de Deus e causa todas as suas escravidões humanas (CIC, 549).
Os exorcismo que Jesus efetuou libertou os homens do domínio dos demónios, afirmando que, “se é pelo Espírito de Deus que eu expulso os demónios, então o Reino de Deus já chegou a vós”(Mt 12,28). Isto prediz que o advento do Reino de Deus é a derrota de Satanás e antecipa a grande vitória de Jesus sobre “o príncipe deste mundo” (CIC, 550).
Jesus, não curou todos os doentes. Ainda assim curou vários enfermos, incluindo leprosos, que então eram isolados e altamente discriminados. Estas curas eram sinais da vinda do Reino de Deus e anunciavam uma cura mais radical: a vitória sobre o pecado e a morte pela ressurreição de Jesus. Na cruz, Cristo tomou sobre si o peso do mal e tirou o pecado do mundo (Jo 1,29). A entrada de Jesus em Jerusalém, a Transfiguração e a Ascensão são também sinais da vinda do Reino e do começo da consumação do desígnio de Deus sobre a sua Criação (o estabelecimento do Reino de Deus). Enfim, o Reino de Deus “manifesta-se lucidamente aos homens na palavra, nas obras e na presença de Cristo” (CIC, 764). E é imperativo evangélico anunciá-lo:
A eles também apareceu vivo depois da sua paixão e deu-lhes disso numerosas provas com as suas aparições, durante quarenta dias, e falando-lhes também a respeito do Reino de Deus” (At 1,3).
***
Realização final do Reino
Presente misteriosamente na Igreja, seu germe e começo, o Reino de Deus ainda não atingiu a perfeição (a sua realização final), ainda não está consumado “com poder e grande glória” (Lc 21,17; CIC, 671). Segundo a doutrina católica, o Reino só irá chegar à sua plenitude no fim dos tempos (CIC, 1042), depois de ocorrer uma vitória de Deus sobre o desencadeamento último do mal. Este triunfo divino sobre a última investida das potências do mal fará descer novamente Jesus à Terra e assumirá a forma do Juízo Final depois do derradeiro abalo cósmico deste mundo que passa (CIC 677, 680). Depois do Juízo final, os justos, que são separados dos ímpios e dos injustos (veja-se a parábola do trigo e do joio, em Mt 13,24-30), reinarão com Cristo para sempre, glorificados em corpo e alma, e o próprio universo material será transformado. Então Deus será “tudo em todos” (1Cor 15,28), na Vida Eterna (CIC, 1060).
***
Reino de Deus como Projeto de Deus
O Reino de Deus é também considerado o projeto criador de Deus a realizar neste mundo, que consiste na plena realização da criação de Deus, finalmente liberta de toda a imperfeição e compenetrada por Ele. É o desígnio primeiro e último de Deus sobre a criação, cuja consumação (ou realização) no mundo se iniciou em Jesus, o inaugurador do Reino na Terra, e é hoje continuada pela Igreja, que é encabeçada por Ele. O Reino de Deus é também o estado terminal e final da salvação, em que os homens se transcenderão para viverem eternamente com Deus, em Deus e junto de Deus, sendo então instaurada em definitivo a lei do amor incondicional a Deus e ao próximo e não sendo já preciso viver da fé e da esperança (apenas da caridade, que nunca terminará). Não haverá mais tempo, sofrimento, conflito, ódio. Céu e Terra unir-se-ão finalmente, instaurando um novo céu e uma nova terra.
Embora Deus seja Todo-Poderoso, Ele quer que os humanos, dotados de inteligência e razão, participem de modo recíproco, livre e voluntário no Projeto Criador de Deus, o maior de todos os projetos que o mundo jamais viu, abarcando todos os tempos, todos os povos e todos os seres do Universo. Seguindo este pensamento, esta missão torna a humanidade genuína parceira de Deus, com muita liberdade e com muita responsabilidade. Isto quer dizer que os homens, como membros vivos da Igreja, têm o poder e a capacidade de acelerar e antecipar a vinda do Reino de Deus com a sua fé em Jesus Cristo e com as suas boas ações.
***
Reino de Deus e os não-cristãos
Segundo a doutrina católica os que, sem culpa própria, ignoram a Verdade contida nos ensinamentos de Cristo e da Igreja, mas que “procuram sinceramente Deus e, sob o influxo da graça, se esforçam por cumprir a sua vontade”, podem conseguir a salvação eterna (CCIC, 171), isto é, aceder ao Reino de Deus. Com efeito, segundo as Escrituras, a única maneira de aceder ao Reino de Deus e, consequentemente, à aquisição da salvação, não por mérito humano, mas unicamente por bondade de Deus, é através do renascer pela fé (cf Jo 3,1-12), onde a graça divina é concedida ao ser humano mediante a fé (Ef 2,4-9). A fé a que os textos bíblicos se referem baseia-se na crença de que Jesus Cristo é o filho de Deus (Jo 3,16), que veio à terra como homem com a finalidade de dar testemunho da Verdade (cf Jo 18,37) e ser crucificado (Jo 3,13-15) e, assim, pagar pelos pecados de todo aquele que nele crer, para que esses tenham a vida eterna (Jo 3,17-18). Contudo, “Deus quer que todos os homens se salvem e venham ao conhecimento da verdade” (1Tm 2,4), não é crível que não tenham acesso ao Reino os que, sem culpa não conhecem os seus mistérios e, como diz São Justino, o Lógos spermatikós (o Verbo de Deus disseminado pelo mundo) não espera pela missionação da Igreja, mas invade os corações humanos, bastando que eles estejam atentos e disponíveis.
***
E porque não, a seu tempo, uma reflexão sobre as parábolas do Reino, sobretudo a do fermento que leveda toda a massa (Mt 13,33), como paradigma da missão dos cristãos no mundo, a ver se temos lugar no reino eterno preparado para nós “desde a criação do mundo” (cf Mt 25,34ss)?
2017.07.23 – Louro de Carvalho


Sem comentários:

Enviar um comentário