quinta-feira, 27 de julho de 2017

O texto de Camões no exame de Português do 12.º ano, em 2017 – 2.ª fase

 96




5

Nas naus estar se deixa, vagaroso,
Até ver o que o tempo lhe descobre;
Que não se fia já do cobiçoso
Regedor, corrompido e pouco nobre.
Veja agora o juízo curioso
Quanto no rico, assi como no pobre,
Pode o vil interesse e sede imiga
Do dinheiro, que a tudo nos obriga.
98



20





Este rende munidas fortalezas;
Faz trédoros e falsos os amigos;
Este a mais nobres faz fazer vilezas,
E entrega Capitães aos inimigos;
Este corrompe virginais purezas,
Sem temer de honra ou fama alguns perigos;
Este deprava às vezes as ciências,
Os juízos cegando e as consciências.
 97

10




15
A Polidoro mata o Rei Treício,
Só por ficar senhor do grão tesouro;
Entra, pelo fortíssimo edifício,
Com a filha de Acriso a chuva d’ouro;
Pode tanto em Tarpeia avaro vício
Que, a troco do metal luzente e louro,
Entrega aos inimigos a alta torre,
Do qual quási afogada em pago morre.

 99
25




30
Este interpreta mais que sutilmente
Os textos; este faz e desfaz leis;
Este causa os perjúrios entre a gente
E mil vezes tiranos torna os Reis.
Até os que só a Deus omnipotente
Se dedicam, mil vezes ouvireis
Que corrompe este encantador, e ilude;
Mas não sem cor, contudo, de virtude!

Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto VIII, edição de A. J. da Costa Pimpão, 5.ª ed., Lisboa, MNE/IC, 2003, p. 221

O excerto corresponde às estâncias finais do Canto VIII de Os Lusíadas, e vem complementado pelas seguintes notas explicativas: 
Acriso (v. 12) – rei de Argos que, para impedir o cumprimento da profecia de que seria morto por um neto, prendeu a filha [Dánae] numa torre, porém, Júpiter introduziu-se na torre sob a forma de chuva de ouro e [engravidando-a] tornou-a mãe de Perseu, que veio a assassinar Acriso; “A Polidoro mata o Rei Treício” (v. 9) – quando a cidade de Troia estava prestes a cair em poder dos Gregos, o soberano mandou o filho, Polidoro, com uma considerável riqueza em ouro, ao “Rei Treício”, para que o protegesse, mas este apoderou-se do metal e matou o jovem; cor (v. 32) – aparência exterior; munidas (v. 17) – bem fortificadas; perjúrios (v. 27) – juramentos falsos, mentiras; Regedor (v. 4) – Catual; Tarpeia (v. 13) – jovem romana que, na esperança de obter anéis de ouro dos Sabinos, que sitiavam Roma, lhes abriu as portas da cidade, mas os inimigos não a pouparam [ficou soterrada debaixo do ouro que exigia para se render]; trédoros (v. 18) – traidores.
As indicações entre [] não constam do enunciado.
No texto transcrito – correspondente ao conjunto dos comentários, sentenças, exclamações, lamentos e elogios do poeta (uma vertente que assume a sua importância a par das vertentes da mitologia, da historia de Portugal e da narrativa da Viagem) – o poeta – verdadeiro condutor do discurso épico – faz advertências e tece considerações sobre o vil poder do ouro, que leva à corrupção a outros hediondos crimes.
***
Contextualização
O comentário-dissertação surge quando os portugueses ainda estavam na Índia. Enquanto Vasco da Gama aguardava a resposta do Samorim aos tratados que lhe havia proposto em nome do Rei de Portugal, Paulo da Gama explicava ao Catual, que estava a bordo, as figuras representadas nas bandeiras das embarcações, contando os episódios com elas relacionados: Luso (figura mítica), Ulisses (figura histórico-lendária), Viriato, Sertório, Conde Dom Henrique, Dom Afonso Henriques, Egas Moniz, Dom Fuas Roupinho, São Teotónio, Mem Moniz, Geraldo Sem Pavor, Martim Lopes, o Bispo Dom Mateus, Dom Paio Correia, Dom Nuno Álvares Pereira, Pero Rodrigues, os Infantes Dom Pedro e Dom Henrique, Dom Pedro e Dom Duarte,
Retoma-se assim o plano da História de Portugal, em narração homodiegética, desta vez a cargo de Paulo da Gama. E, voltando ao plano da Viagem, regista-se a retirada do Catual da armada, a audiência de Vasco da Gama com o Samorim e o confronto deste com o Catual. Com efeito, depois da partida do Catual, surgiram novas dificuldades, mais uma vez maquinadas por Baco junto do ex-hóspede da armada portuguesa e do próprio Samorim. Baco aparece em sonhos a um sacerdote brâmane e instiga-o contra os visitantes estrangeiros através da informação de que vieram com o intuito de pilhagem, pelo que era forçoso aniquilar a frota dos ocidentais. É um passo do plano da Mitologia a ilustrar a realidade das intrigas contra os portugueses, tecidas pelos humanos em contexto religioso.
O Samorim interroga Vasco da Gama, que acaba por o deixar regressar às naus. Entretanto, é retido no caminho pelo Catual, que põe como condição para deixar partir os portugueses a entrega das fazendas que traziam: ouro e outros bens, nomeadamente especiarias.
É na real a segunda vez que Vasco da Gama se salva sem a ajuda de Vénus (a primeira foi com o Adamastor em que valeu a postura firme e interpelante da pergunta de Gama ao monstro: “Quem és tu? Que esse estupendo corpo, certo me tem maravilhado!”) nem de mais ninguém, mas só pelos seus próprios meios.
Camões, nas estâncias transcritas, assume uma vez mais a sua postura de condução da espinha dorsal da epopeia no quadro do entretecimento dos mencionados três planos da narrativa (Viagem, História e Mitologia) e constitui-se como a voz do ideólogo e pedagogo humanista em termos do bom senso e da ética, servindo o aviso de correção e de apelo à mudança atitudinal. É a ocasião oportuna para que o Vate teça considerações sobre o poder do ouro, que tudo e a todos corrompe, mesmo os eclesiásticos, “Até os que só a Deus omnipotente Se dedicam”.
Em termos da prova de exame, parece suficiente o enquadramento contextual fornecido para obviar às respostas às três questões colocadas aos alunos:
“Após a chegada a Calecute, os portugueses são recebidos pelo Catual; entretanto, Baco aparece em sonhos a um sacerdote, convencendo-o de que o objetivo dos portugueses era subjugar os indianos. O Catual prende Vasco da Gama e só o liberta a troco de mercadorias trazidas das naus. Finalmente, Vasco da Gama regressa a bordo, onde ‘estar se deixa, vagaroso’.”
***
Análise do texto
O texto transcrito pode dividir-se em duas partes lógicas: a 1.ª abrange a estância 96, em que o Poeta parte do exemplo concreto daquilo que sucedeu com Vasco da Gama para enunciar em tese o poder do dinheiro, que explana nas estâncias seguintes; a 2.ª parte é constituídas pelas estâncias 97 a 99, em que o Vate ilustra com exemplos mitológicos e lendários da Antiguidade a sua tese sustentada proximamente no episódio ocorrido com o Gama e, depois, com situações várias de corrupção transtemporal provocadas pelo perfume do dinheiro.
Assim, na estância 96, o Poeta dirige-se aos que têm a curiosidade de ajuizar, de julgar do bem e do mal, “juízo curioso”, advertindo-os de que devem ver o poder negativo e ilimitado que o dinheiro exerce sobre todos, sem distinção de classes ou de condição social e económica, “quanto no rico, assi como no pobre”.
É de relevar a utilização da primeira pessoa do plural ‘nós’ (a enálage de pessoa), o pronome indefinido ‘tudo’ (a modos de quantificador universal) e o verbo obrigar. Ao incluir o sujeito de enunciação na trama urdida pelo vil metal, o humanista alarga a crítica a todos, incluindo-se ele próprio no barco dos atingidos pela crítica e assumindo-a também para si. Com efeito ninguém, nem aquele que reflete sobre o problema, escapa ao poder aviltante do dinheiro. A palavra ‘tudo’ implica a não exclusão de nada do objeto desta crítica sobre o dinheiro: permitem-se todos os dislates, atropelam-se todos os valores. E o verbo obrigar mostra a situação de arrastamento a que o dinheiro leva quer voluntariamente por força da depravação quer involuntariamente por força do instinto de supremacia, poder e ganância.
- Em relação à 1.ª questão de interpretação do texto levantada na prova, “Relacione o conteúdo da estância 97 com a opinião formulada na estância anterior”, há que responder.
Não se trata de uma simples opinião, mas dum apelo ditado pela sabedoria do raciocínio e da experiência. É um apelo à reflexão ponderada e não a juízos precipitados sobre o que é bom ou mau. É certo que a curiosidade representa uma mais-valia no humanismo, mas ela tem de ser acompanhada pela ponderação e pelo discernimento. Ademais, o apelo-sentença ou advertência surge após a má experiência de Vasco da Gama na relação com os interlocutores que ele considerava estarem de boa-fé, tendo vindo a descobrir que o tal Regedor afinal era “cobiçoso”, “corrompido e pouco nobre” (caraterizado com três adjetivos). Ora, não podendo fiar-se dele, “nas naus estar se deixa, vagaroso”. Há de ser o tempo que lhe descobrirá o que deve fazer.
Assim, na resposta, devem ser abordados, pelo menos, os aspetos seguintes: a explicitação da opinião do Poeta, na estância 96 (prefiro “advertência, apelo, sentença…”) de que “a avidez de dinheiro e de ouro pode levar o ser humano a adotar atitudes condenáveis”; e a referência ao conteúdo da estância 97, “apresentação de situações/exemplos que comprovam a tese/opinião do Poeta.
Na estância 97, o Poeta evoca três situações protagonizadas por conhecidas figuras mítico-lendárias da Antiguidade que comprovam a tese sustentada por si na estância anterior, evidenciando o modo como a avidez de dinheiro e de ouro pode levar o ser humano – rico ou pobre – a assumir atitudes condenáveis, como a traição ou a deslealdade. As três situações evocadas são:
O rei Treício recebe da parte do rei de Troia uma considerável riqueza em ouro para a gerir e proteger Polidoro, o filho do rei troiano. Em vez da garantia da proteção, o rei Treício, movido pela ambição de se apoderar do tesouro, matou o jovem e ficou com tudo para si. Foi a ambição!  
Acriso, rei de Argos, para impedir o cumprimento da previsão de que seria morto por um neto, prendeu a filha Dánae numa torre, mas, Júpiter introduziu-se na torre sob a forma de chuva de ouro e engravidou-a, pelo que ela se tornou a mãe de Perseu, que veio a assassinar Acriso. Foi o medo da morte, a afronta ao destino e o capricho da sedução/violentação sexual!
E a sede do dinheiro levou Tarpeia, jovem romana, na esperança de obter anéis de ouro dos Sabinos, que sitiavam Roma, a abrir-lhes as portas da cidade. Porém, os inimigos não a pouparam e soterraram-na debaixo do ouro que ela exigia para se render. A avareza gerou a traição e a traição gerou a subjugação mortal.
Nas estrofes 98 e 99, repete-se sete vezes anaforicamente o pronome demonstrativo “este”, cujo referente é o “metal luzente e louro”, metáfora de ‘dinheiro’, para enunciar, juntamente com o desfile de antíteses (a mostrar que o dinheiro converte tudo no seu contrário), os diversos efeitos perniciosos do dinheiro, que são os seguintes: “faz render munidas fortalezas”; torna traidores e falsos os amigos (“Faz trédoros e falsos os amigos”); corrompe os mais nobres carateres (“a mais nobres faz fazer vilezas”) e as maiores purezas (“corrompe virginais purezas”); “entrega capitães aos inimigos”; deturpa o conhecimento (“deprava às vezes as ciências”) e entorpece a consciência (“os juízos cegando e as consciências”); condiciona os textos e as leis (“interpreta mais que sutilmente os textos; faz e desfaz leis”); origina as difamações (“causa os perjúrios”); favorece a tirania dos reis (“tiranos torna os reis”) e autoridades equiparadas; degrada, sob a aparência de virtude, até os sacerdotes e religiosos (“Até os que só a Deus omnipotente Se dedicam”).
Enfim, Camões ataca todos os subjugados pelo poder do dinheiro e dos demais bens materiais, nomeadamente: militares, cientistas, governos, clérigos e religiosos.
- Assim, há que dar resposta à 2.ª questão da prova, “ Releia os versos 17 a 28. Explicite três dos valores postos em causa pelo poder do “metal luzente e louro” (v. 14). Apresente, para cada um desses valores, uma transcrição pertinente.
Abordados que foram os diversos efeitos perniciosos do dinheiro, a resposta deve abordar três dos valores que o “metal luzente e louro” põe em causa, cada um deles devidamente fundamentado com uma transcrição pertinente (seguem-se no essencial as indicações dos autores da prova): a lealdade (aos amigos) ea amizade, uma vez que transforma amigos em traidores (“Faz trédoros e falsos os amigos”, v. 18); a fidelidade (à pátria), visto que são traídos os interesses da pátria (“Este rende munidas fortalezas”, v. 17, “E entrega Capitães aos inimigos, v. 20); a bondade/a dignidade, pois transforma pessoas nobres em vis (“Este a mais nobres faz fazer vilezas”, v. 19); a honra/a virtude/a castidade, já que corrompe a própria pureza (“Este corrompe virginais purezas”, v. 21); a verdade, dado que corrompe as consciências e origina enganos e intrigas (“Este deprava às vezes as ciências, / Os juízos cegando e as consciências”, (vv. 23 e 24)/ “Este causa os perjúrios entre a gente”, (v. 27); a justiça, na medida em que as leis são manipuladas de acordo com interesses pessoais (“Este interpreta mais que sutilmente / Os textos; este faz e desfaz leis”, (vv. 25 e 26); a justiça social, porque a ganância promove a tirania (“E mil vezes tiranos torna os Reis”, (v. 28). Talvez o pior seja o atropelo à sanidade do juízo e à lucidez, serenidade e responsabilidade das consciências, que devem orientar as justas decisões, bem como à equidade das leis, que devem proteger a sociedade e o homem dos inimigos do bem comum.  
Entre os versos 17 e 28, o Poeta salienta que o “metal luzente e louro” (v. 14) exerce tal poder no ser humano (“Quanto no rico, assi como no pobre” – v. 6) que o induz a agir de forma indigna e em desconformidade com os princípios que defende. Por um lado, aponta-se a fidelidade à pátria como um dos valores não respeitados, na medida em que são traídos os interesses superiores da nação, o que se constata no verso “E entrega Capitães aos inimigos” (v. 20). Por outro lado, também é corrompida a dignidade do ser humano, já que a ganância consegue transformar pessoas nobres de caráter em pessoas vis, como o comprova o verso “Este a mais nobres faz fazer vilezas” (v. 19). Por fim, observa-se que a ganância promove a tirania, pondo em causa a justiça social, o que é evidenciado em “E mil vezes tiranos torna os Reis” (v. 28).
- Os organizadores da prova trataram à parte, na 3.ª questão, os valores atingidos pelo dinheiro nos vv. 29 a 32: “Interprete o sentido dos versos 29 a 32, enquanto crítica dirigida ao clero”.
Na resposta, devem ser abordados os aspetos seguintes: crítica ao clero, classe que, devendo estar imune ao poder do dinheiro, também se deixa corromper; e constatação de que o clero esconde a sua ganância sob uma aparência de virtude. [Não sei se apenas os clérigos escondem a sua ganância sob a capa da virtude ou se é o fumo do dinheiro e valores materiais e sociais congéneres que aparecem sob a forma de virtude]. A este propósito e por analogia, recordo os versos de António Aleixo:
“Pra a mentira ser segura / E atingir profundidade / Tem que trazer à mistura / Qualquer coisa de verdade”.
Nos versos referidos, o poeta estende a crítica ao clero, classe social que, em princípio, estaria imune ao poder de sedução do dinheiro – “este encantador” (v. 31); todavia, o que se verifica é que, frequentemente – “mil vezes ouvireis” (v. 30) –, [o encantador e virtuoso] “metal luzente e louro” (v. 14) não só corrompe o clero como o leva a agir com hipocrisia, escondendo a ganância sob uma aparência (“cor”) de virtude (v. 32).
Concluindo
A crítica do épico dirige-se à cobiça provocada pelos bens materiais, simbolizados metaforicamente no ouro ou no dinheiro, que leva muitas altas ou muito santas figuras (ou tidas como tais) a inesperadas atitudes iníquas. E este drama não é exclusivo o século XVI. É tão intemporal e transtemporal que se verificou na Antiguidade e campeia nos dias de hoje num feroz capitalismo livre ou de Estado, às escâncaras ou sem rosto, marcado pela ambição do ouro, do prestígio ou do poder, levando tudo por diante qual potente e deletério DC 6. É a tirania letal do poder financeiro a condicionar o poder político e a negar a ergoeconomia, a ecologia e a economia ecológica.
Estejamos atentos!

2017.07.26 – Louro de Carvalho

1 comentário: