sábado, 8 de julho de 2017

Um testemunho pelo Cardeal Joachim Meisner

Segundo a Rádio Vaticano e o Zenit org, faleceu na madrugada do passado dia 5, aos 83 anos, o Cardeal Joachim Meisner, Arcebispo emérito de Colónia, na Alemanha, estando de férias na localidade de Bad Fussing. O Arcebispado informou que o cardeal “adormeceu serenamente”.
Pessoalmente, pesa-me que ele fique para a História, não pelos motivos por que devia ficar, mas por integrar o pequeno grupo dos 4 cardeais que escreveram uma carta ao Papa Francisco a pedir esclarecimentos a respeito de 5 pontos (dubbia) da Exortação Apostólica Amoris Laetitia, sobretudo no atinente ao seu capítulo VIII. É óbvio que o fez – creio eu pelo que sei do seu perfil – em nome da sua consciência apurada e não em atitude de rebeldia. Mas, em relação à opinião pública, contam os factos ficando obnubiladas as intenções e os méritos anteriores.
Não o entende assim o Papa Francisco, o qual, ao tomar conhecimento da notícia do falecimento deste príncipe da Igreja, enviou ao Cardeal Rainer Woelki, sucessor de Meisner em Colónia, um telegrama no qual expressa o seu pesar pela imprevista e inesperada morte do cardeal-arcebispo emérito daquela grande diocese da Renânia setentrional. Manifestando a sua proximidade na oração a toda a arquidiocese de Colónia, o Pontífice recorda a fé profunda e o amor sincero à Igreja com que se dedicou ao anúncio da Boa Nova e ao serviço pastoral o cardeal Meisner “pelo bem dos homens do leste e do oeste”.
Francisco refere-se, deste modo, ao percurso episcopal de Meisner, que foi, de 1980 a 1988, Arcebispo de Berlim, que então abrangia tanto o lado oriental como o ocidental da cidade.
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Dom Joachim Meisner nasceu a 25 de dezembro de 1933, em Wroclaw, capital da Baixa Silésia, hoje parte do território polaco, mas pertencente, na época, à Alemanha com a designação de Breslau. Entrou no Seminário de Erfurt, onde realizou os estudos teológicos, diplomando-se em Teologia. Foi ordenado sacerdote em 22 de dezembro de 1962.
Em Erfurt, foi vigário cooperador nas paróquias de Santo Egídio em Heiligenstadt e de Santa Cruz em Erfurt. Também se dedicou à assistência espiritual da Cáritas local e a outras atividades pastorais, até ser nomeado pelo Papa Paulo VI, em 17 de março de 1975, Bispo titular de Vina, com delegação de auxiliar do Administrador Apostólico de Erfurt-Meiningen, Dom Hugo Aufderbeck. A ordenação episcopal foi-lhe conferida a 17 de maio seguinte.
Foi intensa e frutuosa a sua atividade no território da Administração Apostólica “permanenter constituta” de Erfurt-Meiningen, até que, após a morte do Cardeal Alfred Bengsch, São João Paulo II, em 22 de abril de 1980, o transferiu para a Diocese de Berlim – incluindo quer a parte leste como a parte oeste da cidade, assim como toda a circunscrição em redor, com muitas pequenas paróquias e comunidades espalhadas numa área de 30 mil KM2, em cujo território viviam 1,2 milhões de católicos e cerca de 8 milhões luteranos. Meisner residia em Berlim Leste, mas se deslocava para Berlim Ocidental.
De setembro de 1982 a 1989 foi Presidente da Berliner Bischofskonferenz (Conferência Episcopal de Berlim), sucedendo ao Bispo de Dresden-Meissen, Dom Gerhard Schaffran. Em 20 dezembro de 1988 foi nomeado Arcebispo de Colónia (que governou durante 25 anos) e, em 1999, foi Presidente delegado na segunda Assembleia especial para a Europa do Sínodo dos Bispos. Foi criado Cardeal pelo Papa Wojtyla no Consistório de 2 de fevereiro de 1983. Com a sua morte, o Colégio Cardinalício fica assim constituído: 224 Cardeais, 121 eleitores e 103 não eleitores.
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O bem-intencionado do seu perfil pode ser abonado com a seguinte alusão do Il Foglio, que refere o episódio do dia de Natal de 2013, em que Meisner comemorava os seus 80 anos (devendo deixar a diocese no 25 de fevereiro seguinte) com a celebração da Missa – cerimónia interrompida por uma  ativista do Femen fazendo topless na Catedral de Colónia. O Arcebispo relatou ter querido advertir o Papa de que não se envolvesse demais em disputas com o mundo. Mas não o fez pela imprensa ou por carta entregue em Santa Marta, mas pessoalmente. Foi um encontro olhos nos olhos em que pôde “falar livremente ao Santo Padre sobre muitas coisas”. “Disse-lhe que os seus pronunciamentos em forma de entrevistas e declarações breves deixam muitas perguntas sem respostas, que, pelo contrário, deveriam ser explicadas de modo mais amplo”. Francisco terá ficado surpreso e pediu alguns exemplos. E o Cardeal falou do que o Papa disse na viagem de volta de avião do Rio de Janeiro para Roma, nomeadamente, frases sobre a readmissão dos divorciados recasados aos sacramentos, aduzindo que falar muito de misericórdia é perigoso – “Arrisca-se cobrir com essa palavra todas as falhas humanas”. Nesse ponto, o Papa “respondeu de modo muito enérgico que ele é filho da igreja e não disse nada senão reafirmar os ensinamentos da Igreja”. A misericórdia, segundo o que esclareceu Francisco no encontro com Meisner, “deve corresponder à verdade ou não pode ser definida como misericórdia”. Ademais, se houver qualquer questão teológica pendente, “há a Congregação para a Doutrina da Fé”. Assim, para dúvidas ou questões específicas, há Dom Gerhard Müller, o guardião da ortodoxia, aí colocado por Ratzinger e o primeiro a ser confirmado por Francisco.
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E a posição de Meisner sobre a identidade e o devir da Europa, bem como a necessidade de construir pontes, em vez de muros, à boa maneira do Papa argentino, ficou bem marcada na homilia notável que proferiu na missa da peregrinação aniversária a que presidiu, a 13 de maio de 2002, em Fátima, quando pela 1.ª vez era celebrada em todo o mundo como MO (memória obrigatória) a missa de Nossa Senhora de Fátima.
Começou por assegurar que a Senhora ama de tal modo Fátima que não a quer deixar, pelo que “vimos a Fátima para aqui nos encontrarmos com Ela”. Com efeito, “Fátima, em Portugal, Lourdes, na França, Loreto, na Itália, e Czestochowa, na Polónia, são como pontes de Maria no caminho para uma Europa humana comum”.
Depois, lamentou que Deus estivesse a ser “obstinadamente afastado da nova constituição da Europa”, o que, na sua ótica, pode reconduzir “ao abismo do qual a Europa sem Deus se libertou em 1989 e 1990”. E acreditava que isto não passaria “de um boomerang, que não trará qualquer progresso para o caminho de uma Europa unida” – o resultado está à vista! E, frisando a índole mariana da bandeira europeia simbolizada nas “12 estrelas douradas inscritas sobre um fundo azul”, admite que “talvez Deus queira mostrar exatamente, com esta bandeira da Europa, o que falta à sua constituição”. Doutro modo, a bandeira pode a exibir “uma etiqueta enganosa”.
Cristo tem o condão de escolher “as pessoas e coisas apagadas”, para delas fazer os “prodígios da história e com elas realizar os seus milagres”. Assim, tirou José do anonimato e pô-lo como protetor de Maria, para se realizar o grande milagre de todos os tempos, a Encarnação. Da multidão, chamou um jovem para, duma pequena provisão de 5 pães, realizar o milagre que saciou 5.000 homens e encher com os restos 12 cestos. “Também a partir de Fátima, no extremo ocidental da Europa, – dizia o Presidente da Celebração Eucarística – Maria leva de Fátima, através de Roma, o bem precioso da liberdade religiosa até ao extremo leste da Europa, a Rússia”. E as estações intermédias são a Praça de São Pedro, em Roma, onde uma pedra vermelha assinala o lugar do atentado ao Santo Padre João Paulo II, e a Praça Vermelha de Moscovo, donde partirá a liberdade religiosa até à China, no dizer de Meisner.
O mal vence-se com o bem, o que não se faz sem sacrifício e até sem sangue. Sucedeu assim com João Paulo II (como com Jesus no Gólgota na presença da Mãe), na Praça de São Pedro, em Roma, onde Maria, a partir de Fátima, estava presente com a sua força salvadora. Sem João Paulo II, não teriam caído os muros e os arames farpados comunistas, nem teriam sido abertas as prisões e os gulags e persistiria o muro de Berlim a dividir a cidade e a Europa. Para impedir a libertação da Europa do ateísmo histórico, na opinião de Meisner, dispararam-se tiros contra o Papa no dia de Fátima, 13 de maio de 1981. A partir daqui, a Senhora salvou a vida do Papa, para que ele e Ela cumprissem a sua missão de trazer a liberdade à Europa.
Partindo de Fátima e passando pela pedra vermelha de Roma, Maria levou a liberdade religiosa à Praça Vermelha de Moscovo. A catedral do Salvador, junto dessa Praça, destruída em 1917, já se encontra reconstruída, como símbolo da liberdade religiosa, realcançada.
E Meisner, depois de entre parêntesis ter frisado que “a liberdade religiosa é, ao mesmo tempo, a mais vulnerável e a mais importante forma da humana liberdade” e que “o respeito por ela é garantia do respeito de todos os direitos humanos entre as nações”, vaticinava:
“A todos os cristãos da Rússia foi confiado este bem precioso da humana dignidade que, durante quase 80 anos, tinha sido negado àquela querida nação. Agora aos cristãos desse país é confiada a missão de levar a liberdade religiosa à China. Por isso, eles não se podem deixar ultrapassar, no respeito e veneração pela liberdade religiosa, dentro do seu próprio país. Maria quer levar também aos chineses o mais importante dom dos homens – a liberdade religiosa.”.
E, na convicção de que a primeira condição para o cumprimento do desígnio é não ter medo, o Purpurado evocou a recomendação o Anjo a Maria, aquando da anunciação, de que nada receasse (cf Lc 1,30), para aduzir que “o Senhor espera dos Apóstolos a mesma intrepidez, a seguir à Páscoa”, ao dizer-lhes: “Ide a todos os povos, fazei deles meus discípulos. Tende confiança: Eu estou convosco, todos os dias, até ao fim do mundo!” (cf Mt 28,19.20). E, como Maria respondeu intrepidamente à palavra do Anjo, disponível para a aventura de levar Deus ao mundo, através do Filho, também “os Apóstolos levaram o Evangelho ao mundo com valentia e coragem. E, em Roma, na sua primeira missa, na Praça de São Pedro, em 1978, o Papa polaco usou estas palavras: “Não tenhais medo! Abri, abri com violência as portas a Cristo!”. E os videntes de Fátima e os seus conterrâneos têm seguido este mesmo caminho; ao invés, não haveria os milagres de Fátima.
Mas o então Arcebispo de Colónia garantia que Fátima continua a ser necessária, porque a sua mensagem permanece muito atual, pois ainda há, em todo o mundo, muitos mais cristãos perseguidos “do que podemos superficialmente dar-nos conta”. E a Senhora continua a pedir que não tenhamos “medo da escuridão do mundo” e tenhamos confiança na luz do Alto, pois:
“O medo paralisa a dinâmica espiritual e torna a humanidade psiquicamente doente e resignada. Quem olha unicamente para si próprio e para as próprias possibilidades cai no medo e na angústia. Quem busca a proximidade de Deus – como Maria – vê as suas forças espirituais dinamizadas e também, por virtude da graça, é visitado por uma energia que vai muito além das suas possibilidades naturais, e pode então, confessar com o salmista: ‘Com o meu Deus, posso derrubar as muralhas’ (Sl 18,30).”.
Afirmando que, partindo de Fátima, Maria saltou por cima dos muros da Europa (em Berlim, na República Checa, na Hungria e na Rússia), lamentou não ter encontrado uma imagem de Maria a ultrapassar muros, que seria “uma nova variante da Imagem de Nossa Senhora de Fátima”. Com efeito, “ainda existem inúmeros muros nos corações dos homens”, pelo que “Maria ainda tem muito que fazer.
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Depois, volveu o olhar para um outro muro, o das lamentações, no monte do Templo de Jerusalém, na pátria terrestre de Maria, lamentando que esse muro separe do monte do Templo a Cidade Santa e seja uma imagem de um ódio que parece invencível e da incapacidade humana para a reconciliação. E recomenda o acolhimento, no coração, da palavra do Anjo a Maria “Nada é impossível a Deus!” (Lc 1,37), “também relativamente a Jerusalém”, querendo que a Senhora de Fátima alcance de Deus o milagre de vencer os muros também ali, onde o Salvador nasceu da Virgem Maria e, pela primeira vez, pisou a nossa terra. Ora, na Gruta do Nascimento, na igreja de Belém, têm-se ouvido tiros a cada passo, apesar de os anjos terem cantado ao coração dos pastores de Belém: “Paz aos homens (cf Lc 2,14), os de boa vontade”.
É da boa vontade dos homens, à qual a graça de Deus torna possível o impossível, que se trata. Assim, Maria apela hoje como naquele tempo: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2,5). E o Senhor preceitua o amor aos inimigos, fazer bem aos que nos odeiam, rezar pelos que nos maltratam” (Lc 6,27). Não é a pena de Talião, mas o Sermão da Montanha que nos garante a paz na terra, “mesmo na Terra Santa, pela qual nós, cristãos, em todo o mundo, temos grande responsabilidade”. O “Senhor escolheu outrora em Maria a fraqueza para confundir o que é forte”, o que vale, de certo modo, para todos nós. De facto, “a graça multiplica as forças naturais do homem; por isso, podemos dizer com S. Paulo: Tudo posso n’Aquele que me conforta” (Fl 4, 13). Teresa de Calcutá era de pequena estatura, mas trazia “na mão o terço, qual sinal da sua benevolência”, o que fez dela “um vulcão de amor, que mudou positivamente o mundo”.
E aos Portugueses, que “são como que uma terra de Maria”, sobretudo “desde o dia em que a Mãe do Senhor, em 1917, pousou os seus pés em Fátima, disse Joachim Meisner:
“Vós, os Portugueses, tendes de manifestar aos outros Europeus que vale a pena seguir o imperativo de Maria: “Fazei tudo o que Ele (Jesus) vos mandar”. Esta obediência garantirá à Europa e ao mundo inteiro uma cultura da Paz e da Vida. Não tenhamos medo por causa das nossas limitadas possibilidades! Tendes em Fátima a certeza de que Deus pretende, a partir desta extremidade da Europa, levar a liberdade ao centro do Continente; de que Ele quer oferecer a esperança e a confiança em toda a parte da Europa, através das magras possibilidades de uma pequena aldeia, no Centro de Portugal; e de que Ele quer fazer desta aldeia incógnita uma das capitais espirituais da Europa e do Mundo.”.
E o Cardeal avisava que a missão de Fátima se encontra “ainda longe da sua realização”. Por isso, Maria conta com os portugueses, como se fossem “seus conterrâneos”. Nestes termos, o então arcebispo de Colónia afirmou:
“Com a força da vossa oração, com o poder da vossa fé continuais a colaborar para que a paz e a alegria no Espírito Santo se estenda na Europa e em todo o mundo. Pedro, o Santo Padre que está em Roma, na sua missão universal precisa do auxílio de Nossa Senhora de Fátima e das queridas mulheres e homens de Portugal.”.
Por isso, apelou:
“Vós não dececionastes a Europa no passado. Não a dececioneis também hoje e no futuro. Permanecei fiéis à vossa vocação como povo de Maria, para serdes um povo de salvação para todos nós.”.
(cf Leiria-Fátima, órgão oficial da diocese, ano X, n.º 29 – maio/agosto de 2002, pgs 149-152)
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Não concordo nem concordarei com as dúvidas de Meisner sobre a bondade da aplicação do capítulo VIII da Amoris Laetitia, mas não podia deixar no olvido ou nas brumas da memória a preocupação do cardeal, que veio do Leste e dos seus sofrimentos em diálogo com o Ocidente, sobre a identidade da Europa, a sua luta contra os muros sob a égide de Nossa Senhora a saltar muralhas e a obrigação de Portugal em prol da liberdade religiosa – uma nova forma de missão.

2017.07.08 – Louro de Carvalho 

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