quarta-feira, 12 de julho de 2017

Carta Apostólica “Maiorem hac dilectionem”: a nova via de santidade

Neste dia 11 de julho, o dia de S. Bento, Pai e Padroeiro da Europa, o Papa Francisco vem presentear a Igreja católica com um instrumento legal que identifica como via de acesso à beatificação e à canonização a oferta da vida, colocando-a, nas disposições dos respetivos documentos legislativos, entre a heroicidade das virtudes e o martírio.
Creio que fica bem àquele que peregrinou ao Santuário de Fátima com o estatuto assumido de peregrino da luz, da paz e da esperança assinalar deste modo S. Bento de Núrcia, a quem o Papa Beato Paulo VI chamou “de missionário da Paz, formador da unidade, mestre da cultura e, principalmente, grande promotor da vida cristã e organizador da vida monástica ocidental. Não foi sem razão que Pio XII lhe chamou Pai da Europa e, consultada a então Sagrada Congregação dos Ritos, tomou a seguinte posição:
“Declaramos e constituímos in perpetuum, perante o Deus do Céu, S. Bento como Padroeiro Principal da Europa, com todas as honras e privilégios litúrgicos que pelo Direito competem aos padroeiros principais dos lugares”.
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Pela carta apostólica referenciada em epígrafe “Maiorem hac dilectionem”, sobre a oferta da vida, o Santo Padre abre o caminho à beatificação daqueles fiéis que, impulsionados pela caridade, ofereceram heroicamente a própria vida pelo próximo, aceitando de modo livre e voluntário uma morte certa e prematura com o intuito de seguir Jesus. Para tanto, resolveu, em articulação com a Congregação para as Causas dos Santos (cujo parecer foi produzido na sua sessão plenária de 27 de setembro de 2016), introduzir inovações na Constituição Apostólica de João Paulo II “Divinus Perfectionis Magister”, de 25 de janeiro de 1983, sobre a nova legislação relativa às causas dos Santos [AAS, Vol LXXV (1983, 349-355)] e na Instrução “Normas a observar nas inquirições pelos bispos diocesana para as causas dos Santos”, publicada pela Congregação para as Causas dos Santos, em 7 de fevereiro de 1983 [AAS 75(1983), pp. 396-403].
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O novo documento, além dum introito estribado na afirmação de Jesus “ninguém, tem maior amor do que este: alguém dar a vida pelos seus amigos” (Jo 15,13), consta de 6 artigos, sendo que o art.º 5.º procede a alterações a vários artigos da referida Constituição Apostólica. Assim:
Ao art.º 1.º:
“Aos bispos diocesanos ou aos outros hierarcas a eles equiparados pelo direito, no âmbito da própria jurisdição, seja mercê do próprio ofício, seja por instância dos fiéis individualmente ou em legítimas associações ou por meio dos seus representantes, compete o direito de investigar sobre a vida, as virtudes, a oferta da vida ou martírio e a fama de santidade ou da oferta da vida ou do martírio, sobre os possíveis milagres e, eventualmente, sobre o culto antigo de um servo de Deus, para o qual se pede a canonização”.
Ao artigo 2.º, n.º 5:
“A investigação sobre presumíveis milagres faça-se separadamente da investigação sobre as virtudes ou sobre a oferta da vida ou sobre o martírio”.
Ao artigo 7.º, [A cada um dos relatores compete] n.º 1:
“Estudar, juntamente com os colaboradores externos, as causas que lhes foram encomendadas e preparar a Positio sobre as virtudes ou sobre a oferta da vida ou sobre o martírio”.
Ao artigo 13.º, n.º 2:
“Se o Congresso julgar que a causa foi instruída segundo a lei, estabelecerá a qual dos relatores se deve confiar a mesma; por sua vez, o Relator, ajudado por um colaborador externo, preparará a Positio sobre as virtudes ou sobre a oferta da vida ou sobre o martírio, segundo as regras da crítica que devem ser observadas na hagiografia”.
E o artigo 6.º procede a alterações aos seguintes artigos das “Normas a observar nas inquirições pelos bispos diocesana para as causas dos Santos”, acima referenciadas:
Ao artigo 7.º:
“A causa pode ser mais recente ou antiga; diz-se um mais recente, se o martírio ou as virtudes ou a oferta de vida do Servo de Deus podem ser comprovados por depoimentos orais de testemunhas oculares; ao invés, diz-se antiga quando as provas do martírio ou das virtudes ou da oferta da vida podem ser fornecidas apenas por fontes escritas”.
Ao artigo 10.º, [Juntamente com o libelo de demanda, o Postulador deve apresentar] n.º 1 – melhor alínea a):
“Tanto nas causas mais recentes como nas antigas, uma biografia de um certo valor histórico sobre o Servo Deus, se existir, ou, na sua falta, uma cuidada relação ordenada cronologicamente sobre a vida e atividades do próprio servo de Deus, sobre as suas virtudes ou sobre a oferta da vida ou sobre o martírio, sobre a fama da sua santidade e milagres, sem omitir o que parece contrário ou menos favorável à própria causa”.
Ao artigo 10.º, n.º 3 – melhor alínea c):
“Só nas causas mais recentes, um elenco das pessoas que possam contribuir e reconhecer a verdade sobre as virtudes ou a oferta da vida ou o martírio do Servo de Deus, bem como acerca da sua fama de santidade ou de prodígios que podem confirmá-la ou contrariá-la”.
Ao artigo 15.º, alínea a):
“Recebida a relação, o Bispo entrega ao promotor de justiça ou a um outro perito tudo o que conseguiu até àquele momento, para que este possa organizar os interrogatórios úteis indagar e fazer luz sobre a verdade acerca da vida, das virtudes ou da oferta da vida ou do martírio do servo de Deus, da fama da sua santidade ou da oferta da vida ou do martírio”.
Ao artigo 15.º, alínea b):
“Porém, nas causas antigas, os interrogatórios dizem respeito apenas à ainda vigente fama de santidade ou da oferta da vida ou do martírio e se for o caso, o culto prestado ao Servo de Deus em tempos mais recentes”.
Ao artigo 19.º:
“Para provar o martírio ou o exercício das virtudes ou a oferta da vida e a fama dos prodígios do Servo de Deus que tenha pertencido a algum Instituto de vida consagrada, uma parte notável dos testemunhos apresentados deve ser de estranhos, a não ser que, pela peculiaridade da vida do Servo de Deus, tal se torne impossível”.
Ao artigo 32.º:
“A inquirição sobre os milagres deve ser instruída separadamente da inquirição sobre as virtudes ou sobre a oferta da vida ou sobre o martírio e feita segundo as normas seguem” (vd doc em causa).
Ao artigo 36.º:
“São proibidas nas igrejas celebrações de qualquer género ou os panegíricos atinentes aos Servos de Deus cuja santidade de vida está ainda sujeita ao legítimo exame. Também fora da igreja se devem evitar aqueles atos pelos quais os fiéis possam ser falsamente induzidos a julgar que a indagação feita pelo Bispo sobre a vida e sobre as virtudes ou sobre a oferta da vida ou sobe o martírio traz consigo a certeza da futura canonização do Servo de Deus.”.
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Desde tempos antigos, as normas da Igreja Católica preveem que se possa proceder à beatificação de um Servo de Deus percorrendo uma das três vias: o martírio (suprema imitação de Cristo com morte violenta in odium fidei), as virtudes heroicas (a vivência das virtudes teologais acima do comum e constante no tempo), e os casos excecionais (conhecida como equipolente). Foi o Papa São João Paulo II que reconheceu que as crianças tinham a capacidade para o exercício das virtudes heroicas, tendo sido o Papa Francisco quem procedeu à canonização das primeiras crianças não mártires: Francisco Marto e Jacinta Marto. E foi Bento XIV quem tornou canonicamente possível a figura da canonização equipolente, baseada não nos milagres, mas na veneração dos fiéis e no culto popular, estribados na fama de santidade.
As três vias referidas, todavia, resultavam insuficientes para interpretar todos os casos possíveis de santidade canonizável. Na verdade, ultimamente, a Congregação para as Causas dos Santos colocou-se a questão “se os Servos de Deus que, inspirados pelo exemplo de Cristo, tenham livre e voluntariamente oferecido e imolado a própria vida pelos irmãos num supremo ato de caridade, que tenha sido diretamente causa de morte, não merecem a beatificação”.
Trata-se, portanto, de introduzir uma quarta via, que foi chamada “oferta da vida”. E, embora contenha tenha elementos que a assemelhem quer à via do martírio, quer à via da heroicidade das virtudes, a via agora apresentada pelo Santo Padre, tem em vista a valorização de um tipo de testemunho cristão heroico até agora sem dispor de um procedimento específico, por não se enquadrar completamente nem na categoria do martírio nem na categoria das virtudes heroicas. Não se trata propriamente de “martírio” porque não há um perseguidor e o ódio à fé; e não configura heroicidade de virtude por não ser expressão de um exercício extraordinário ou prolongado das virtudes. Para definir com justeza este aspeto, o Motu Proprio em causa evoca a “morte num período breve de tempo”, o que não significa morte imediata, mas nem mesmo tão longa a ponto de transformar o ato heroico em virtude heroica.
A “oferta da vida” não constituía até ao presente uma categoria específica, mas, se comprovada, era incorporada ou como martírio ou como virtudes heroicas – o que não fazia jus à sua verdadeira e específica índole. Mesmo assim, há muito tempo que a Igreja não exclui das honras dos altares os fiéis que deram a vida num extremo ato de caridade, como, por exemplo, morrer contagiado com a mesma doença do enfermo assistido.
A este respeito, o documento pontifício torna-se esclarecedor, sobretudo no seu artigo 2.º:
“A oferta da vida, para que seja válida e eficaz para a beatificação de um Servo de Deus, deve responder aos seguintes critérios: a) Oferta livre e voluntária da vida e heroica aceitação propter caritatem de uma morte certa e decorrida num breve período de tempo;
b) Nexo entre a oferta da vida e a morte prematura;
c) Exercício, pelo menos em grau ordinário, das virtudes cristãs antes da oferta da vida e, depois, até a morte;
d) Existência da fama de santidade pelo menos depois da morte;
e) Necessidade do milagre para a beatificação, ocorrida depois da morte do Servo de Deus e por sua intercessão”.
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Com este Motu Proprio, a doutrina sobre a santidade cristã  e o procedimento tradicional da Igreja para a beatificação dos Servos de Deus não apenas não são alterados, mas também são enriquecidos de novos horizontes e oportunidades para a edificação do povo de Deus, que vê nos Santos o rosto de Cristo, a presença de Deus na história e a exemplar atuação do Evangelho.
Nestes termos, o artigo 1.º estabelece:
A oferta da vida é a nova modalidade do itinerário percorrido para a beatificação e canonização, que difere da modalidade da heroicidade de vida e do martírio”.
E o artigo 3.º determina que a inquirição diocesana ou eparquial, juntamente com a pertinente Positio, se processa segundo as normas das aludidas Constituição Apostólica e Instrução.
Depois, o artigo 4.º postula:
[que] “a Positio sobre a sobre a oferta da vida responda à dúvida: se consta da heroica oferta da vida do [Servo de Deus] até à morte em razão da caridade, bem como das virtudes cristãs, ao menos em grau ordinário, no caso e para o efeito que estão em análise”.
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Fica assim exarado o reconhecimento de que são dignos de singular apreço e honra os fiéis que, seguindo as pegadas e a vontade de Cristo, ofereceram a sua vida voluntária e livremente pelos outros e perseveraram neste propósito até à morte. É, pois, certo que a heroica oferta da vida, sugerida e sustentada pela caridade, exprime verdadeira, plena e exemplar imitação de Cristo, pelo que é merecedora da admiração que a comunidade dos fiéis costuma reservar a quem aceitou voluntariamente o martírio de sangue ou exerceu em grau heroico as virtudes cristãs (vd parágrafos preambulares).
Não obstante, a presente carta apostólica, para melhor compreensão, deve ser lida em conjugação com os documentos que menciona e altera.

2017.07.11 – Louro de Carvalho

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