Um
professor de História da Igreja contava-nos o episódio do superior do convento
que periodicamente passava revista às celas dos seus frades acompanhado por
alguns conselheiros.
Ao
passar pela cela de um dos religiosos e vendo como tudo estava arrumadinho,
limpo e asseado, deu graças a Deus: Bendito
sejas, Senhor, por este nosso irmão. É tão santo que a cela será mesmo o
espelho da sua alma!
Porém,
os conselheiros esperavam a reação do bondoso superior ao passar pela cela de
um dos religiosos em que estava tudo desarrumado, a cama por fazer e as peças
de roupa ou de calçado para cada lado. E o superior, otimista como era e
consciente de que não lhe era dado fazer juízos precipitados, rezou: Bendito sejas, Senhor, por este nosso irmão.
É tão santo e tão unido a Ti espiritualmente que não lhe sobra tempo algum para
tratar das cosias materiais!
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Lembro-me
deste relato de Monsenhor Augusto Campos Neves, quando observo a maneira como alguns
ministros da Comunhão, obviamente falando da postura exterior, dado que das
intenções e da piedade de cada um ou de cada uma só Deus sabe.
Alguns
distribuem a Sagrada Comunhão com um esgar sorumbático, bastante carregado, às
vezes meio emproado. Salvo quando tal aspeto exterior revele soberba superioridade
ou ligeireza de entendimento para evidenciar protagonismo, apraz-me aplaudir
tal postura de sobriedade, uma vez que se trata de matéria bem séria e nobre:
estão a lidar com o Corpo de Cristo e a oferecê-lo em alimento aos irmãos e
irmãs que se dirigem a estes ministros ordinários ou extraordinários enquanto distribuidores
do “Sacramento”, fruto do Sacrifício de Cristo.
Na
verdade, a celebração eucarística é o centro da vida cristã, para a Igreja
universal e para as suas comunidades locais. Efetivamente, na Eucaristia “está
contido todo o bem espiritual da Igreja – o próprio Cristo, nossa Páscoa e pão
vivo, que, pela sua carne vivificada e vivificadora sob a ação do Espírito
Santo, dá a vida aos homens, que são assim convidados e levados a oferecerem-se
juntamente com Ele, a si mesmos, os seus trabalhos e toda a criação (cf
SAGRADA COMUNHÃO E CULTO DO MISTÉRIO EUCARÍSTICO FORA DA MISSA, 1).
De
facto, Cristo nosso Senhor, “é imolado no sacrifício da Missa quando começa a
estar sacramentalmente presente como alimento espiritual dos fiéis sob as
espécies do pão e do vinho”; e, “depois de oferecido o sacrifício, enquanto se
conserva a Eucaristia nas igrejas ou oratórios”, é verdadeiro Emanuel ou “Deus
connosco”, pois, dia e noite, Ele está no meio de nós e habita em nós “cheio de
graça e de verdade” (cf Id, 2). Assim, a ninguém é lícito duvidar de “que todos
os cristãos devem prestar com veneração a este Sacramento o culto de latria que
é devido ao verdadeiro Deus”. Pois não deve ser menos adorado pelo facto de o
Senhor Jesus o ter instituído “com o fim de ser comido (cf
Id, 3).
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Todavia,
como entender a postura daqueles e daquelas que se deslocam com a sagrada píxide
ou cibório visivelmente alegres e, postados ou postadas frente a cada
comungante, elevam a hóstia e, com um sorriso discreto, proclamam “O Corpo De Cristo!” e colocam a sagrada partícula
na língua do comungante ou na mão esquerda do mesmo, que de imediato a recolhe
com a mão direita e a comunga? É uma atitude muito diferente da acima descrita.
Significará, mesmo assim, uma postura tão diferente? Se efetivamente tal
postura não significar apenas uma satisfação pessoal, mas se for sinal exterior
dum serviço eclesial, um serviço à comunhão do melhor bem da santificação dos
crentes, à partilha das coisas santas, à comunhão dos santificados pela graça
de Deus – então este ministro da apresentação e distribuição do Corpo de Cristo
merece os maiores e melhores parabéns. Com efeito, encarna o sentido festivo da
celebração da Eucaristia, mesmo que que este momento aconteça fora da
celebração da Missa.
A
festa, sem nos dispensar da sobriedade própria da compenetração sobre a
profundeza do mistério, não nos pode obrigar à soturnidade de postura, mas deve
induzir-nos à alegria de vivermos como irmãos e filhos do mesmo e comum Pai.
Na
verdade, os motivos de festa na celebração eucarística – ou de Ação de graças –
são mais que muitos:
-
O Salvador instituiu, na
ceia da noite em que foi entregue, o sacrifício eucarístico do seu corpo e
sangue, para perpetuar pelos séculos, até voltar, o sacrifício da cruz,
confiando à Igreja, sua esposa amada, o memorial da sua morte e ressurreição:
sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade, banquete pascal
em que se recebe Cristo, a alma se enche de graça e nos é dado o penhor da
glória futura (cf CIC, 1323). Nela, Cristo associa a Igreja
e todos os seus membros ao seu sacrifício de louvor e de ação de graças,
oferecido ao Pai uma vez por todas na cruz; nela, Ele derrama as graças da
salvação sobre o seu corpo, que é a Igreja (cf CIC, 1407).
- Como fonte
e cume da vida eclesial, a Eucaristia liga-nos à Ceia e ao Calvário,
sacia-nos com o banquete do Senhor, une-nos à Liturgia do céu, antecipando-nos a vida eterna,
quando Deus for tudo em todos (1Cor 15,18; CIC, 1419) e constitui-se como o coração e o cume
da vida da Igreja e “o resumo
e a súmula da nossa fé: “A nossa maneira
de pensar está de acordo com a Eucaristia: e a Eucaristia confirma a nossa
maneira de pensar”. (cf CIC, 1324-1238; 1406;1407).
- Como Memorial da paixão e ressurreição do Senhor, é o Santo
Sacrifício, que atualiza o único sacrifício de Cristo Salvador e
inclui a oferenda da Igreja; e é o santo Sacrifício da Missa, Sacrifício
de louvor» (Heb 13,15), Sacrifício espiritual, Sacrifício puro e
santo, pois completa e ultrapassa todos os sacrifícios da Antiga
Aliança. É a santa e divina Liturgia, porque toda a liturgia da
Igreja encontra o seu centro e a sua expressão mais densa na celebração deste
sacramento; no mesmo sentido, é celebração dos Santos Mistérios; e é Santíssimo
Sacramento, porque é o sacramento dos sacramentos (cf CIC, 1330; 1409). E chama-se Santíssimo Sacramento às sagradas espécies em reserva para comunhão
dos doentes e adoração eucarística.
- Como Comunhão, une-nos a Cristo, que nos torna
participantes do seu corpo e do seu sangue, para formarmos um só corpo;
chama-se-lhe as coisas santas (tà hágia; sancta) – é o sentido primário da “comunhão dos santos” de que
fala o Símbolo dos Apóstolos –, pão dos anjos, pão do céu, remédio da
imortalidade, viático... (cf CIC, 1331) e o ponto de partida
para a comunhão dos bens materiais, sociais, morais e culturais em termos da
solidariedade humana e cristã.
- E, como Santa Missa, termina
com o envio dos fiéis (missio), para cumprirem a vontade de Deus na sua vida quotidiana (cf CIC, 1332), fazendo discípulos
e cuidando dos pobres e doentes.
***
Sobre a celebração da eucaristia, é de ter em
conta que dispomos do testemunho de São Justino, mártir (século II), sobre as grandes linhas das sequências da celebração, que permanecem, no
essencial, as mesmas até aos nossos dias em todas as grandes famílias
litúrgicas. Justino explica por carta, cerca do ano 155, ao imperador pagão
Antonino Pio (138-161) o que fazem os cristãos:
“No dia que chamam Dia do Sol, realiza-se a reunião num mesmo lugar de
todos os que habitam a cidade ou o campo. Lêem-se as memórias dos Apóstolos e
os escritos dos Profetas, tanto quanto o tempo o permite. Quando o leitor
acabou, aquele que preside toma a palavra para incitar e exortar à imitação dessas
belas coisas. Em seguida, levantamo-nos todos juntamente e fazemos orações por
nós mesmos [...] e por todos os outros, [...] onde quer que estejam, para que
sejamos encontrados justos por nossa vida e ações, e fiéis aos mandamentos, e
assim obtenhamos a salvação eterna. Terminadas as orações, damo-nos um ósculo
uns aos outros. Depois, apresenta-se a quem preside aos irmãos o pão e uma taça
de água e vinho misturados. Ele toma-os e faz subir louvor e glória ao Pai do
universo, pelo nome do Filho e do Espírito Santo, e dá graças (em grego: eucharistian) longamente, por termos sido
julgados dignos destes dons. Quando ele termina as orações e ações de graças,
todo o povo presente aclama: Ámen. [...] Depois de aquele que preside
ter feito a ação de graças e de o povo ter respondido, aqueles a quem entre nós
chamamos diáconos distribuem a todos os que estão presentes pão, vinho e água ‘eucaristizados’
e também os levam aos ausentes.” (cf CIC 1345).
E hoje a liturgia eucarística processa-se em conformidade com uma estrutura
fundamental, que se vem conservando através dos séculos. Desdobra-se em dois
grandes momentos, que formam basicamente uma unidade: a reunião, a
liturgia da Palavra, com as leituras,
a homilia e a oração universal; e a liturgia eucarística, com
a apresentação do pão e do vinho, a ação de graças consecratória e a comunhão. Liturgia
da Palavra e liturgia eucarística constituem juntas “um só e mesmo ato de culto”, pois a mesa posta para nós na
Eucaristia é igualmente a da Palavra de Deus e a do Corpo e Sangue do Senhor (cf CIC, 1346; 1408).
E também é este o dinamismo da
refeição pascal de Jesus Ressuscitado com os discípulos, pois, enquanto
caminhavam, Ele explicava-lhes as Escrituras e, depois, pondo-Se à mesa com
eles, “tomou o pão, proferiu a bênção, partiu-o e deu-lho” (cf CIC 1347; Lc 24,30) – aliás como na Última Ceia, em que tomou o pão e, depois de dar graças,
partiu-o e distribuiu-o por eles, dizendo: ‘Isto
é o meu corpo, que vai ser entregue por vós; fazei isto em minha memória’;
e, depois da ceia, fez o mesmo com o cálice, dizendo: ‘Este cálice é a nova Aliança no meu sangue, que vai ser derramado por
vós’ (cf Lc 22,19-20; Mt 26,26-29; Mc 14,22-25; 1Cor 11,23-27).
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Recorde-se que o
fim primário e primevo da reserva eucarística é a ministração do Viático aos
moribundos, sendo os fins secundários a distribuição da comunhão e a adoração
do Senhor presente no Santíssimo Sacramento. De facto, foi a conservação das
sagradas espécies para os enfermos que originou o louvável costume de adorar o alimento
celeste que se guarda nos templos e oratórios – culto de adoração fundado na
razão válida e segura da fé na presença real do Senhor e conducente à manifestação
externa e pública desta fé eucarística.
E
clarifique-se que, na celebração da Missa, os principais modos da presença de Cristo
na Igreja se manifestam gradualmente: primeiro, na comunidade dos fiéis reunidos
em seu nome; depois, na Palavra, que se proclama e explica em Igreja;
igualmente, na pessoa do ministro que preside in persona Christi; e, de modo eminente, sob as espécies eucarísticas
de pão e de vinho. Na verdade, no Sacramento da Eucaristia está presente, de
modo absolutamente singular, Cristo todo inteiro, Deus e homem,
substancialmente e sem interrupção. Esta – a presença de Cristo sob as espécies
– “chama-se real por excelência, não por exclusão, como se as outras não fossem
reais”. (cf
SAGRADA COMUNHÃO E CULTO DO MISTÉRIO EUCARÍSTICO FORA DA MISSA, 5-6).
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Por
tudo isto, também o comungante deve ter uma postura – não aligeirada, espetacular,
soberba ou atabalhoada – e, sim, condigna, sóbria, mas alegre e festiva!
CIC – Catecismo da Igreja Católica
2017.07.31 – Louro de
Carvalho
Por vezes somos demasiado rápidos a julgar.
ResponderEliminarEsta é também a minha maneira de pensar.
Gostava e acho apropriado ter nos lábios um sorriso enquanto distribuo a comunhão, e acho que assim deviam ser todos os ministros da comunhão. Mas dou tantas vezes por mim, durante a comunhão, com uma cara séria, por razões físicas ou pensamentos diversos, pensamentos que muitas vezes são acerca da melhor maneira de distribuir a comunhão, naquela hora, em todos os seus aspectos.
Temos apenas que dar o nosso melhor e, desde que não exista escândalo público óbvio, dar a todos o crédito de serem avaliados por Deus.
Gostei, portanto.