Numa das suas novelas, o narrador de Camilo Castelo Branco informa o
potencial narratário de que as personagens vão continuando a morrer
convenientemente. Analogamente, dá-me para dizer que depois do trágico incêndio
de Pedrógão Grande – E porque não dizer também de Castanheira de Pera, Figueiró
dos Vinhos, Góis, Pampilhosa da Serra, Sertã e Penela? – os incêndios
florestais continuam a alastrar e a queimar convenientemente.
E, em vez de se mobilizarem todos os recursos para pôr travão ao flagelo
alastrante da praga incendiária, discute-se se quem morreu em contexto de
incêndio, teve morte por consequência direta do incêndio ou se foi por consequência
indireta. Porra! senhores políticos e altos funcionários do Estado! Quero lá
saber se militar que morre em teatro de operações morre diretamente do combate com
o inimigo ou porque lhe caiu uma árvore em cima do dorso. Quero lá saber se
bombeiro que morre em viatura que segue para o incêndio ou dele regressa morre
direta ou indiretamente por causa do incêndio. Nesse caso, autarcas e polícias
que morrem em zonas de incêndios florestais não têm direito a morrer
“diretamente” por causa de incêndios.
Na verdade, não se percebe como foi possível definir critérios para
determinar quem morreu diretamente por causa dos incêndios de Pedrógão
Grande e concelhos limítrofes. Se o problema é para evitar que as seguradoras
paguem, mais vale acabar com as seguradoras; e, se é para evitar que o Estado
assuma responsabilidade, acabe-se com o Estado e instaure-se a lei da selva que
arde sem quê nem para quê, desde que forneça lucro a negócios de interesses
instalados!
***
É escandaloso que, face a dúvidas surgidas recentemente na comunicação
social sobre o presumível caso do atropelamento mortal duma mulher por um
condutor que ia a fugir do fogo, se reitere que “número oficial de mortos na
tragédia mantém-se nos 64 tendo em conta os critérios estabelecidos” e que,
ante as suspeitas de o elenco das vítimas mortais poder incluir mais 9 (ou 11) pessoas além das 64, se não apurem estes factos duma
vez por todas e as entidades responsáveis se escudem no segredo de justiça,
tantas vezes é violado sem consequências para ninguém e agora, que o interesse
público é claro, teima em manter-se. E é irrelevante que seja o Governo a
entidade competente para esclarecer os factos ou outra entidade representativa
do Estado, mas é o Estado quem tem o dever de informar o povo do que se passa.
Porém,
a ser verdade o que passou para a imprensa, o caso é pior. O Ministério da
Justiça sabia “desde o primeiro momento” da morte por atropelamento duma mulher
em Pedrógão Grande, noticiada, no passado dia 22, pelo Expresso, levantando-se a dúvida sobre o número de mortos da
tragédia provocada pelo incêndio naquela zona.
Além
disso, em comunicado enviado às redações o Governo declara que o Ministério
Público está a averiguar “as concretas circunstâncias em que o acidente de
viação ocorreu” e, tendo em conta os critérios utilizados (Que critérios?!) pelas autoridades para a
contabilização do número de vítimas mortais no incêndio – mortes provocadas
pelo fogo ou por inalação de fumos – este óbito é incluído no número de 64
mortes da tragédia. No mesmo comunicado, o Governo garante que “até à presente
data não foram comunicadas às autoridades (nem estas delas tiveram conhecimento) notícias de mais pessoas
desaparecidas ou mortas, para além das 64”.
As
dúvidas acerca do número de mortos nos incêndios de Pedrógão Grande surgiram
reforçadas após o jornal I ter publicado uma lista com 73
nomes alegadamente de mortos confirmados da tragédia. A lista, elaborada por
uma empresária para a realização dum memorial às vítimas, integra 38 nomes de
pessoas que morreram na EN 236-1, encurraladas pelos incêndios.
Ainda
segundo o aludido comunicado, o IML (Instituto Nacional de Medicina Legal)
“Fez hoje [dia 24] o
levantamento de todos os processos relativos a corpos que deram entrada nos
seus 28 serviços desde o passado dia 18 de junho até à presente data, não tendo
sido obtida qualquer informação adicional relativamente à que já existia e
assim se mantendo a nota da identificação de 64 vítimas mortais”.
***
Como
suporte da decisão de não divulgar qualquer lista com os nomes das vítimas
mortais de Pedrógão Grande, o Governo invoca o segredo de Justiça. De facto, em
comunicado enviado às redações, lê-se que o “Primeiro-Ministro contactou hoje a
senhora Procuradora-Geral da República que confirmou que o segredo de justiça
abrange a lista das vítimas”. Como tal, “a divulgação da lista de vítimas será
feita pelo Ministério Público se e quando o considerar adequado”. Também o
Ministério da Administração Interna reiterou que o número oficial de vítimas
mortais é de 64, tendo em conta os critérios utilizados para a contabilização: morte causada pelas chamas ou inalação de
fumos. E o Governo já veio a público afirmar que “não existe nenhuma lista
secreta”.
Porém,
o caso ganha contornos político-partidários. O Governo continua engaiolado na
sua torre de marfim; Bloco de Esquerda e PCP querem o esclarecimento de todas
as circunstâncias da tragédia incendiária, mas rejeitam tudo o que signifique
chicana política. E o CDS endureceu a sua posição sobre as responsabilidades do
executivo.
Salienta-se, no debate político, o PSD, que parece ter encontrado matéria
consistente para oposição de bandeiras em riste. E não revela o que fará, caso
o Governo não responda ao ultimato para divulgar nomes das vítimas de Pedrógão
Grande.
Na verdade,
ontem dia 24, o PSD deu 24 horas ao Governo para tornar pública a lista
nominativa das pessoas que morreram na tragédia de Pedrógão Grande, exigindo
que sejam explicados os critérios usados para a sua constituição. Disse, a
propósito, aos jornalistas o líder da bancada parlamentar do PSD, Hugo Soares,
em Lisboa:
“O Governo tem 24 horas
para tornar pública a lista nominativa das pessoas que perderam a vida na tragédia
de Pedrógão Grande e esclarecer quais foram os critérios”.
Questionado
sobre o que fará o PSD caso o Governo não responda favoravelmente a este ultimato,
Hugo respondeu que o partido esperará “pela reação do Governo”, acrescentando:
“Eu não quero acreditar
que o senhor Primeiro-Ministro e o Governo estão a fazer gestão política da
tragédia que assolou Pedrógão Grande”.
E foi
perentório:
“Nós não estamos a dizer
que há mais mortos. Nós não queremos acreditar que isso seja possível”.
Interrogado
se este ultimato significa que o PSD vai apresentar uma moção de censura ao
Governo, escusou-se a responder, dizendo cautelosamente:
“Não, eu estou a dizer que
o PSD deu 24 horas ao Governo para apresentar uma lista nominativa”.
Sobre
a consequência do incumprimento desta exigência, o deputado reiterou que o PSD
espera que “o Governo tenha o bom senso, a humildade e a decência democrática
de, em 24 horas, apresentar essa lista”, comentando:
“Eu creio que o país
assistiu atónito a essas declarações do senhor Primeiro-Ministro. Como é que os
familiares e amigos das pessoas que perderam a vida na tragédia de Pedrógão
Grande podem acrescentar nomes a uma lista que não existe?”.
Para
Hugo Soares, António Costa, “esquece-se muitas vezes de que é chefe do Governo”
e que:
“Não serve só para as
horas boas, mas tem que demonstrar autoridade e dar a confiança ao país nos
momentos em que o país mais precisa”.
Por
seu turno, o Primeiro-Ministro apelou a que quem tenha conhecimento de um maior
número de vítimas no incêndio de Pedrógão Grande, em junho, o comunique de
imediato à Polícia Judiciária e ao Ministério Público. E, referindo que “não é
o Governo que constrói a estatística”, informou que são as “autoridades
técnicas” a fornecer os números.
Também
os municípios de Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos sugeriram a
divulgação da lista de vítimas do incêndio de junho para serenar as populações,
enquanto o autarca de Pedrógão Grande apelou a que “os boateiros” sejam
corridos.
***
Por sua vez,
em comunicado, a PGR diz que tem dois processos em curso, um sobre as 64 mortes
confirmadas e um outro sobre a 65.ª vítima, que terá morrido por atropelamento
ao fugir do fogo. Mas admite abrir mais. Assim, todos os casos “vindos a
público, designadamente através da comunicação social”, poderão vir a ser
“objeto de análise e investigação”.
No
comunicado, não é, contudo, claro quando foi iniciado o processo relativo à
65.ª vítima, cuja morte não foi contabilizada como diretamente relacionada pelo
fogo. De facto, começa por referir a informação da Procuradoria-Geral:
“O Ministério Público, no momento em
que teve conhecimento do incêndio de Pedrógão Grande e suas consequências,
instaurou inquérito nos termos legais, sendo as investigações desde logo
iniciadas em estreita colaboração com a Polícia Judiciária (PJ) e a Guarda
Nacional Republicana (GNR) e o apoio do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências
Forenses (INMLCF) e das demais instituições envolvidas. No âmbito deste
inquérito foram identificadas, até ao momento, 64 vítimas mortais”.
Depois,
acrescenta que foi instaurado “outro inquérito com vista à investigação das
circunstâncias que rodearam a morte de mais uma vítima no âmbito de um acidente
de viação”, sem precisar o momento em que tal aconteceu. Aliás, a PGR admite
abrir novas investigações face às notícias sobre mais vítimas que terão ficado
fora da lista oficial por não estarem dentro dos critérios estabelecidos pela
GNR/PJ e INMLCF e pede que lhe sejam enviadas todas as informações sobre o
caso, disponibilizando mesmo uma morada:
“Apela-se a todos os que tenham
conhecimento de quaisquer factos relacionados com os incêndios de Pedrogão
Grande o envio dos mesmos ao Ministério Público, para a seguinte morada:
Procuradoria da República; DIAP de Leiria; Avenida Marquês de Pombal, n.º 1,
1.º e 2.º; 2410-152 Leiria”.
O comunicado
esclarece ainda como devem ser feitos os pedidos de indemnizações cíveis (dos seguros, do Estado ou de outras
entidades). Como o caso
está em segredo de justiça, exige-se “requerimento ao Ministério Público que
autorizará o acesso aos autos, logo que possível, nos termos legais”. O
problema com as seguradoras foi revelado por Marques Mendes no seu espaço de
comentário na SIC no dia 23.
***
O Presidente
da Câmara de Pedrógão Grande defendeu a declaração de calamidade pública sobre
o incêndio para se poder acabar com burocracias que as autarquias têm de
enfrentar. Porém, sendo declarada a calamidade pública, as cláusulas de
contrato de seguros são consideradas nulas, segundo a Lei de Bases da Proteção
Civil, publicada no ‘site’ do Ministério da Administração Interna e consultada
pela agência Lusa, pois, de acordo
com o artigo 61.º,
“Consideram-se nulas, não produzindo quaisquer efeitos, as cláusulas
apostas em contratos de seguro visando excluir a responsabilidade das
seguradoras por efeito de declaração da situação de calamidade”.
Entretanto, o
Governo reconheceu os incêndios que atingiram o centro do país em junho como
uma catástrofe natural ativou um apoio de dez milhões de euros, conforme
despacho publicado no Diário da República, de 24 de julho. E, ao invés do que disse Marques Mendes, a APS (Associação Portuguesa de
Seguradores) referiu que
o facto de o Governo considerar catástrofe natural os incêndios que atingiram o
centro do país em junho não interfere com o processo em curso de pagamento de
indemnizações. Fonte da
APS explicou à Lusa que “o processo
de pagamento das indemnizações decorre com toda a normalidade”, tendo já sido
pagos “largos milhares de euros”. E o assessor Francisco Crujo sublinhou que “o
reconhecimento de catástrofe natural não interfere em nada com este processo”.
O aludido despacho
do gabinete do ministro da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural
“reconhece como catástrofe natural […] o conjunto de incêndios deflagrados no
mês de junho de 2017 nas freguesias da região Centro do país”. Nele pode
ler-se:
“Os incêndios florestais, cujo início se registou no passado dia 17 de
junho de 2017, desencadearam uma série de danos e prejuízos em áreas
localizadas nos concelhos de Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos, Góis,
Pampilhosa da Serra, Pedrógão Grande, Penela e Sertã. A dimensão e gravidade
dos danos e prejuízos causados pelos mencionados incêndios florestais
reconduzem à qualificação desta situação como catástrofe natural”.
Recorde-se
que o incêndio que deflagrou a 17 de junho em Pedrógão Grande, no distrito de
Leiria, provocou pelo menos 64 mortos e mais de 200 feridos e só foi dado como
extinto uma semana depois. Das vítimas do incêndio, pelo menos 47 morreram na
Estrada Nacional 236-1, entre Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos,
concelhos também atingidos pelas chamas.
***
Penso ter
sido positiva a declaração de calamidade pública, mas as seguradoras não
deveriam baixar a parada, bem como todas as restantes entidades privadas que
fizeram e fazem campanha pela angariação de fundos de solidariedade.
Por outro
lado, alguma entidade competente deve esclarecer, quanto antes, o que se passa
com o número rela de vítimas mortais. E o Estado deve mobilizar todos para a
preservação da floresta.
2017.06.24 – Louro de Carvalho
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