domingo, 9 de julho de 2017

Exército desguarnecido de armas e semivazio de chefes

O assalto de Tancos e as falhas procedimentais de vigilância evidenciadas puseram a nu o desinvestimento dos sucessivos governos nas forças armadas e obviamente na defesa militar da República. O furto de material de guerra verificado em Tancos é inédito pela variedade e quantidades de material subtraído dos paióis. Mas há mais: os serviços de informação vieram reconhecer recentemente a suspeita prévia de um assalto a depósitos de material militar e não puseram a tutela de sobreaviso, facto de que se queixou o Ministro da Defesa Nacional (MDN). Este crismou de imediato o caso como grave e o crime como muito profissional. E, sobre a demora de um despacho de aprovação de despesas, disse tratar-se de uma formalidade exigida por se tratar de uma verba superior ao previsto para em termos da gestão corrente, sem ser informado da finalidade nem a ter questionado. É o Exército sem tutela eficiente e eficaz!
Por seu turno, o general CEME (Chefe do Estado-Maior do Exército) adiantou publicamente que o facto do furto teve origem em informação interna, exonerou temporariamente (medida inédita) os cinco comandantes das unidades encarregadas da vigilância rotativa dos PNT e, na audição parlamentar à porta fechada, assumiu como sendo do exército todas as responsabilidades pelo que se passou em Tancos, ilibando o poder político de qualquer responsabilidade sobre o caso. Mais disse sentir-se humilhado e envergonhado com o comportamento do Exército neste caso. Ai, se eu estivesse integrado na cadeia de comando liderada pelo atual CEME, também me demitiria. Um superior hierárquico tem de saber assumir em nome do universo das pessoas que estão sob a sua alçada apenas a responsabilidade que lhes cabe a elas e a ele e saber passar as outras responsabilidade a quem as detiver. Faltam armas, mas sobretudo a arma da motivação!
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É verdade que, pela Lei Constitucional (LC) n.º 1/82, de 30 de setembro (que operou a 1.ª revisão da Constituição de 1976 - CRP), as forças armadas deixaram de ter papel político ativo no ordenamento constitucional – passando a estar submetidas ao poder político legitimamente estabelecido.
Porém, dá-me a impressão de que tanto o poder político como a hierarquia militar se dão mal com a situação. Creio que a chamada lei dos coronéis e a extinção do regimento de comandos, no consulado de Cavaco Silva como Primeiro-Ministro, e o términus do SMO (serviço militar obrigatório), prenunciado pela JSD, previsto no tempo de Guterres e levado a cabo com o Ministério da Defesa Nacional (MDN) de Paulo Portas foram medidas tomadas sem a conveniente avaliação do impacto na sociedade e sem o conhecimento da organização e funcionamento do MDN e – mais grave ainda – sem o estabelecimento consolidado de um plausível conceito estratégico nacional. Após a lei dos coronéis (que levava muitos militares a solicitar a reforma, alegadamente por excesso de pessoal militar), muitos militares foram reconvocados para trabalhar no MDN; os cursos de comandos foram retomados, com os desastres e as contradições sobejamente conhecidas; e muitos clamam pelo restabelecimento do SMO, dada a falta de atração de cidadãs e cidadãos voluntários pelo exército, pela marinha e pela força aérea.
A Constituição revista pela referida LC n.º 1/82, de 30 de setembro, estabelece, no seu art.º 273.º (cuja numeração e teor se mantêm no texto atual), que “é obrigação do Estado assegurar a defesa nacional” (n.º 1) e que a defesa nacional tem por objetivos garantir, no respeito da ordem constitucional, das instituições democráticas e das convenções internacionais, a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externas” (n.º 2).
Por seu turno, o art.º 275.º estabelece, no n.º 1, que “às Forças Armadas incumbe a defesa militar da República”; no n.º 3, que “as Forças Armadas obedecem aos órgãos de soberania competentes, nos termos da Constituição e da lei”.
E a CRP, revista pela LC n.º 1/82, dispõe de um n.º 5, que estabelece: “as Forças Armadas podem colaborar, nos termos da lei, em tarefas relacionadas com a satisfação de necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações”.
Por outro lado, a CRP, revista pela LC n.º 1/2005, de 12 de agosto, redige o n.º 5 nestes termos:
“Incumbe às Forças Armadas, nos termos da lei, satisfazer os compromissos internacionais do Estado Português no âmbito militar e participar em missões humanitárias e de paz assumidas pelas organizações internacionais de que Portugal faça parte”.
E o seu n.º 6 dispõe:
“As Forças Armadas podem ser incumbidas, nos termos da lei, de colaborar em missões de proteção civil, em tarefas relacionadas com a satisfação de necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações, e em ações de cooperação técnico-militar no âmbito da política nacional de cooperação”.
É óbvio que, sendo obrigação do Estado assegurar a defesa nacional, como condição essencial para a soberania e a independência, o poder político (e, em concreto, o Governo, que superintende na administração pública) deve dotar as forças armadas dos meios necessários para o cumprimento das suas missões, dado serem elas uma força endógena ao regime, não um corpo exterior à Constituição, e serem responsáveis pela defesa militar do território e apoiantes da defesa civil.
Nestes termos, compete ao poder político manter-se informado sobre as necessidades e atividades das forças armadas, definir-lhes as missões, dar-lhes meios para o desempenho cabal das missões e inquirir sobre a aplicação dos meios aos fins em vista. Porém, não deve interferir na cadeia de comando bem como nos procedimentos e tem de incrementar as outras vertentes da defesa nacional: ordenamento do território; correção das assimetrias regionais; ocupação efetiva do interior com cidadãos, agentes qualificados e meios de educação, saúde, segurança de pessoas e bens e segurança social; instalação de serviços públicos; e incremento da instalação e unidades de produção, comércio e serviços privados. É que a defesa militar é apenas uma das componentes da defesa nacional. Por isso, é-me indiferente que o Ministro seja civil ou seja militar. O que importa é que saiba tomar opções, definir políticas públicas de defesa, assegure a cadeia de comando sem nela interferir e que, nunca a desautorizando, a prestigie.
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Ora, Tancos criou a crise político-militar pior, ao nível do Exército, na vigência do regime da CRP, que se agravou com a demissão de dois dos seus 4 tenentes-generais, mercê de decisões tomadas há uma semana e que só deverá ficar clarificada com a intervenção do Presidente da República (PR) e do Primeiro-Ministro (PM). E Marcelo vai ter na próxima reunião do Conselho Superior de Defesa Nacional (CSDN), a 21 de julho, dois generais em rutura um com o outro: o CEME e um dos que se demitiram por “divergências inultrapassáveis” com aquele, pela “[forma] inqualificável” como exonerou cinco coronéis.
O PR não comentou as demissões, mas já reconheceu que a sua atuação face ao ocorrido em Tancos foi “no limite” dos seus poderes (ele não é um comandante operacional nem lhe compete a ele, mas ao Governo a definição da política interna e externa do país) – fazendo pressupor agora um perfil de intervenção mais baixo. Também o Ministério da Defesa se escusou a comentar as demissões. Porém, o Ministro declarou, no dia 7, que o CEME “não deve em nenhuma circunstância ser demitido” e enalteceu a forma como Rovisco Duarte gere a situação. Assunção Cristas (CDS) disse ser tempo de Costa “pôr ordem na casa”; Catarina Martins (BE) afastou a demissão de Azeredo a favor de “ter as respostas todas e [...] mudar o que está mal para que não se repita”. E o Presidente da Associação de Oficiais, tenente-coronel António Mota, sustenta que as posições dos tenentes-generais são legítimas e legais, sendo decisões que apenas a eles dizem respeito.
A demissão de Antunes Calçada, Comandante do Pessoal do Exército (que acumulava com o cargo de secretário do CSDN) já era dada como certa no dia 6 e ficou ontem a saber-se que passará à reserva. Porém, o pedido de demissão de Faria Menezes, Comandante Operacional das Forças Terrestres, sugerida por vários militares desde a morte de instruendos no curso de Comandos e defendida após a falha de segurança em Tancos (onde 4 dos exonerados estavam sob a sua tutela direta), surge envolta em dúvida e intriga: Demite-se por discordar do chefe e não passa à reserva?
Por outro lado, apesar de o Conselho Superior do Exército do dia 7 ter acordado em “dar uma imagem de coesão e unidade” até setembro, quando o vice-CEME passará à reserva, Faria Menezes falou ao Expresso hora e meia depois de Antunes Calçada (que o Exército confirmou já ter entregue os pedidos de exoneração e passagem à reserva) para dizer que ia apresentar no dia 10 o pedido de exoneração. Agora, para lá do vice-CEME, tenente-general Rodrigues da Costa, mantém-se em funções o tenente-general Fernando Serafino, comandante da Logística. Embora com o vice-CEME a acumular agora as funções de Calçada, que poderiam ser exercidas pelo segundo-comandante do Pessoal, em setembro passam a existir 3 vagas para generais de três estrelas – e com o imbróglio da promoção do major-general Tiago Vasconcelos, a aguardar parecer da PGR.
Tancos acentuou a crise iniciada no último ano, com a demissão do anterior CEME por causa da polémica do Colégio Militar (onde se formou Faria Menezes). Ora este e Calçada são do mesmo curso do CEME, que os informou não os escolher para vice-CEME. Todavia, a demissão destes generais não tem a ver com o caso, mas resultou exclusivamente da audição parlamentar do CEME no dia 6. Um oficial na reserva admitiu, sobre a agitação interna, que “estão criadas as condições para se evoluir com a saída de dois generais que desgastavam o chefe por questões de competição”, mas “como pode estar aos tiros com o chefe quem se deixa roubar?”.  
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O general José Calçada, comandante de Pessoal do Exército, apresentou o pedido de exoneração de funções no dia 7. Depois de meses de divergências, a gota de água foi o caso de Tancos e a forma “inqualificável” como o CEME decidiu exonerar cinco comandantes por causa do furto de armamento do paiol da base militar. O CEME esteve, no dia 6, no Parlamento para ser ouvido sobre o assalto aos paióis de Tancos, onde disse “duas vezes ter-se sentido chocado e humilhado” com o sucedido e disse ainda que espera obter “em três ou quatro semanas” os resultados das investigações que determinou. Já na altura fontes militares se manifestaram indignadas com o CEME por atribuir ao Exército completa responsabilidade pelo roubo e, ao mesmo tempo, afirmar que mantém total confiança nos comandantes que exonerou.
E, em publicação na sua página no Facebook Faria Menezes, comandante operacional das Forças Terrestres, que anunciou a sua demissão do cargo, reforça a ideia de que houve um “vínculo sagrado” que foi “quebrado” e assegura:
Não sei formar na Parada nem marchar com o passo trocado, violando valores e princípios partilhados com excecionais Oficiais, distintos Sargentos, exemplares Praças e dedicados Civis que servem Portugal e os Portugueses todos os dias e em todas as circunstâncias”.
E ainda:
“As Forças Armadas são motivo de enorme orgulho dos Portugueses. Somos relevantes na Paz ou em situações de elevado risco, somos presentes e solidários sempre que necessário e prestigiamos o Estandarte da Pátria em remotas paragens. Tenho inusitado orgulho de me fardar para Servir. Ando fardado e com brio desde menino e cresci nos Claustros onde se pratica a Honra e a Responsabilidade.”.
Com efeito, segundo o general, “o vínculo sagrado da confiança entre Comandante e Soldados nunca pode ser quebrado”, pois “é conquistado pelo exemplo e faz com que a forte gente nos siga num último lanço indiferente ao perigo”.
O comandante do Pessoal do Exército, general José Antunes Calçada, demitiu-se por “divergências inultrapassáveis” com o CEME. O próprio confirmou, no dia 8, ao Expresso que apresentara, no dia 7, o pedido de exoneração de funções, pois, as discordâncias acumularam-se ao longo dos últimos meses e o caso de Tancos foi a gota de água. Para o general, a forma como o CEME exonerou 5 comandantes por causa do furto de armamento foi “inqualificável”. E a sua demissão evidencia o clima de mal-estar no Exército, que estava alapado há uns tempos. O general Calçada garante que “nunca pretendeu” ser promovido a vice-CEME, lugar que Rovisco Duarte já tinha feito saber que não viria a ser ocupado por ele, e entregou já uma declaração para a passagem ao estatuto de reserva.
Também o general José Antunes Calçada publicou no Facebook um texto de despedida em teor dedicado aos seus militares:
“Chegou a hora de partir das fileiras/
                          Com grande tristeza no coração!/ 
                          Não era assim que queria, isso não!/ 
                          Mas às vezes não há outras maneiras…/
O Exército tudo me deu, nada me deve!”
É o Exército sem tutela, “desguarnecido de armas” e “agora semivazio de chefes” (vd JN de hoje).
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Ao poder político é de exigir que esteja acima dos interesses pessoais, grupais e corporativos; que defina claras políticas públicas de defesa nacional e que chame as forças armadas, como instrumento supletivo, mas necessário, para a defesa, segurança e ocupação do território e bem-estar das populações; que forneça os meios necessários ao exercício da soberania pelo lado da defesa, sem cortes cegos e sem visões distorcidas dos problemas; e que respeite as instituições que tutela. À instituição castrense tem de se exigir a submissão ao poder político enquanto supremo gestor dos interesses da Pátria, mas nunca pela subserviência descaraterizadora do cidadão, do militar e da corporação que serve. 
Por fim, apraz-me registar o tom ético e teor poético dos textos de despedida dos generais demissionários. Se a atividade bélica se faz de moral e de poesia, teremos o progresso humano de vento em popa.
E já agora que o PR seja, quanto às forças armadas, sempre e apenas comandante supremo!

2017.07.09 – Louro de Carvalho

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