Neste dia 11 de julho, o dia de S. Bento, Pai e Padroeiro da Europa, o
Papa Francisco vem presentear a Igreja católica com um instrumento legal que
identifica como via de acesso à beatificação e à canonização a oferta da vida,
colocando-a, nas disposições dos respetivos documentos legislativos, entre a
heroicidade das virtudes e o martírio.
Creio que fica bem àquele que peregrinou ao Santuário de Fátima com o
estatuto assumido de peregrino da luz, da paz e da esperança assinalar deste
modo S. Bento de Núrcia,
a quem o Papa Beato Paulo VI chamou “de missionário da Paz, formador da
unidade, mestre da cultura e, principalmente, grande promotor da vida cristã e
organizador da vida monástica ocidental. Não foi sem razão que Pio XII lhe
chamou Pai da Europa e, consultada a então Sagrada Congregação dos Ritos, tomou
a seguinte posição:
“Declaramos e
constituímos in perpetuum, perante o Deus do Céu, S. Bento como
Padroeiro Principal da Europa, com todas as honras e privilégios litúrgicos que
pelo Direito competem aos padroeiros principais dos lugares”.
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Pela carta apostólica referenciada em epígrafe “Maiorem hac dilectionem”, sobre a oferta
da vida, o Santo Padre abre o caminho à beatificação daqueles fiéis que,
impulsionados pela caridade, ofereceram heroicamente a própria vida pelo
próximo, aceitando de modo livre e voluntário uma morte certa e prematura com o
intuito de seguir Jesus. Para tanto, resolveu, em articulação com a Congregação
para as Causas dos Santos (cujo parecer foi produzido na sua sessão plenária de 27 de setembro de
2016), introduzir
inovações na Constituição Apostólica de João Paulo II “Divinus Perfectionis Magister”, de 25 de janeiro de 1983, sobre a
nova legislação relativa às causas dos Santos [AAS, Vol LXXV (1983, 349-355)] e na
Instrução “Normas a observar nas
inquirições pelos bispos diocesana para as causas dos Santos”, publicada
pela Congregação para as Causas dos Santos, em 7 de fevereiro de 1983 [AAS 75(1983), pp. 396-403].
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O novo documento, além dum introito estribado na afirmação de
Jesus “ninguém, tem maior amor do que
este: alguém dar a vida pelos seus amigos” (Jo 15,13), consta de 6 artigos, sendo que o art.º
5.º procede a alterações a vários artigos da referida Constituição Apostólica. Assim:
Ao art.º 1.º:
“Aos bispos diocesanos ou aos outros
hierarcas a eles equiparados pelo direito, no âmbito da própria jurisdição,
seja mercê do próprio ofício, seja por instância dos fiéis individualmente ou
em legítimas associações ou por meio dos seus representantes, compete o direito
de investigar sobre a vida, as virtudes, a oferta da vida ou martírio e a
fama de santidade ou da oferta da vida ou do martírio,
sobre os possíveis milagres e, eventualmente, sobre o culto antigo de um servo
de Deus, para o qual se pede a canonização”.
Ao artigo 2.º, n.º 5:
“A
investigação sobre presumíveis milagres faça-se separadamente da investigação
sobre as virtudes ou sobre a oferta da vida ou sobre o martírio”.
Ao artigo
7.º, [A cada um dos
relatores compete] n.º
1:
“Estudar,
juntamente com os colaboradores externos, as causas que lhes foram encomendadas
e preparar a Positio sobre as virtudes ou sobre a
oferta da vida ou sobre o martírio”.
Ao artigo 13.º,
n.º 2:
“Se o Congresso julgar que a causa foi
instruída segundo a lei, estabelecerá a qual dos relatores se deve confiar a
mesma; por sua vez, o Relator, ajudado por um colaborador externo, preparará
a Positio sobre as virtudes ou sobre a oferta da vida ou sobre
o martírio, segundo as regras da crítica que devem ser observadas na
hagiografia”.
E o artigo
6.º procede a alterações aos seguintes artigos das “Normas a observar nas inquirições pelos bispos diocesana para as causas
dos Santos”, acima referenciadas:
Ao artigo 7.º:
“A causa pode ser mais recente ou
antiga; diz-se um mais recente, se o martírio ou as virtudes ou a oferta
de vida do Servo de Deus podem ser comprovados por depoimentos orais de
testemunhas oculares; ao invés, diz-se antiga quando as provas do martírio ou
das virtudes ou da oferta da vida podem ser fornecidas apenas por fontes
escritas”.
Ao artigo 10.º, [Juntamente com o libelo de demanda, o Postulador deve
apresentar] n.º 1 – melhor alínea a):
“Tanto nas causas
mais recentes como nas antigas, uma biografia de um certo valor histórico sobre
o Servo Deus, se existir, ou, na sua falta, uma cuidada relação ordenada cronologicamente
sobre a vida e atividades do próprio servo de Deus, sobre as suas virtudes ou
sobre a oferta da vida ou sobre o martírio, sobre a fama da sua
santidade e milagres, sem omitir o que parece contrário ou menos favorável à
própria causa”.
Ao artigo 10.º, n.º 3 – melhor alínea c):
“Só nas causas mais
recentes, um elenco das pessoas que possam contribuir e reconhecer a verdade
sobre as virtudes ou a oferta da vida ou o martírio do
Servo de Deus, bem como acerca da sua fama de santidade ou de prodígios que
podem confirmá-la ou contrariá-la”.
Ao artigo 15.º,
alínea a):
“Recebida a relação, o Bispo entrega
ao promotor de justiça ou a um outro perito tudo o que conseguiu até àquele
momento, para que este possa organizar os interrogatórios úteis indagar e fazer
luz sobre a verdade acerca da vida, das virtudes ou da oferta da vida ou do
martírio do servo de Deus, da fama da sua santidade ou da oferta da vida ou do
martírio”.
Ao artigo 15.º,
alínea b):
“Porém, nas causas antigas, os
interrogatórios dizem respeito apenas à ainda vigente fama de santidade ou da
oferta da vida ou do martírio e se for o caso, o culto prestado ao
Servo de Deus em tempos mais recentes”.
Ao artigo 19.º:
“Para provar o martírio ou o exercício
das virtudes ou a oferta da vida e a fama dos prodígios do Servo de Deus que
tenha pertencido a algum Instituto de vida consagrada, uma parte notável dos
testemunhos apresentados deve ser de estranhos, a não ser que, pela
peculiaridade da vida do Servo de Deus, tal se torne impossível”.
Ao artigo
32.º:
“A inquirição sobre os milagres deve ser instruída separadamente da
inquirição sobre as virtudes ou sobre a oferta da vida ou sobre o martírio
e feita segundo as normas seguem” (vd doc em causa).
Ao artigo
36.º:
“São proibidas nas igrejas celebrações
de qualquer género ou os panegíricos atinentes aos Servos de Deus cuja
santidade de vida está ainda sujeita ao legítimo exame. Também fora da igreja
se devem evitar aqueles atos pelos quais os fiéis possam ser falsamente
induzidos a julgar que a indagação feita pelo Bispo sobre a vida e sobre as
virtudes ou sobre a oferta da vida ou
sobe o martírio traz consigo a certeza da futura canonização do Servo de
Deus.”.
***
Desde tempos antigos, as normas da Igreja Católica
preveem que se possa proceder à beatificação de um Servo de Deus percorrendo uma
das três vias: o martírio (suprema imitação de Cristo com morte violenta in odium fidei), as virtudes heroicas (a vivência das virtudes teologais acima do comum e constante no tempo), e os casos excecionais (conhecida como equipolente). Foi o Papa São João Paulo II que
reconheceu que as crianças tinham a capacidade para o exercício das virtudes
heroicas, tendo sido o Papa Francisco quem procedeu à canonização das primeiras
crianças não mártires: Francisco Marto
e Jacinta Marto. E foi Bento XIV quem
tornou canonicamente possível a figura da canonização equipolente, baseada não
nos milagres, mas na veneração dos fiéis e no culto popular, estribados na fama
de santidade.
As três vias referidas, todavia, resultavam insuficientes
para interpretar todos os casos possíveis de santidade canonizável. Na verdade,
ultimamente, a Congregação para as Causas dos Santos colocou-se a questão “se
os Servos de Deus que, inspirados pelo exemplo de Cristo, tenham livre e
voluntariamente oferecido e imolado a própria vida pelos irmãos num supremo ato
de caridade, que tenha sido diretamente causa de morte, não merecem a
beatificação”.
Trata-se, portanto, de introduzir uma quarta via, que foi
chamada “oferta da vida”. E, embora contenha tenha elementos que a assemelhem
quer à via do martírio, quer à via da heroicidade das virtudes, a via agora
apresentada pelo Santo Padre, tem em vista a valorização de um tipo de
testemunho cristão heroico até agora sem dispor de um procedimento específico, por
não se enquadrar completamente nem na categoria do martírio nem na categoria
das virtudes heroicas. Não se trata propriamente de “martírio” porque não há um
perseguidor e o ódio à fé; e não configura heroicidade de virtude por não ser
expressão de um exercício extraordinário ou prolongado das virtudes. Para
definir com justeza este aspeto, o Motu
Proprio em causa evoca a “morte num período breve de tempo”, o que não
significa morte imediata, mas nem mesmo tão longa a ponto de transformar o ato
heroico em virtude heroica.
A “oferta da vida” não constituía até ao presente uma
categoria específica, mas, se comprovada, era incorporada ou como martírio ou
como virtudes heroicas – o que não fazia jus
à sua verdadeira e específica índole. Mesmo assim, há muito tempo que a Igreja
não exclui das honras dos altares os fiéis que deram a vida num extremo ato de
caridade, como, por exemplo, morrer contagiado com a mesma doença do enfermo
assistido.
A este respeito, o documento pontifício torna-se esclarecedor,
sobretudo no seu artigo 2.º:
“A oferta da vida, para que seja válida e eficaz para a
beatificação de um Servo de Deus, deve responder aos seguintes critérios: a) Oferta
livre e voluntária da vida e heroica aceitação propter caritatem de uma morte certa e decorrida num breve período
de tempo;
b) Nexo entre a oferta da vida e a morte prematura;
c) Exercício, pelo menos em grau ordinário, das
virtudes cristãs antes da oferta da vida e, depois, até a morte;
d) Existência da fama de santidade pelo menos depois da
morte;
e) Necessidade do milagre para a beatificação, ocorrida
depois da morte do Servo de Deus e por sua intercessão”.
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Com este Motu Proprio,
a doutrina sobre a santidade cristã e o procedimento tradicional da
Igreja para a beatificação dos Servos de Deus não apenas não são alterados, mas
também são enriquecidos de novos horizontes e oportunidades para a edificação
do povo de Deus, que vê nos Santos o rosto de Cristo, a presença de Deus na
história e a exemplar atuação do Evangelho.
Nestes termos, o artigo 1.º estabelece:
“A oferta da vida é a nova modalidade do
itinerário percorrido para a beatificação e canonização, que difere da
modalidade da heroicidade de vida e do martírio”.
E o artigo 3.º determina que a inquirição diocesana ou
eparquial, juntamente com a pertinente Positio,
se processa segundo as normas das aludidas Constituição Apostólica e Instrução.
Depois, o artigo 4.º postula:
[que] “a Positio sobre a sobre a oferta da vida
responda à dúvida: se consta da heroica oferta
da vida do [Servo de Deus] até à morte em razão da caridade, bem como das
virtudes cristãs, ao menos em grau ordinário, no caso e para o efeito que estão
em análise”.
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Fica assim exarado
o reconhecimento de que são dignos de singular apreço e honra os fiéis que,
seguindo as pegadas e a vontade de Cristo, ofereceram a sua vida voluntária e
livremente pelos outros e perseveraram neste propósito até à morte. É, pois,
certo que a heroica oferta da vida, sugerida e sustentada pela caridade,
exprime verdadeira, plena e exemplar imitação de Cristo, pelo que é merecedora
da admiração que a comunidade dos fiéis costuma reservar a quem aceitou
voluntariamente o martírio de sangue ou exerceu em grau heroico as virtudes
cristãs (vd parágrafos
preambulares).
Não obstante,
a presente carta apostólica, para melhor compreensão, deve ser lida em
conjugação com os documentos que menciona e altera.
2017.07.11 – Louro de Carvalho
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