Antes de mais, é conveniente proceder
à diferenciação dos conceitos, dado que se trata dum fenómeno de paronímia,
muito embora o étimo das duas palavras “cemento” e “cimento” seja
o mesmo: o nome latino neutro “caementum, i” (que
os dicionários dizem significar: pedra de alvenaria, pedra britada, pedra miúda
ou tosca e outros materiais do alicerce). Cognatas desta são as palavras “caementa, ae”, nome feminino
(a significar: o alicerce da casa ou
os materiais dele); “caementarius,
ii”, nome masculino (a significar: o
pedreiro ou o alvanel); “cementatio,
onis”, nome feminino (a significar: ação
ou ato de cortar, britar, edificar, construir, argamassar…); “caementatus, a, um”, adjetivo triforme da 1.ª classe (a
significar, cortado, construído); “caementitius
ou caementicius, a, um”, adjetivo triforme da 1.ª classe (a
significar: relativo a alvenaria; de alvenaria; feito de pedra miúda, solta e
tosca e com cal, etc.); e “cementare”,
verbo (que significa; cortar, britar,
edificar, construir, argamassar…).
Recorde-se que o termo latino “caementum”
constitui evolução fonética de “caedmentum”, do verbo “caedere” (que
significa: cortar, deitar abaixo pelo corte, esmagar, gravar, abrir a buril, separar,
desbaratar, ferir, imolar, sacrificar, matar…).
Assim, como discorre Joffre
M. de Rezende no artigo “cemento e cimento”, estes dois termos têm origem comum: ambos procedem
do latim “caementum”, como acima se
referiu. Com efeito, os construtores, na Antiguidade, utilizavam, especialmente
para as fundações, base ou alicerce da edificação, pedras fragmentadas e
misturadas com lama.
Segundo
o articulista mencionado, do latim, ‘caementum’ passou, no século XII, para o
francês como ‘cément’ e também na
forma paralela ‘ciment’, a partir de
1573. E, em inglês, há registo da forma ‘cement’,
datado historicamente de 1489, para designar qualquer substância destinada a
unir superfícies sólidas e para o material utilizado nas obturações provocadas
pela cárie dentária. Por sua vez, o Dicionário
da Real Academia Espanhola regista ‘cimiento’,
‘cimento’ e ‘cemento’. ‘Cimiento’, a forma
mais antiga do termo em espanhol, designa alicerce, fundamento duma construção;
‘cimento’, bastante menos usado, é assumido
como sinónimo de ‘cemento’, termo que
se aplica tanto ao revestimento da raiz dos dentes como a qualquer material
ligante. Também, em italiano, ‘cemento’
e ‘cimento’ são termos sinónimos.
Porém,
em português, o verbo ‘cementar’
antecedeu o nome ‘cemento’ para
designar o ato pelo qual o ourives purifica o ouro e outros metais preciosos. Assim,
Domingos Vieira abona os dois termos: ‘cemento’,
na aceção de ‘pedras quebradas’, e ‘cimento’, na aceção de ‘pó de telhas’, ‘tijolos pisados’, que “se mistura com cal para ligar as pedras das
construções”.
Em
1824, em Leeds, na Inglaterra, o construtor Joseph Aspid inventou um processo
de obtenção de uma mistura de calcário com argila que, depois de pulverizada e
calcinada, se transformava num pó com alto poder ligante, a que chamou cimento portland. O nome ‘portland’ deve-se à sua aparência
semelhante à pedra cinzenta extraída na península (dantes,
uma ilha) de Portland
no sul da Inglaterra. Em 1840, Sir Richard Owen, na sua obra Odontografia, denominou e descreveu como
‘cemento’ a camada óssea que reveste
as raízes dos dentes e as une ao ligamento periodontal. A Nomina Anatomica de 1895 (conhecida por BNA por
ter sido aprovada em Basileia, na Suíça)
denominou a predita camada de revestimento das raízes dentárias de substantia ossea dentis, designação que
foi substituída por ‘cementum’ na
edição da Nomina de 1955, conhecida
por PNA (Parisiensia
Nomina Anatomica).
Como bem observou Marcovecchio, houve um erro na escrita do nome latino ‘cementum’, que deveria ser ‘caementum’. E o erro perdurou nas
edições posteriores da Nomina.
Em
histologia, o termo ‘cemento’ é
também usado para designar a substância intersticial que une as células, nomeadamente
as células epiteliais (cemento intercelular).
Podemos,
pois, concluir que ‘cemento’ e ‘cimento’ são formas divergentes ou
alótropas (ou alotrópicas) da palavra latina ‘caementum’. Nas formas divergentes, mercê
da lei da especificação semântica, cada uma tende a adquirir o seu significado
próprio (como
em solitarium, que deu solitário, que
significa isolado, sozinho ou só, e solteiro, que significa ainda não casado). É o que se dá com ‘cemento’ e ‘cimento’, não só em português como também em francês (‘cément’ e ‘ciment’, respetivamente).
Assim, em português, usa-se ‘cemento’
para estruturas anatómicas e ‘cimento’
para todo o produto artificial que tenha propriedades de ligar, aderir, unir,
colar, inclusive os que se usam em tratamentos dentários. Em inglês, os termos
equivalentes para estabelecer a diferenciação são, respetivamente, ‘cementum’ e ‘cement’. E os descritores em Ciências da Saúde da BIREME adotam
para a camada de revestimento das raízes dentárias a designação de ‘cemento dentário’, em português; ‘cemento dental’, em espanhol; e ‘dental cementum’, em inglês. E, para o
material utilizado em tratamentos dentários, adotam a designação de ‘cimentos de ionómeros de vidro’, em
português; ‘cementos de ionómero vítreo’,
em espanhol; e ‘glass ionomer cements’, em inglês. (vd https://www.revistas.ufg.br/iptsp/article/viewFile/13921/8868).
De ‘cemento’
(argamassa com que se quer cementar; substância que
forra o marfim da raiz dos dentes; carvão com que se rodeia um corpo para o
cementar) derivam os termos cognatos ‘cementação’ (ato de cementar; em metalurgia, operação industrial em que uma liga especial
ferrocarbónica, o aço, sofre uma incorporação superficial de carbono que lhe dá
maior dureza; processo pelo qual se introduzem elementos químicos nas camadas
exteriores dos objetos metálicos, por difusão a alta temperatura), ‘cementador’ (que faz
cementação), ‘cementar’ (submeter à cementação; em metalurgia, modificar as propriedades de um metal,
particularmente do ferro, combinando com uma substância, geralmente carvão, por
ação do calor), ‘cementite’ (em química, carbóneo de ferro), ‘cementócito’ (nome dado a células que ficaram aprisionadas na matriz do
cemento – tecido mineralizado que recobre a raiz dos dentes – e são envolvidas
por ele), ‘cementoide’ (camada semelhante à matriz orgânica não
mineralizada que existe na borda do cemento mineralizado), ‘cementoma’ (tumor
de composição semelhante ao do cemento dum dente), ‘cementose’ (hiperplasia
do cemento dentário), ‘cementoblastos’ (células presentes
no ligamento periodontal responsáveis pela produção
do cemento celular e acelular), ‘cementoclasia’ (desintegração ou destruição, por doença, do cemento duma raiz de dente) e ‘cementoso’ (que tem os carateres do
cemento).Em odontologia, ‘cemento’ é um tecido mineralizado
especializado que recobre a superfície da raiz. Tem muitas caraterísticas comuns
com o tecido ósseo do dente, mas o cemento, que não contém vasos sanguíneos
nem linfáticos, não possui inervação e não entra em reabsorção fisiológica
(ou remodelação), é caraterizado por
uma contínua deposição ao longo da vida. Como outros tecidos mineralizados
consiste de fibras colágenas embebidas em matriz orgânica.
O
mineral contido é principalmente a hidroxiapatia com cerca de 60% do
seu peso, um pouco menos que o osso (70%). A maior parte da porção orgânica do
cemento é composta de por colágeno tipo I (90%) e tipo III (em torno de 5 %). As fibras de Sharpey, que constituem uma
porção considerável do volume do cemento, são compostas principalmente
por colágeno tipo I. O tipo III parece recobrir o tipo I das
fibras de Sharpey.
O cemento serve para inserir as fibras do
ligamento periodontal da raiz e contribuir para o processo de reparação após o
dano da superfície radicular.
São
reconhecidos dois tipos de cemento: o cemento
primário ou acelular, que se forma em conjunção à formação da raiz e da
erupção dental; e o cemento secundário ou
celular, que se forma após o dente entrar em oclusão e em resposta às
demandas funcionais, entretanto, áreas com cemento acelular ou celular podem se
alternar na superfície da raiz.
O
cemento celular é formado sobre o cemento primário acelular no
período funcional do dente. Algumas destas células são incorporadas
ao cementoide que, subsequentemente, se mineraliza para formar o cemento.
Assim, estas células aprisionadas no cemento são as denominadas cementócitos e
o cemento celular é apenas encontrado na área intra-alveolar. Os
cementócitos comunicam-se entre si através duma rede de processos
citoplasmáticos que correm por meio de canalículos no cemento, ocorrendo o
mesmo processo para a comunicação entre os cementócitos e os cementoblastos. Os
cementócitos transportam nutrientes para o cemento e contribuem para a
manutenção da vitalidade deste tecido mineralizado. A porção das fibras
inseridas no cemento da raiz e do osso alveolar são chamadas fibras de Sharpey.
***
Quanto
ao termo ‘cimento” e cognatos, os
dicionários registam e definem: ‘cimento’
– 1 mistura em pó de calcário, argila e areia (e outros
materiais) cuja
argamassa adquire muita dureza e resistência, 2 massa que serve para ligar
partes sólidas entre si, 3 substância intersticial nos tecidos do organismo, 4
(sentido
figurado) fundamento, alicerce; ‘cimentação’ – ato ou modo de cimentar; ‘cimentar’ – 1 unir ou cobrir com cimento,
2 argamassar, 3 (sentido
figurado) firmar, consolidar, fundamentar;
e ‘cimenteira’ – 1 local onde é
produzido o cimento, 2 local para coincineração de resíduos industriais que se
transformam em cimento.
Mercê
da importância do cimento portland,
quando falamos em cimento, subentende-se que nos referimos a este produto. Porém,
em ourivesaria e metalurgia permanecem cemento, cementar, cementação para
designar o procedimento de purificar um metal por meio de tratamento químico e
aquecimento em altas temperaturas, por serem tais termos de uso corrente tradicional.
***
Apesar da sua aparência de forte e
seguro, o cimento é substância que se degrada facilmente com a exposição aos demais elementos, pelo que precisa de vistoria assídua e de ser
reforçado ao fim de alguns anos. Mas, para surpresa de muitos especialistas em
estruturas, o cimento das ruínas romanas sobreviveu por séculos e está cada vez
mais forte. O segredo, que esteve escondido por anos, acabou por ser descoberto: os romanos misturavam
cinzas vulcânicas e cal, que, reagindo com a água salgada, criavam novos
elementos cristalinos que fortaleciam a pedra.
Em
época em que era importante defender a cidade para a sobrevivência da cultura
ou da civilização, os romanos criaram o seu cimento de modo a poder ficar mais
forte com o tempo. A tecnologia moderna, por seu turno, faz cimento à base de
elementos inertes, tornando-o vulnerável a erosão natural, com os ventos fortes
ou a água salgada. Depois, para obviar à força de tração e ao stresse, passou a
fabricar-se o cimento ou betão armado (perpassado por estruturas de heliaço) e para edificações
menos exigentes, o betão ciclópico, com materiais mais pobres, bem como, para
lastro do betuminoso, se concebeu a mistura de materiais cimentosos (tout venant).
Por
alguma razão, os arquitetos abominam o restauro, reedificação de obras
arquitetónicas medievais ou rústicas através da pedra e cimento. É que, se os
romanos utilizavam o processo acima evocado, na Idade Média e tempos
subsequentes, a ligação das pedras era feita com uma argamassa feita obviamente
com água, sim, mas pela mistura de cal hidráulica e areia fina. Levava tempo a
solidificar e a consolidar, mas era depois altamente resistente.
Um
grupo de cientistas da Universidade do Utah, nos EUA, afirma ter descoberto a
receita exata dos elementos exatos para duplicar a longevidade do cimento
romano. Eram usados em edifícios como o Panteão ou as Colunas de Trajano, mas
também em fortalezas costeiras. Agora, esta tecnologia pode ser reaproveitada,
especialmente em estruturas aquáticas, e com bastante utilidade, agora que o
nível dos oceanos ameaça subir e engolir as áreas costeiras.
***
Hoje, o
cimento é formado basicamente por uma mistura de argila e calcário (rocha de
carbonato de cálcio), que os
fabricantes denominam de “farinha”. Segundo o químico Carlos Eduardo Tango, do
IPT (Instituto de
Pesquisas Tecnológicas), em São
Paulo, “a mistura é levada ao forno a uma temperatura de 1450ºC, onde fica até
os dois elementos se fundirem”. O resultado são pequenas bolotas que recebem o
nome de clínquer. São acrescidas de gipsita (a matéria-prima do gesso) e, por fim, moídas até ficarem reduzidas a pó. Está
pronta a fórmula básica do cimento. Para endurecer e ser usado em construções,
o pó precisa de receber água, formando uma pasta. As reações químicas que
provocam o endurecimento reduzem a água no interior da pasta, sendo que boa
parte desse líquido também evapora com o calor gerado pela reação. A perda é
tão grande que o cimento pode trincar. Para evitar que isso aconteça, a areia
entra em grande quantidade na mistura. Por ser um material inerte, ela não
reage quimicamente com os outros elementos da fórmula – ao invés, engrossa a
mistura impedindo que o cimento rache. Essa combinação de cimento, areia e água
recebe o nome de argamassa. Mas, quando o volume a ser preenchido é muito
grande, até a argamassa pode trincar facilmente – nesse caso, acrescenta-se uma
brita especial (pedra – principalmente granito - moída) e temos o ‘concreto’.
O pó de cimento é fruto de processo industrial longo e
complexo. São levadas em camiões
à fábrica as duas matérias-primas do cimento (calcário e argila), inicialmente acondicionadas num armazém
ou galpão. Misturam-se e moem-se os
dois materiais são até ficarem reduzidos a um pó fino. O pó obtido é armazenado
em silos para se misturar até ficar bem homogéneo. Leva-se a mistura à torre de
pré-aquecimento, onde é submetida a temperaturas de até 900ºC. Neste enorme
forno cilíndrico rotativo, a uma temperatura de 1450ºC, a mistura de calcário e
argila gira até fundir. Em resultado disso, ela condensa-se em bolotas,
chamadas clínquer. Ao sair do forno,
o clínquer é armazenado num depósito
circular e deixado a resfriar. Está o cimento já quase pronto. Nesta etapa,
basta acrescentar gipsita, o mesmo
material usado para fazer gesso. Mói-se novamente a mistura até ficar em pó. E
o produto final é armazenado em silos e depois empacotado em sacos para
distribuição.
Em
especial para o cimento portland, o calcário e a argila são
moídos finamente e, com eles, prepara-se uma mistura constituída por
aproximadamente uma parte de argila para 4 partes de calcário. Em seguida, a
mistura é cozida até a temperatura de 1450ºC, obtendo-se um material granulado
chamado clínquer portland. O clínquer é então moído com pequena
porção de gesso (+ ou – 5%), sendo o pó fino resultante, de cor cinza, o cimento portland.
Para
obter os diferentes tipos de cimento adicionam-se diversos materiais ativos.
Pense-se
porque é o ‘cimento’ e não o ‘cemento’ que se usa em sentido figurado
e ético!
2017.07. 21 – Louro de Carvalho
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