sexta-feira, 28 de julho de 2017

O oxímoro evangélico da passagem do camelo pelo fundo da agulha

Nota prévia
O oxímoro é uma figura de linguagem que coloca a par termos de significados opostos por forma a criar um paradoxo que redobra a força das palavras combinadas.
A palavra ‘oxímoro’ vem do grego ‘oxymoron’, formado pela combinação de ‘oxys’, que significa ‘intenso’ ou ‘agudo’, e ‘moron’, que significa ‘tolo’. Muito comum na retórica clássica, funciona como recurso estilístico de poetas e escritores, bem usado para representar “ironia ou sarcasmo”, como em “sábia ignorância” ou em “humildade soberba”. Mas pode ser um vício de linguagem, que deixa o texto rebuscado e em excesso, pouco claro para o leitor.
Paradoxo, paradoxismo e oxímoro são, muitas vezes, assumidos como sinónimos para a mesma figura de linguagem, que consiste em colocar dois conceitos opostos para criar um novo sentido na expressão. A principal caraterística do oxímoro é o paradoxo, mas o paradoxo por si mesmo tem um significado mais abrangente: é um conceito que pertence à filosofia e refere-se a tudo aquilo que contraria a lógica ou o que se tem como verdade.
Depois de estudar as funções da agulha e ter comentado as estâncias 96 a 99 do Canto VIII de “Os Lusíadas”, de Luís de Camões, vem a talho de foice comentar Mt 19,24, Mc 10,25 e Lc 18,25 – passagens comuns dos evangelhos sinóticos e em contexto semelhante.
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Os relatos dos sinóticos em que vem inserido o oxímoro do camelo e da agulha
Os relatos dos sinóticos inserem a afirmação de Jesus em contexto semelhante: o aparecimento dum jovem rico que pretendia saber o que fazer para alcançar a vida eterna e que, ao ser-lhe dito e explicado pelo Mestre o que devia fazer, cumprir os mandamentos e quais, respondeu que já fazia isso desde a juventude, mas, desafiado por Cristo a vender tudo, dar aos pobres e segui-Lo, retirou-se triste por ser muito rico (Mt 19,16-22; Mc 10,17-22; Lc 18,18-23); o comentário sobre as riquezas (Mt 19,23-26; Mc 10,23-27; Lc 18,24-27); e o desprendimento afirmado por Simão Pedro, perguntando por recompensa e a recompensa pelo desprendimento (Mt 19,27-30; Mc 10, 28-31; Lc 18,28-30).
Os relatos são muito semelhantes. Porém, em relação ao jovem rico, Lucas salienta o tratamento que o jovem dirige a Jesus, “Bom Mestre”, e a interpelação de Jesus, “porque me chamas bom?”. E, na questão da recompensa pelo desprendimento, além da recompensa de cem vezes mais e da vida eterna, o Mestre, em Marcos, inclui a promessa de perseguições e, em Mateus, garante a participação no julgamento final:
“No dia da regeneração de todas as coisas, quando o Filho do Homem se sentar no seu trono de glória, vós, que me seguistes, haveis de sentar-vos em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel”.
Em Mateus o premiado desprendimento da família e dos bens materiais é referido como sendo por causa do nome de Jesus, em Marcos, por causa de Jesus e do Evangelho, e em Lucas, por causa do Reino de Deus. Afinal, é pela mesma razão: o Evangelho é a Boa Nova do Reino cujo protagonista entre os homens é Cristo. 
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A referência explícita ao caso
Em Mt 19,24, lê-se em grego: Pálin dè légô ymîn, “eukopôteron estín kámêlon dià trypêmatos rhaphídos eiseltheîn ê ploúsion eis tên Basileían toû Theoû”; e, em latim (segundo a vulgata clementina): Et iterum dico vobis: “facilius est camelum per foramen acus transire, quam divitem intrare in regnum cælorum”. E de novo vos digo: “é mais fácil [um] camelo entrar por buraco de agulha que [um] rico [entrar] no reino do Deus”. Em grego, Mateus tem ‘camelo’, ‘buraco’, ‘agulha’ e ‘rico’ sem artigo definido, o que em latim não é relevante por não haver artigos.
Em Mc 10,25, lê-se em grego: Técna, pôs dýscolón estin toûs pepoidótas epì khrêmasin eis tên Basileían toû Theoû eiseltheîn: “Eukopôteron estín kámêlon dià tês trymaliâs tês rhaphídos dieltheîn ê ploúsion eis tên Basileían toû Theoû eiseltheîn”; e em latim (segundo a vulgata clementina): Filioli, quam difficile est, confidentes in pecuniis, in regnum Dei introire! “Facilius est camelum per foramen acus transire, quam divitem intrare in regnum Dei. Filhinhos, quão difícil aos que têm confiança nos dinheiros entrarem no Reino do Deus: “É mais fácil [um] camelo passar pelo buraco da agulha que [um] rico entrar no reino do Deus”. Vejam-se as palavras que são antecedidas de artigo definido. E, se em Mateus no segundo membro da comparação tem de se subentender o mesmo verbo do primeiro membro da comparação “eiseltheîn”, em Marcos os verbos são diferentes embora com o verbo simples “eltheîn”.
Em Lc 18,25, lê-se em grego: Pôs dyscólôs oi tá khrêmata ékhontes eis tên Basileían toû Theoû eisporeúontai: “Eukopôteron gar estín kámêlon dià trêmatos belónês eiseltheîn ê ploúsion eis tên Basileían toû Theoû eiseltheîn”; e, em latim (segundo a vulgata clementina): Quam difficile, qui pecunias habent, in regnum Dei intrabunt! “Facilius est enim camelum per foramen acus transire quam divitem intrare in regnum Dei”. Quão dificilmente os que têm riquezas virem a entrar no reino do Deus!É, pois, mais fácil [um] camelo entrar por buraco de agulha que [um] rico entrar no reino do Deus”.
Para significar buraco da agulha (no latim, sempre ‘foramen’), Mateus utiliza a palavra ‘trýpêma, trypêmatos’ (orifício cavidade), no genitivo do singular precedido da preposição ‘diá’ (do verbo ‘trypáô’, perfurar); Marcos utiliza a palavra ‘trymaliá, trymaliâs” (buraco, orifício e, no Novo Testamento, fundo da agulha), também no genitivo do singular precedido da preposição ‘diá’; e Lucas, por sua vez, utiliza a palavra ‘trêma, trêmatos’ (abertura, orifício buraco, dos verbos ‘titráô’ e ‘títrêmi’, furar), também no genitivo do singular precedido da preposição ‘diá’. Para agulha, Mateus e Marcos usam o nome ‘rhafís, rhafídos’, cognata de ‘rhafê, rhafês’, costura, sutura (do verbo ‘ráptô’, coser, suturar, tramar, urdir). Porém, Lucas usa a palavra ‘belónê, belónês’ (do verbo ‘bállô’, atirar, lançar, derribar, colocar, pôr).
É ainda de notar que, no grego, na expressão reino de “Deus” o genitivo ‘Theoû’ é precedido do artigo definido.
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Como explicar essa comparação em oxímoro?
Os judeus tinham uma noção desvirtuada sobre os ricos e os pobres. Entendiam a prosperidade como prova do favor divino, simbolizando bênçãos de Deus materializadas na vida do homem. Dessa forma, criam que era mais fácil a salvação para os ricos do que para os pobres, muito embora os salmistas confessassem recorrentemente que Deus tomava o partido dos pobres e dos fracos. Coube a Jesus trazer consolidadamente o entendimento necessário a essa questão. 
Vemo-lo, antes deste incidente com o jovem rico, no relato da história do rico e Lázaro (Lc 16,19-31), indo o rico para a perdição e o pobre para a salvação. Porém, não devemos embarcar na conclusão simplista de que todos os ricos vão para o inferno e os pobres por essa condição se salvarão. O que Jesus realmente pretende ensinar é que as riquezas podem ser perigosas para os que as possuem ou nelas confiam. William Barclay, ao comentar Mateus 19,24, faz ressaltar que os perigos para quem confia nas riquezas são três: as numerosas posses fomentam a falsa independência; as riquezas prendem as pessoas a este mundo (Mt 6,21); as riquezas tendem a tornar a pessoa egoísta. De igual forma, elenca três interpretações para Mateus 19,24 (Mc 10,25; Lc 18,25): ter havido nalguns manuscritos a substituição da palavra grega ‘kámilos’ (‘kámilon’, no acusativo em oração infinitiva), corda ou calabre para ‘kámêlos’ (‘kámêlon’, no acusativo em oração infinitiva), o animal – e considerar  literalmente o fundo da agulha; considerar literalmente o termo camelo, mas entender o fundo da agulha como uma pequena porta ao lado da porta principal de Jerusalém, pela qual um camelo entrava após lhe ter sido tirada a carga e, mesmo assim, ajoelhado e aos empurrões; e tanto o camelo como o fundo da agulha serem considerados literalmente. O teólogo mencionado opta pela última hipótese
Porém, reconhece a existência fulgurante de recursos literários no texto. Além da iteração e da metonímia, Cristo usa a figura de linguagem designada por hipérbole, que se carateriza pelo exagero com o objetivo de despertar a atenção dos ouvintes para melhor ficar a narrativa na memória. Então, para enfatizar uma verdade divina, Jesus utilizou este recurso do exagero para que, provocando o impacto esperado, todas as pessoas em todos os tempos, pela repetição dessa comparação, aprendessem esta verdade divina.
Assim a expressão ‘passar um camelo pelo fundo de uma agulha’ é uma expressão proverbial semelhante a várias outras usadas no mundo antigo para descrever uma impossibilidade.
Em Mateus 19:16-30 (vd Mc 10:17-31; Lc 18:18-30) aparecem o relato do jovem rico, que não conseguiu desenvencilhar-se de suas posses materiais, e as declarações de Cristo sobre o perigo das riquezas. O jovem “retirou-se triste” e Cristo afirmou:
Em verdade vos digo que um rico dificilmente entrará no reino dos céus. E ainda vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus” (Mt 19:23-24; cf Mc 10,23-25; Lc 18,24-25).
Alguns comentadores bíblicos minimizam o efeito paradoxal da expressão “passar um camelo pelo fundo de uma agulha” reinterpretando o significado dos termos “camelo” e “fundo de uma agulha”. Por exemplo, há quem diga que a palavra “camelo” se refere aqui não ao próprio animal conhecido por esse nome, mas a um “cabo” ou “corda” de navio. Os defensores dessa teoria baseiam-se no facto de alguns manuscritos bíblicos, produzidos vários séculos depois de Cristo, trazerem nesse versículo a palavra “cabo” em vez de “camelo”. Como no original grego os termos “camelo” (kámêlos) e “cabo” (kámilos) são parónimos, é provável que alguns copistas e tradutores do Novo Testamento tenham substituído o termo “camelo” por “cabo”. Assim, o rico poderia salvar-se com grande dificuldade gerindo as riquezas, tal como é possível com alguma paciência e vagar e paciência desfiar o dito calabre do navio até ficar um fio passível de passar pelo buraco duma agulha da lã ou de coser albardas. Outra teoria, mais popular, pretende identificar o “fundo de uma agulha” com uma suposta portinhola lateral nos muros de Jerusalém, pela qual passavam os peões quando os grandes portões daquela cidade já estavam fechados. Embora as portinholas de algumas cidades mais recentes da Síria fossem denominadas de “olho da agulha”, não há evidências de que fosse esse o caso de Jerusalém nos dias de Cristo.
Como a teoria da portinhola surgiu séculos depois de Cristo, não é crível que Ele a tivesse em mente no texto em causa. E a expressão “passar um camelo pelo fundo de uma agulha” é, sem dúvida, uma expressão proverbial semelhante a várias outras usadas no mundo antigo para descrever uma completa impossibilidade. Mesmo na literatura judaica posterior aparecem alusões ao “elefante” como incapaz de passar pelo fundo de uma agulha. Contudo, os discípulos estavam mais familiarizados com o camelo do que com o elefante. Por isso, Cristo quis contrastar o maior dos animais da Palestina (o camelo) com o menor dos orifícios conhecidos ao tempo (o fundo duma agulha). As tentativas de interpretar o “camelo” como um cabo e o “fundo de uma agulha” como uma portinhola enfraquecem, pois, o argumento de Cristo. O texto de Mateus 19,16-30 deixa claro que o propósito de Jesus era levar os discípulos a entender a completa impossibilidade de alguém, semelhante ao jovem rico, ser salvo enquanto estiver apegado às suas riquezas. O problema não está nas riquezas em si, mas no apego a elas. Mas, quando o ser humano aceita o convite à renúncia de si mesmo (vd Mt 16,24-26), o que é “impossível aos homens” torna-se possível ao poder transformador da graça divina (Mt 19,26). (cf Alberto R. Timm, Sinais dos Tempos, jan/fev de 2003, p. 30http://www.centrowhite.org.br/textos.pdf/01/24.pdf).
Veja-se ainda a explicação que fornece o insuspeito professor Frederico Lourenço, que não tem a pretensão de fazer teologia (embora inevitavelmente o faça por vezes) com a sua tradução da Bíblia grega, mas contribuir para a sua compreensão e leitura rigorosa e atualizada, com base no conhecimento do grego.
Comentando Mt 19,24 (e remetendo para este comentário as notas a Mc 10,25 e Lc 18,25), o notável helenista explicita:
“É mais fácil um camelo passar através do buraco duma agulha do que um rico entrar no reino de Deus”. Esta imagem do camelo a passar pelo buraco da agulha é comum a Mateus, Marcos (10:25) e Lucas (10:25).
A redação não é absolutamente coincidente nos três Evangelhos: Marcos é o que usa o termo mais vulgar para buraco (trumaliá, que pode ter conotações sexuais), mas Mateus também não lhe fica muito atrás em vulgaridade, já que a palavra por ele utilizada (trúpêma), ligada como está a trúpê, evoca o sentido de “ânus” (portanto, a imagem seria algo como o camelo a entrar pelo “traseiro da agulha”). Lucas é mais delicado na sua linguagem, optando por tréma, onde não há segundos sentidos de cariz grosseiro. O camelo esteve em tempos para contar como menos um problema na exegese do NT, uma vez que se espalhou a ideia de que, em vez de kámêlon (“camelo”), Mateus, Marcos e Lucas teriam querido escrever kámilon (“corda”). Atendendo à literatura rabínica de um elefante a passar através do buraco da agulha, é certo que os sinópticos se estavam mesmo a referir a um camelo, e não a uma corda. Abandonada, também por carecer de fundamentação objetiva, está a ideia em tempos aventada de que o camelo era um portão muito estreito que dava acesso à cidade de Jerusalém (Nolland, p.795). Essa interpretação trazia um certo consolo a todos quantos quisessem juntar os dois projetos de vida (ser rico; ser cristão), já que a partir dela se legitimava a ideia de que aos ricos era apenas difícil (mas não impossível) entrar no reino de Deus. (Lourenço, F. Bíblia, volume I, Novo Testamento, os quatro Evangelhos. Quetzal, 2016)
O texto de Lourenço parece induzir-nos em erro ao chamar camelo à portinhola da cidade de Jerusalém em vez de lhe chamar agulha como dizem outros. No entanto, deve dizer-se que, por sinédoque, tanto chamamos agulha à haste munida do dito buraco, cu ou fundo, como apenas a esse buraco. E, por metonímia, bem se pode confundir linha com agulha e camelo com portinhola. Além disso, Lourenço contribui para a compreensão da força dos termos que exprimem a ideia vigorosa da pregação de Cristo, que não tinha papas na língua, quando necessário. Veja-se, por amostra, a sua invectiva contra os ricos:
“Mas ai de vós, os ricos, porque recebestes a vossa consolação! Ai de vós, os que estais agora fartos, porque haveis de ter fome! Ai de vós, os que agora rides, porque gemereis e chorareis!” (Lc 6, 24-25).
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Sem muita discussão sobre ser camelo ou cabo, fundo de agulha ou portinhola, parece bem clara a afirmação, quando se recorda o que Jesus disse ao jovem rico: “vende tudo quanto tens e reparte-o pelos pobres”.  Na visão do Evangelho, para entrar radicalmente no Reino de Deus, não existe outra maneira que não seja despojar-se completamente dos bens materiais.  E, corroborando o sentido da expressão, Pedro clamou nessa ocasião: “Eis que nós deixamos tudo, e te seguimos”. (Mt 19,27; Mc 10,28; Lc, 18,28).  
Então, considere-se: Quais os ministros da Palavra estão hoje embarcados em pleno neste dinamismo do Reino?  Como vai este mundo de cristãos descafeinados que se permitem servir a dois senhores: Deus e o dinheiro (cf Lc 16,13)?  

2017.07.27 – Louro de Carvalho

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