segunda-feira, 17 de julho de 2017

Digressão por terras de Sátão nos contrafortes de Terras do Demo

Sabe sempre bem sair da zona de estada habitual para dar uma volta por lugares calcorreados de antanho e de que afinal ainda se gosta. Foi o que nos sucedeu – a minha mulher e a mim – no passado dia 15. Num misto de obrigação familiar e gesto de camaradagem, percorremos algumas faixas das terras crismadas por Aquilino Ribeiro como Terras do Demo e outras que de Demo nada têm no sentido aquiliniano para terminarmos na vila de Sátão.
É de advertir que “demo”, no contexto aquiliniano, não se refere ao nome grego “dêmos” a significar “povo” (daí a “democracia” como o poder do povo exercido diretamente por ele ou através de seus representantes), mas ao nome do grego tardio “dáimôn” ou “daimónion” (pelo latim “daemon”), a significar “diabo” (acusador), “espírito mau”, “anjo mau”, “demónio”.
Porém, a vila de Sátão já não fica nas ditas Terras do Demo, mas apenas as integram as partes altas do concelho, tal como acontece com as do concelho de Moimenta da Beira, as do de Sernancelhe, as do de Castro Daire praticamente todas as do de Vila Nova de Paiva (a antiga Barrelas). Por isso, digo que estive um bom pedaço do dia 15 num dos contrafortes das Terras do Demo.
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Na verdade, após um almoço de familiares (alguns) que nos levou a pôr a conversa em dia, fizemos escala no Cineteatro Municipal de Sátão para o motivo pelo qual me decidira a sair de São João de Ver nesse dia. Foi o lançamento do segundo livro de ficção do Dr. António Martins Pinto, meu amigo e conhecido das lides da docência, de algumas passagens pela terra onde mora e de alguns contactos a nível da administração de escola. Não esqueço a famosa Marcha da Paz e da Cultura rumo à Lapa, da iniciativa do Instituto Piaget nos tempos da guerra civil em Angola, sendo que a EBI de Ferreira de Aves, de cujo conselho diretivo o professor António Pinto era o Presidente ao tempo, foi um dos pontos obrigatórios de paragem e acolhimento aos caminhantes no dia do Corpo de Deus de 1999.  
Fui dar com o autor do livro já a conceder autógrafos à medida que as pessoas iam fazendo a respetiva aquisição. Além das muitas pessoas da família do professor António Pinto, minhas conhecidas e outras que, pelo menos de vista, também conhecia, tive o ensejo de rever algumas pessoas que já não encontrava há bastante tempo, por exemplo, o Dr. Alexandre Vaz, Presidente da Câmara Municipal; o Acácio Pinto, professor que foi governador civil e deputado e agora é um dos candidatos à presidência do município; o Avantino Beleza, antigo autarca de Vila Nova de Paiva e meu colega na docência e na administração de escola; e a Luísa Coelho, das lides da Escola Profissional de Sernancelhe. E gostei da presença de bastantes elementos do escutismo.
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Pouco depois das 15 horas, dava-se início à sessão do lançamento do livro A Escalada da Ladeira, tendo o autor e anfitrião do momento aberto a sessão com uma ligeira apresentação da obra e dos dois intervenientes seguintes.
O primeiro a usar da palavra foi o senhor Vice-Presidente da Câmara Municipal de Sátão, o vereador Paulo Manuel Lopes dos Santos, que fez as honras da casa em nome do Presidente que, por motivos de agenda ainda não estava presente e apresentou o autor como uma personalidade cheia de qualidades pessoais, profissionais e sociais – ao nível da docência e da administração escolar – e evocou os tempos em que deram aulas juntos e se entregavam a outras atividades de convivência e desporto pautadas pela amizade. E reiterou a vontade do município na atenção a todas as manifestações da cultura e do bem-estar pessoal e social de todos.
Depois, usei também eu da palavra para, de forma sintética, procurando não me repetir em relação ao prefácio que para ele escrevi, apresentar o livro e o autor num sistema de mescla e nos termos seguintes:
“Sucessora de Nas Ondas do Tempo, a narrativa A Escalada da Ladeira, da autoria do Dr. António Martins Pinto – seja-me permitido a partir de agora nomeá-lo, em termos literários por Martins Pinto – vem presentear-nos com a história de vida de uma personagem em que, de algum modo, as cidadãs e os cidadãos da geração do António se reveem. Os caminhos e os atalhos da ladeira até poderão ter sido diferentes no perfil longitudinal e transversal, mas igualmente espinhosos e alegres, escolhosos e prazenteiros, agnósticos e religiosos, no seu teor – enfim, é a vida!
Qualquer um dos leitores desta narrativa há de pressupor e depois concluir que a ladeira é a metáfora da vida e que, mercê do seu teor íngreme, a escalada há de ter sido dura e, às vezes, pobrinha, como justifica o mestre Aquilino Ribeiro, no prefácio à monografia Terras do Alto Paiva, de Fonseca da Gama, para justificar o epíteto com que veio a crismar as pobres terras beiroas a que apelidou de “Terras do Demo”, não por se tratar de terras especiais de pecado ou do diabo (todas o podem ser), mas pela dificuldade da sobrevivência com base na leira, na urze e na espera de que passasse o almocreve.
E Aquilino metaforizava a vida como a peregrinação a Santiago de Compostela, orientada, no solo pelas veredas sinuosas e pedregosas, e, no firmamento pelo Sete-Estrelo ou Estrada de Santiago, contável pelas dezenas de carradas de anos que passavam sobre caminhos e pontes. Ora também o narrador de A Escalada da Ladeira, distribui a vida por IX capítulos precedidos dum prólogo redigido à maneira de aperitivo. Assim, é natural que Martins Pinto tenha construído um narrador heterodiegético cujas personagens tenham nascido e crescido sob a égide da Senhora da Lapa em cujo Santuário de há cerca de 520 anos ocorrem as famosas novenas (Fará os 520 anos em 2018). E uma novena é um conjunto de nove elementos: nove dias na Lapa, mas também nove voltas, nove semanas, nove meses, nove anos ou nove lustros, conforme os contextos. Obviamente, para o ser humano que vem a este mundo a única novena pré-definida por que passa habitualmente é a da gestação; depois, é só contar e somar com a ajuda da família, dos amigos e dos mestres – ao menos na escola da vida.
Assim, é natural que o homem da Nave cresça sob a égide da Lapa e seja moldado pela austera rigidez e aspereza do seu granito, mas também é saudável que as novenas da sua peregrinação de vida, de vez em quando, o transportem ao ambiente mais maleável do calcário português de Fátima, cujo centenário decorre neste ano. Penso que é nesta carreira entre a aldeia e Coimbra, com um salto a Fátima, que o protagonista de A Escalada da Ladeira se move, obviamente em esquecer os seus cenários familiares, pinturescos e dinâmicos ou os episódios de seminário, sé, colégio, liceu, universidade e docência. Até parece que Martins Pinto se projeta pessoalmente neste protagonista!
E, já que referi, antes, o número nove e o numeral distributivo-coletivo relacionado com ele, estou a lembrar-me do número sete, considerado na Bíblia e no imaginário popular, o número perfeito ou da totalidade. Ora tanto quanto podemos ler nas orelhinhas do livro, Martins Pinto está a perfazer as suas sete novenas de anos da escalada da ladeira (havíamos de estar amanhã todos em Águas Boas!... – o dia 16 é o do 63.º aniversário de Martins Pinto).
Enquanto se felicita o cidadão com experiência nas lides da docência e da administração da educação formal, espera-se que Martins Pinto não pare na produção da ficção. A sua ladeira já perdeu as malhas da índole íngreme da escalada e atingiu um estatuto de memorial, mas o conhecimento das pessoas e das suas realidades não se limita certamente ao conhecimento da família: há outros mundos a explorar e a colocar em narrativa. Com certeza que não faltam pretextos para histórias em que as personagens vivam em mundos que a história percebe como tão verosímeis que as coincidências com a realidade são mais que muitas e em que a ficção lhes confere um colorido do qual se deve dizer que será mera coincidência qualquer semelhança que apresentem com a realidade.
Porém, não posso terminar sem deixar um repto a Martins Pinto: porque não tentar um legado sobre a docência da disciplina de Matemática, de que tantos e tantas têm medo, e um testemunho sobre a administração escolar, num tempo em que ela mostra algumas ambiguidades, ao nível da dimensão, da democracia e da eficácia, no quadro mais vasto da definição das políticas públicas. Legado e testemunho que bem podem ser exarados em termos reais ou em termos ficcionados ou em ambos.
E não receie que entendam qualquer um destes pretextos de escrita como intervenção política. Com efeito, depois que Almeida Garrett confessou que as suas Viagens na Minha Terra constituíam um ato de intervenção política, um pronunciamento, portanto, quase toda a peça literária não deixa de o ser – o que não quer dizer que seja de política partidária ou política no sentido negativo do termo. Aliás, no seu mais genuíno sentido, política é a preocupação com a pólis e a intervenção na pólis para sua edificação e consolidação. Hoje, refugiamo-nos no eufemismo da “cidadania”, que deveria ser exatamente a mesma coisa (pólis e polítês são palavras gregas; civitas civis são latinas – ambas significam cidade e cidadão, respetivamente). Ademais, tanto Nas Ondas do Tempo, como A Escalada da Ladeira situam a ação no quadro global das políticas coevas e as personagens recebem delas a inevitável influência e o condicionamento.
E, como se vê pelo exemplo de Martins Pinto, um professor aposentado tem muito para dar à comunidade, muito que não pode consistir numa taxa designada por contribuição especial de solidariedade ou a ela ficar alguma vez confinado. Obviamente, Martins Pinto sabe que, lá dizia Cardoso Pires, para o leitor ter prazer, é preciso que o escritor sofra.
Por fim, deixo o apelo a que leiam o livro. Por dois motivos: primeiro, é a curiosidade um dos fatores e fautores da construção da personalidade e do progresso; segundo e último, o autor realiza-se na produção da obra, mas a eficácia da mesma concretiza-se pela leitura.
Ao autor, parabéns e muito sucesso! E é com a palavra, falada e escrita, com a capacidade de ouvir e com a dedicação ao serviço – como as escuteiras e os escuteiros aqui presentes – que se conseguirá encontrar o graal da felicidade, que é para os crentes o cálice pelo qual Jesus terá bebido na Última Ceia e no qual José de Arimateia terá recolhido aquele jorro de sangue e água que brotou do lado adormecido de Cristo na Cruz do Calvário.”.
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Por fim, o autor tomou a palavra para agradecer as intervenções e, com a ajuda da sobrinha Daniela, mostrar aos presentes, através de imagens expressivas e textos legíveis em ecrã e/ou lidos pelo autor, três excertos da vida do protagonista: o diálogo do António (o protagonista) com um petiz companheiro em volta da comida pobrinha (temperada pela conversa infantil); a evocação da cena seminarística duma noviça candidata a deuteragonista, que fatores religiosos fizeram eclipsar, deixando o protagonista amargurado, mas a médio prazo disponível para escalar a ladeira com a cumplicidade doutra deuteragonista, a definitiva; e alegria de festejar com a família a chegada ao topo da ladeira, ver a diversidade de caminhos, que possibilita as melhores escolhas, e celebrar o momento de encanto com alegria humana e da fé sob a égide de Nossa Senhora de Fátima ou a Mãe de todas as graças, mas arregaçando as mangas para o trabalho. E informou de que tinha em mãos a escrita de novo livro, “A equação da Matemática”. Gostei!
Enfim, um dia de serenidade, amizade, cultura e convívio. Por Deus, pelas famílias, pelos amigos e pela literatura.

2017.07.17 – Louro de Carvalho

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