O assalto de
Tancos e as falhas procedimentais de vigilância evidenciadas puseram a nu o
desinvestimento dos sucessivos governos nas forças armadas e obviamente na
defesa militar da República. O furto de material de guerra verificado em Tancos
é inédito pela variedade e quantidades de material subtraído dos paióis. Mas há
mais: os serviços de informação vieram reconhecer recentemente a suspeita
prévia de um assalto a depósitos de material militar e não puseram a tutela de
sobreaviso, facto de que se queixou o Ministro da Defesa Nacional (MDN). Este crismou de imediato o caso como grave e o
crime como muito profissional. E, sobre a demora de um despacho de aprovação de
despesas, disse tratar-se de uma formalidade exigida por se tratar de uma verba
superior ao previsto para em termos da gestão corrente, sem ser informado da
finalidade nem a ter questionado. É o
Exército sem tutela eficiente e eficaz!
Por seu
turno, o general CEME (Chefe do Estado-Maior do Exército) adiantou publicamente que o facto do furto teve
origem em informação interna, exonerou temporariamente (medida
inédita) os cinco comandantes das unidades
encarregadas da vigilância rotativa dos PNT e, na audição parlamentar à porta
fechada, assumiu como sendo do exército todas as responsabilidades pelo que se
passou em Tancos, ilibando o poder político de qualquer responsabilidade sobre
o caso. Mais disse sentir-se humilhado e envergonhado com o comportamento do
Exército neste caso. Ai, se eu estivesse integrado na cadeia de comando
liderada pelo atual CEME, também me demitiria. Um superior hierárquico tem de
saber assumir em nome do universo das pessoas que estão sob a sua alçada apenas
a responsabilidade que lhes cabe a elas e a ele e saber passar as outras
responsabilidade a quem as detiver. Faltam
armas, mas sobretudo a arma da motivação!
***
É verdade
que, pela Lei Constitucional (LC) n.º 1/82,
de 30 de setembro (que operou a 1.ª revisão da Constituição de 1976 - CRP), as forças armadas deixaram de ter papel político
ativo no ordenamento constitucional – passando a estar submetidas ao poder
político legitimamente estabelecido.
Porém, dá-me
a impressão de que tanto o poder político como a hierarquia militar se dão mal
com a situação. Creio que a chamada lei dos coronéis e a extinção do regimento
de comandos, no consulado de Cavaco Silva como Primeiro-Ministro, e o términus
do SMO (serviço
militar obrigatório), prenunciado
pela JSD, previsto no tempo de Guterres e levado a cabo com o Ministério da Defesa
Nacional (MDN) de Paulo Portas foram medidas
tomadas sem a conveniente avaliação do impacto na sociedade e sem o
conhecimento da organização e funcionamento do MDN e – mais grave ainda – sem o
estabelecimento consolidado de um plausível conceito estratégico nacional. Após
a lei dos coronéis (que levava muitos militares a solicitar a reforma,
alegadamente por excesso de pessoal militar), muitos militares foram reconvocados para trabalhar no MDN; os cursos de
comandos foram retomados, com os desastres e as contradições sobejamente
conhecidas; e muitos clamam pelo restabelecimento do SMO, dada a falta de
atração de cidadãs e cidadãos voluntários pelo exército, pela marinha e pela
força aérea.
A
Constituição revista pela referida LC n.º 1/82, de 30 de setembro, estabelece,
no seu art.º 273.º (cuja numeração e teor se mantêm no texto atual), que “é obrigação do Estado assegurar a
defesa nacional”
(n.º
1) e que “a
defesa nacional tem por objetivos garantir, no respeito da ordem
constitucional, das instituições democráticas e das convenções
internacionais, a independência nacional, a integridade do território e a
liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça
externas” (n.º
2).
Por seu
turno, o art.º 275.º estabelece, no n.º 1, que “às Forças Armadas incumbe a defesa
militar da República”;
no n.º 3, que “as Forças Armadas obedecem
aos órgãos de soberania competentes, nos termos da Constituição e da lei”.
E
a CRP, revista pela LC n.º 1/82, dispõe de um n.º 5, que estabelece: “as Forças Armadas podem colaborar, nos
termos da lei, em tarefas
relacionadas com a satisfação de necessidades básicas e a melhoria da qualidade
de vida das populações”.
Por
outro lado, a CRP, revista pela LC n.º 1/2005, de 12 de agosto, redige o n.º 5
nestes termos:
“Incumbe
às Forças Armadas, nos termos da lei, satisfazer os compromissos internacionais
do Estado Português no âmbito militar e participar em missões humanitárias e de
paz assumidas pelas organizações internacionais de que Portugal faça parte”.
E o seu n.º 6 dispõe:
“As
Forças Armadas podem ser incumbidas, nos termos da lei, de colaborar em missões
de proteção civil, em tarefas relacionadas com a satisfação de necessidades
básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações, e em ações de
cooperação técnico-militar no âmbito da política nacional de cooperação”.
É óbvio que, sendo obrigação do Estado
assegurar a defesa nacional, como condição essencial para a soberania e a
independência, o poder político (e, em concreto, o
Governo, que superintende na administração pública) deve dotar as forças armadas
dos meios necessários para o cumprimento das suas missões, dado serem elas uma
força endógena ao regime, não um corpo exterior à Constituição, e serem
responsáveis pela defesa militar do território e apoiantes da defesa civil.
Nestes termos, compete ao poder
político manter-se informado sobre as necessidades e atividades das forças
armadas, definir-lhes as missões, dar-lhes meios para o desempenho cabal das
missões e inquirir sobre a aplicação dos meios aos fins em vista. Porém, não
deve interferir na cadeia de comando bem como nos procedimentos e tem de
incrementar as outras vertentes da defesa nacional: ordenamento do território;
correção das assimetrias regionais; ocupação efetiva do interior com cidadãos,
agentes qualificados e meios de educação, saúde, segurança de pessoas e bens e
segurança social; instalação de serviços públicos; e incremento da instalação e
unidades de produção, comércio e serviços privados. É que a defesa militar é
apenas uma das componentes da defesa nacional. Por isso, é-me indiferente que o
Ministro seja civil ou seja militar. O que importa é que saiba tomar opções,
definir políticas públicas de defesa, assegure a cadeia de comando sem nela
interferir e que, nunca a desautorizando, a prestigie.
***
Ora, Tancos
criou a crise político-militar pior, ao nível do Exército, na vigência do
regime da CRP, que se agravou com a demissão de dois dos seus 4
tenentes-generais, mercê de decisões tomadas há uma semana e que só deverá
ficar clarificada com a intervenção do Presidente da República (PR) e do Primeiro-Ministro (PM). E Marcelo vai ter na próxima reunião do Conselho
Superior de Defesa Nacional (CSDN), a 21 de
julho, dois generais em rutura um com o outro: o CEME e um dos que se demitiram
por “divergências inultrapassáveis” com aquele, pela “[forma] inqualificável”
como exonerou cinco coronéis.
O PR não
comentou as demissões, mas já reconheceu que a sua atuação face ao ocorrido em
Tancos foi “no limite” dos seus poderes (ele não é um comandante operacional
nem lhe compete a ele, mas ao Governo a definição da política interna e externa
do país) – fazendo pressupor agora um
perfil de intervenção mais baixo. Também o Ministério da Defesa se escusou a
comentar as demissões. Porém, o Ministro declarou, no dia 7, que o CEME “não
deve em nenhuma circunstância ser demitido” e enalteceu a forma como Rovisco
Duarte gere a situação. Assunção Cristas (CDS) disse ser tempo de Costa “pôr ordem na casa”; Catarina Martins (BE) afastou a demissão de Azeredo a favor de “ter as
respostas todas e [...] mudar o que está mal para que não se repita”. E o Presidente
da Associação de Oficiais, tenente-coronel António Mota, sustenta que as posições
dos tenentes-generais são legítimas e legais, sendo decisões que apenas a eles
dizem respeito.
A demissão
de Antunes Calçada, Comandante do Pessoal do Exército (que
acumulava com o cargo de secretário do CSDN) já era dada como certa no dia 6 e ficou ontem a saber-se que passará à
reserva. Porém, o pedido de demissão de Faria Menezes, Comandante Operacional
das Forças Terrestres, sugerida por vários militares desde a morte de
instruendos no curso de Comandos e defendida após a falha de segurança em
Tancos (onde 4 dos
exonerados estavam sob a sua tutela direta), surge
envolta em dúvida e intriga: Demite-se
por discordar do chefe e não passa à reserva?
Por outro
lado, apesar de o Conselho Superior do Exército do dia 7 ter acordado em “dar
uma imagem de coesão e unidade” até setembro, quando o vice-CEME passará à
reserva, Faria Menezes falou ao Expresso
hora e meia depois de Antunes Calçada (que o Exército confirmou já ter
entregue os pedidos de exoneração e passagem à reserva) para dizer que ia apresentar no dia 10 o pedido de
exoneração. Agora, para lá do vice-CEME, tenente-general Rodrigues da Costa, mantém-se
em funções o tenente-general Fernando Serafino, comandante da Logística. Embora
com o vice-CEME a acumular agora as funções de Calçada, que poderiam ser
exercidas pelo segundo-comandante do Pessoal, em setembro passam a existir 3
vagas para generais de três estrelas – e com o imbróglio da promoção do
major-general Tiago Vasconcelos, a aguardar parecer da PGR.
Tancos acentuou
a crise iniciada no último ano, com a demissão do anterior CEME por causa da
polémica do Colégio Militar (onde se formou Faria Menezes). Ora este e Calçada são do mesmo curso do CEME, que
os informou não os escolher para vice-CEME. Todavia, a demissão destes generais
não tem a ver com o caso, mas resultou exclusivamente da audição parlamentar do
CEME no dia 6. Um oficial na reserva admitiu, sobre a agitação interna, que “estão
criadas as condições para se evoluir com a saída de dois generais que
desgastavam o chefe por questões de competição”, mas “como pode estar aos tiros
com o chefe quem se deixa roubar?”.
***
O general José
Calçada, comandante de Pessoal do Exército, apresentou o pedido de exoneração
de funções no dia 7. Depois de meses de divergências, a gota de água foi o caso
de Tancos e a forma “inqualificável” como o CEME decidiu exonerar cinco
comandantes por causa do furto de armamento do paiol da base militar. O CEME
esteve, no dia 6, no Parlamento para ser ouvido sobre o assalto aos paióis de
Tancos, onde disse “duas vezes ter-se sentido chocado e humilhado” com o
sucedido e disse ainda que espera obter “em três ou quatro semanas” os
resultados das investigações que determinou. Já na altura fontes militares se
manifestaram indignadas com o CEME por atribuir ao Exército completa
responsabilidade pelo roubo e, ao mesmo tempo, afirmar que mantém total
confiança nos comandantes que exonerou.
E, em publicação na sua página no
Facebook Faria Menezes, comandante operacional das Forças Terrestres, que
anunciou a sua demissão do cargo, reforça a ideia de que houve um “vínculo
sagrado” que foi “quebrado” e assegura:
“Não sei formar na Parada nem marchar com o
passo trocado, violando valores e princípios partilhados
com excecionais Oficiais, distintos Sargentos, exemplares Praças e dedicados
Civis que servem Portugal e os Portugueses todos os dias e em todas as
circunstâncias”.
E
ainda:
“As Forças Armadas são motivo de
enorme orgulho dos Portugueses. Somos relevantes na Paz ou em situações de
elevado risco, somos presentes e solidários sempre que necessário e
prestigiamos o Estandarte da Pátria em remotas paragens. Tenho inusitado
orgulho de me fardar para Servir. Ando fardado e com brio desde menino e cresci
nos Claustros onde se pratica a Honra e a Responsabilidade.”.
Com
efeito, segundo o general, “o vínculo sagrado da confiança entre Comandante e
Soldados nunca pode ser quebrado”, pois “é conquistado pelo exemplo e faz com
que a forte gente nos siga num último lanço indiferente ao perigo”.
O
comandante do Pessoal do Exército, general José Antunes Calçada, demitiu-se por
“divergências inultrapassáveis” com o CEME. O próprio confirmou, no dia 8, ao Expresso que apresentara, no dia 7, o pedido
de exoneração de funções, pois, as discordâncias acumularam-se ao longo dos
últimos meses e o caso de Tancos foi a gota de água. Para o general, a forma
como o CEME exonerou 5 comandantes por causa do furto de armamento foi
“inqualificável”. E a sua demissão evidencia o clima de mal-estar no Exército,
que estava alapado há uns tempos. O general Calçada garante que “nunca
pretendeu” ser promovido a vice-CEME, lugar que Rovisco Duarte já tinha feito
saber que não viria a ser ocupado por ele, e entregou já uma declaração para a
passagem ao estatuto de reserva.
Também
o general José Antunes Calçada publicou no Facebook um texto de despedida em
teor dedicado aos seus militares:
“Chegou a hora de partir das fileiras/
Com grande tristeza no coração!/ Não era assim que queria, isso não!/
Mas às vezes não há outras maneiras…/
O Exército tudo me deu, nada me deve!”
É o Exército sem
tutela, “desguarnecido de armas” e “agora semivazio de chefes” (vd
JN de hoje).
***
Ao
poder político é de exigir que esteja acima dos interesses pessoais, grupais e
corporativos; que defina claras políticas públicas de defesa nacional e que
chame as forças armadas, como instrumento supletivo, mas necessário, para a defesa,
segurança e ocupação do território e bem-estar das populações; que forneça os
meios necessários ao exercício da soberania pelo lado da defesa, sem cortes
cegos e sem visões distorcidas dos problemas; e que respeite as instituições
que tutela. À instituição castrense tem de se exigir a submissão ao poder
político enquanto supremo gestor dos interesses da Pátria, mas nunca pela
subserviência descaraterizadora do cidadão, do militar e da corporação que
serve.
Por
fim, apraz-me registar o tom ético e teor poético dos textos de despedida dos generais
demissionários. Se a atividade bélica se faz de moral e de poesia, teremos o
progresso humano de vento em popa.
E já agora que o PR
seja, quanto às forças armadas, sempre e apenas comandante supremo!
2017.07.09 – Louro de
Carvalho
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