Certamente que a agulha, qualquer que seja a sua especificidade, não deve
servir para picar os colegas de estudo em colégio ou seminário e sussurrar:
“hás de ser santo, mas hás de sê-lo à minha custa”. Mas não há dúvida de que
muitos passam a vida da dar umas alfinetadas ou umas agulhadas nos semelhantes,
o que tem de ser ultrapassado, visto não ser recomendável.
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Para prosseguirmos com a reflexão, é conveniente apurar os sentidos da
palavra “agulha” e afins e ver as diferentes modalidades e aplicações do vocábulo.
No sermo eruditus do latim,
agulha dizia-se “acus”; e era, além dos nomes de árvores, uma das poucas
palavras da 4.ª declinação (tema em -u) que pertenciam ao género
feminino [ao todo eram; acus, colus, manus, domus
(com formas da 2.ª e da 4.ª declinação), porticus, idus (usada só no plural),
penus, tribus e quinquatrus (usada só no plural), socrus (sogra), nurus (nora) e anus (velha)]. E era uma das poucas
palavras da 4.ª declinação que faziam o dativo e o ablativo do plural em -ubus
em vez de -ibus. As outras eram: arcus, lacus, partus, pecu, quercus, specus,
tribus, questus, portus e veru (as últimas três faziam em -ibus
ou em -ubus). Era utilizado o diminutivo “acula’, a significar ‘agulhinha’. No sermo vulgaris, entretanto, usava-se
emgeral ‘acula’ a designar a agulha de média dimensão e ‘acucula’ no
diminutivo. E é de ‘acucula’ por
síncope do segundo ‘u’, seguida da palatalização do grupo ‘cl’, que veio a
nossa ‘agulha’. Ora, sendo pequenina, fica ‘agulhinha’ e se for um objeto
terminado em ponta como agulha usado, por exemplo, pelos bombeiros, é a
‘agulheta’.
E o latim possuía um conjunto de termos cognatos de ‘acus’: ‘acuere’ (tornar agudo, aguçado, pontudo), ‘aculeatus’ (que tem agulhas ou aguilhões; pontiagudo, subtil, pontudo), ‘aculeo’ (aguilhão), ‘aculeus’ (aguilhão), ‘acumen’ (ponta, penetração,
acutilância, finura), ‘acuminare’ (agudizar, tornar pontiagudo,
aguçado),
‘acuminatus’ (afiado, aguçado), ‘acus’ (nome masculino
da 2.ª declinação, tema em -o, a significar peixe agulha), ‘acus’ (da 3.ª declinação, tema em consoante, a significar ‘limpeza do grão do
cereal, restolho – que contém as praganas, uma espécie de agulhas), ‘acutare’ (aguçar, afiar), ‘acutatus’ (aguçado, afiado), ‘acute’ e ‘acutum’ (advérbio, a significar ‘subtilmente’; ‘de forma aguda, penetrante, fina), ‘acutela’ (aguçadela, ação de aguçar), ‘acutilis’ e ‘acutus’ (terminado em ponta ou agulha), ‘acutatus’ (aguçado), ‘acutiangulum’ (acutiângulo, ângulo agudo), ‘acutiator’ (o que aguça, amolador), ‘acuties’ (da 5.ª declinação, tema em -e,
a significar acuidade, agudeza), ‘acutule’ (um tanto agudamente,
subtilmente, de forma picante), ‘acutulus’ (picante, cortante, um tanto
agudo, um tanto subtil), ‘acutus’ (agudo, pontiagudo, vivo,
penetrante, picante, violento, subtil, engenhoso, destro) e ‘acutus, us’ (nome a significar ‘ação de aguçar’). – (cf F. Gaffiot, Dictionnaire Latin-Français, Hachette, 1934; F. Torrinha, Dicionário Latino-Português, Maranus,
1945).
Muitas destas palavras passaram quase diretamente para o português e com
semântica muito semelhante, tanto no sentido literal como no figurado.
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Assim e como consta dos dicionários, ‘agulha’
é, em português, um nome feminino aplicado em diversas aceções: 1 pequena
haste de metal, pontiaguda e furada numa das extremidades, para costura e para
suturação; 2 haste cilíndrica (de metal,
marfim, etc.) com uma extremidade arredondada ou em forma de gancho, para fazer
trabalhos de malha; 3 (sentido figurado) ofício de costureira ou de alfaiate; 4 tubo metálico fino e oco,
com uma extremidade pontiaguda, utilizado geralmente para injeções, punções e
extração de líquidos; 5 extremidade pontiaguda; 6 haste pontiaguda
componente ou acessória de vários instrumentos ou aparelhos; 7 lâmina magnética da
bússola; 8 ponteiro de relógio; 9 sistema de carris de ferro
móveis, que serve para desviar um comboio de uma linha para outra; 10
travessa que serve para mover a vara do lagar, pedra pequena e semiaguçada para,
num muro, preencher buraco ou travar as demais; 11 modo de jazida da
rocha vulcânica que se consolidou no interior da chaminé do vulcão que lhe deu
origem e mais tarde se deslocou para o exterior; 12 em ictiologia, peixe-agulha, peixe-espada ou espadarte; 13 em botânica, folha acicular persistente
de certas coníferas como o pinheiro; 14 em geografia, pico ou cume pontiagudo duma montanha; 15 (sentido figurado) sabor picante de certas uvas
e vinhos; 16 em zoologia,
ponto de junção das espáduas em certos animais; 17 em náutica, ‘agulha de
marear’ – bússola própria para orientação marítima; ‘agulha magnética’ – ponteiro magnético, disposto sobre um eixo
vertical em torno do qual gira livremente, que serve para indicar o norte
magnético (um pouco desviado do norte geográfico e
astronómico). Depois, temos a expressão “procurar uma agulha num palheiro”, que
significa: procurar uma coisa quase impossível de encontrar.
No âmbito dos termos cognatos, são de registar os seguintes, que dão uma
panorâmica suficiente das diversas aceções de aplicação do vocábulo ‘agulha’:
‘agulhada’ (ferimento com agulha, porção de linha que se
enfia de cada vez na agulha); ‘agulha-de-pastor’ (planta da família das
umbelíferas também conhecida por erva-agulheira ou erva marisqueira; na Madeira, linha de pesca com anzol); ‘agulhadoiro’ e
‘agulhadouro’ (furo na vara do lagar onde se enfia a agulha da
mesma);
‘agulhagem” (mudança da agulha nos carris da via férrea;
conjunto de carris móveis usados nessa operação); ‘agulhão’ (pequena
bússola de bordo; em ictiologia,
peixe-agulha grande); ‘agulhar” (picar, ferir com agulha;
meter a agulha do lagar no agulhadouro ou a pedra no sítio próprio do muro; em sentido figurado, incitar, afligir,
torturar);
‘agulheiro’ (almofada ou estojo onde se guardam as agulhas;
fabricante de agulhas; abertura estreita e profunda; ralo nos tanque e
chafarizes; buraco nas paredes onde se enfiam os paus dos andaimes ou os
barrotes; encarregado do serviço de agulhas no caminho de ferro; abertura da
parte superior dos fornos cerâmicos por onde se lança o combustível); ‘agulhento’ (adjetivo a designar vinho que tem agulha); ‘agulheta’ (remate
metálico – sem ponta e de fundo relativamente largo – de cordões e atacadores;
agulha grossa para enfiar cordões e fitas; tubo metálico que remata as
mangueiras para dirigir o jato de água; em
linguagem militar, agulhetas de ajudante campo são as insígnias militares
em forma de cordões com pontas metálicas); e ‘agulheteiro’ (fabricante de agulhas ou de
agulhetas). – (cf Dicionário da Língua Portuguesa,
Porto Editora, 2011; e Dicionário Prático
Ilustrado, Lello e Irmão, Editores, 1989).
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Agulha (do latim acucula) é ferramenta utilizada para perfurar
superfícies. Por ser capaz de penetrar facilmente na maioria dos tecidos, é
usada em costura, o ato de unir peças ou entrelaçar fios a fim de criar
uma peça de roupa ou um remendo nalgum tecido. Para cada material que se
pretenda costurar, existe o tipo de agulha mais adequado. Assim, a agulha usada
em cirurgia e enfermagem tem uma configuração diferente da usada em costura
manual.
Antigamente,
a agulha não era plástica ou metálica, mas improvisada em madeira ou osso.
Para costurar
à mão, a agulha a utilizar é uma pequena haste fina de aço, afilada
de um lado e com um orifício (fundo, cu, buraco), pelo qual
se introduz a linha (e, para a empurrar, o dedo costuma ser protegido pelo
dedal) e, para costurar tecidos muito
grossos e resistentes, havia a então chamada agulha da lã, grande e de buraco
largo; para costurar à máquina, temos uma haste metálica afilada e com
orifício na mesma extremidade, sendo que, na outra extremidade existe uma base
que pode ser fixada na barra de agulha da máquina doméstica ou industrial. A agulha,
conforme o tipo de máquina, pode ter haste reta ou curva, além de outros
recursos técnicos para adequação ao que será costurado, por exemplo, ponta de
bola para tecidos delicados ou de malha. Para tecimento, existem as agulhas
de tricô, hastes metálicas revestidas por capa plástica, usadas aos pares para
tecer manualmente tecidos de malha. O diâmetro da agulha é
determinante ao tamanho da cabeça da malha. Para tecimento de croché, existe
a agulha de croché, que é uma haste metálica ou plástica com gancho e
é usada sozinha no tecimento de tecidos de croché, um tipo de malha que só pode
ser feita manualmente. E, para tecimento industrial utiliza-se a agulha de lingueta, com a
extremidade curva em gancho (também chamada cabeça) e a parte móvel chamada lingueta. São usadas em número variável de acordo
com a largura do tecido de malha a confecionar. E, ainda, para tecimento
industrial temos a agulha de mola, que
tem extremidade curva em gancho (cabeça), mas a cabeça é fechada por uma placa que não é parte integrante da
agulha. São usadas em número variável conforme a largura do tecido de malha a
ser tecido. Há agulhas próprias para o ponto macramé e para o ponto de Esmirna.
A título de
exemplo, refira-se o modo de confecionar o tapete de lã em tela de Esmirna:
Deve usar-se
a agulha própria de tapeçaria para dar os nós de Esmirna, uma tela própria (de algodão
forte de rede larga, ou em material sintético, com buracos quadrados de cerca
de 1 cm) e a lã de Esmirna.
Preparados os
materiais necessários, estendem-se sobre uma mesa e começa-se por se embainhar
com uma agulha e uma linha os lados por onde se cortou a tela,
dobrando-os primeiro duas vezes, para a tela não desfiar. Pronto o tapete, rematam-se
as orlas com fio de lã de uma cor a condizer, para fazer um remate de rolinho.
Para
elaborar o nó de Esmirna, a agulha deve ser inserida na tela com a mão direita
por baixo do fio horizontal da tela (de cada quadrado) e puxa-se novamente para
cima. Segura-se, entretanto, o fio de lã com a mão esquerda, dobrando-o ao
meio, e empurra-se para baixo. Em seguida, apanham-se com o gancho da agulha as
duas pontas do fio e metem-se por dentro da argola de fio, puxando para dar o
nó.
Para uso
médico, há a agulha hipodérmica, uma haste metálica ou plástica com um
orifício que vai de uma extremidade a outra, para passagem de fluido. A
espessura (calibre) é
consoante a viscosidade do fluido e o calibre
da veia ou artéria que se quer alcançar. Existem outras
duas formas de uso além da intravenosa, que são a subcutânea e a
intramuscular.
Há ainda o exercício
da acupunctura e o lançamento das agulhas para adivinhação, como por exemplo,
para saber o sexo do nascituro.
E
as agulhas de pinheiro servem, além das funções respiratória e clorofina (fotossíntese) da árvore, para infusões (chás), bons para certas maleitas,
para vinagres, bons substitutos do vinagre balsâmico, para arder no fogo (em
magustos) e para
compostagem (eufemismo contemporâneo para dizer ação de fazer
estrume ou esterco ou adubo orgânico para os solos aráveis). Não é ovo, mas a galinha
pô-lo!
Em suma, hastezinha de aço temperado e polido, aguçada numa
das extremidades e perfurada na outra, por onde passa a linha para coser, ou
fina e oca ou, ainda, maciça – ou uma hastezinha de aço ou outro material para
diversos usos – a agulha é utilizada, como se viu: em costura (manual e mecânica); malha; tapeçaria; tecimento (manual e industrial); sapataria (passa a agulha com
as cerdas pelos buracos abertos pela sovela); suturação, injeção, punção e
extração de líquidos, em cirurgia e enfermagem; adornos (sobretudo em contexto militar); atividade diária em contexto
utilitário; zoologia (sobretudo ictiologia); orientação; orografia;
botânica; ferrovia; construção civil; fogo; adubação; condimentação; medicina
caseira; acupunctura; adivinhação; e, ainda, para tiradas satíricas em termos familiares,
profissionais, sociais e políticos. Até serviu a pregação de Cristo:
“É mais fácil passar um camelo pelo
fundo duma agulha que um rico entrar no Reino de Deus” (Mc 10,25; Mt
19,24; Lc 18,25).
***
Enfim, para quantas coisas serve a agulha!
2017.07.25 – Louro de
Carvalho
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