quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Situações precárias e instáveis dos povos e da Igreja


O Beato João Paulo II esteve em Portugal no ano de 1991 com vários objetivos de que destacou, no ato de confiança a Nossa Senhora de Fátima, pronunciado durante a celebração eucarística de 13 de maio, agradecer “a constante proteção que nos livrou de tragédias e destruições irreparáveis e favoreceu o progresso e as conquistas sociais dos nossos dias”. Porém, apesar de as “mudanças inesperadas” haverem restituído a confiança a povos longamente oprimidos e humilhados”, o pontífice, em jeito de oração à Virgem, lança o seguinte alerta ao mundo inteiro: “As novas situações dos povos e da Igreja são ainda precárias e instáveis. Existe o perigo de substituir o marxismo por uma outra forma de ateísmo, que adulando a liberdade tende a destruir as raízes da moral humana e cristã”. Ao tempo, impressionou-me este alerta e confidenciei esta impressão a alguém que me tem brindado com a sua amizade, o então padre Cândido de Azevedo, hoje monsenhor.
Vêm estas considerações a propósito de a 25 de maio próximo ocorrerem as eleições para o Parlamento Europeu e o mundo, sobretudo o europeu e o que mais de perto envolve a Europa, estar mergulhado naquela situação de “quem morre de fome e sem assistência na doença, de quem sofre injustiças e afrontas,  de quem não encontra trabalho, casa nem abrigo, de quem é oprimido e explorado de quem desespera ou em vão procura o repouso longe de Deus” (isto rezava João Paulo II naquele dia – aviso para quem só descobriu muito recentemente a preocupação social da hierarquia católica). Ao mesmo tempo, criaram-se ocasiões não pouco duradouras de abertura ou reabertura de “novos fossos de ódio e vingança”, parecendo estar o mundo a ceder “à ilusão de um falso bem-estar que avilta a dignidade da pessoa e compromete para sempre os recursos da criação” – previa o papa. 
Face a tais situações e factos, hoje pandemicamente alastrantes, cresce na Europa a avassaladora onda das formações partidárias que negam o projeto de solidariedade europeia (já de si tão fragilizado nos últimos tempos) ou dele duvidam e descreem, propondo soluções políticas discriminatórias eivadas de não oculta xenofobia, de restrições à liberdade de circulação de pessoas, atividades e bens, e de formas alternativas de terrorismo dos Estados ou dos grupos económicos e financeiros, desprezando os ditames fundamentais da ética estribada em princípios axiológicos e promotora dos valores antropológicos. Perante este desenho de conjuntura, que gostaríamos que não se tornasse irreversível, quais têm sido as posições dos deputados ao Parlamento Europeu e, em especial, dos que lá foram colocados pelos votos dos portugueses? A resposta parece ficar pelo “nada de significativo”, pois, as suas atenções têm-se centrado na apreciação crítica e nem sempre coroada de êxito das diretivas a transpor para as legislações nacionais e da elaboração de pareceres e relatórios atinentes àqueles belos projetos carregados de humanismo personalista, igualdade de género, censura a estes ou àqueles povos que desrespeitam os direitos do homem, com tanta retórica e tão pouca força anímica que tudo fica quase na mesma.
Em Portugal, ao aproximar-se o ato eleitoral europeu, um deputado em funções cria um novo partido; um designado cabeça de lista de uma determinada formação partidária, em vez de prometer o acerto da composição da lista que vai liderar e de acenar com as bases do projeto que eventualmente irá defender, exige a imediata designação do seu principal adversário na corrida eleitoral; o partido interpelado apressa-se a proclamar a resposta efetiva à exigência, embora o indicado possa desempenhar suficientemente o múnus de que é incumbido; e o designado pela força partidária mais igual a si mesma lá vai aguentando, contra todas as troikas, o otimismo da futura vitória das classes trabalhadoras na Europa como no presente em Portugal (Sobre a vitória, não dos trabalhadores, mas sobre os trabalhadores atualmente no ativo e sobre aqueles que já estiveram no ativo, já temos dissertado alguma coisa!).
Por motivos, que o diretor do Expresso denomina de “prostituição política”, a Comissão Europeia tem apoiado quase indistintamente as sublevações populares (algumas delas bem radicais), umas vezes, destituintes de órgãos políticos democraticamente eleitos, outras, sem se apresentarem como construtoras de alternativa mais democrática, pacífica e eficaz. Porém, as autoridades europeias, coerente ou oportunisticamente, “condenam”, ameaçando com o não desbloqueamento das “tranches” financeiras inerentes aos programas de ajustamento, todas as manifestações contestatárias das políticas europeias – na Grécia, na França, na Espanha, na Itália, em Portugal – ao mesmo tempo que reiteram hipocritamente o democrático direito de manifestação.
Tendo aludido à proliferação do ataque a regimes com órgãos políticos democraticamente eleitos, às sublevações legítimas que não trazem melhores alternativas, às situações de pobreza alastrante e ao desrespeito pelos direitos humanos, em consequência do referenciado no título, não posso deixar de referir algumas das ondas de perseguição às Igrejas.  
O site http://destrave.cancaonova.com/cristaos-perseguidos/#sthash.qkuZSGNR.dpuf, dá-nos acesso a inquietantes informações de que destacamos as seguintes, embora com aparato discursivo nosso, com algum aditamento de oportunidade:
São perseguidos anualmente pela fé cerca de 105 mil cristãos, superando o número de mártires nos dois últimos séculos os de toda a história do cristianismo, que é mesclada com a história de incontáveis mártires – a poderosa semente de cristãos – que, desde os primeiros séculos até aos nossos dias, testemunham, com o derramamento de sangue, a fé incondicional em Jesus Cristo Filho de Deus Salvador.
A caça aos cristãos começou logo no início do cristianismo. O livro dos Atos dos Apóstolos relata do martírio do diácono Estêvão e do apóstolo Tiago e assinala vários momentos em que os apóstolos foram, insultados, presos e vergastados por causa de Cristo, em cujo nome se gloriavam de sofrer. O próprio Paulo de Tarso, fariseu convicto, de mero guardador de capas de lapidadores se tornara feroz perseguidor. A partir daí, o Cristianismo procedeu paulatina, mas firmemente, à sua diáspora, até que chegou a Roma, onde sob o imperador Nero (64 D.C), sob o pretexto da acusação de ateus (recusavam-se a adorar o divino imperador), incestuosos (tratavam-se por irmãos e casavam), antropófagos (comiam o corpo e bebiam o sangue de um indivíduo chamado Cristo) e idólatras (prestavam culto a um crucificado), se inaugura a onda da tentativa de aniquilação dos cristãos, a qual só terá fim três séculos depois.
“No início, os cristãos precisavam ser bem preparados para assumirem o batismo, porque abraçar a fé, naquela época, significava correr um perigo constante de morte”, afirma o padre Carlo, professor de história da Igreja na Universidade Santa Cruz de Roma.
Porém, falando de perseguições aos cristãos, nada pode se comparar ao Século XX. Atestam-no os mártires provenientes das grandes revoluções e regimes ditatoriais. A Revolução Russa (1917), por exemplo, terá levado à morte cerca de 17 mil sacerdotes e 34 mil religiosos. O bolchevismo espalhado pelo mundo declarou a religião como subversiva e inimiga do Estado, o que levou ao encerramento e destruição de igrejas, conventos e seminários.
Neste século XXI, o número de cristãos perseguidos tende a igualar-se aos do século passado. Segundo o sociólogo investigador David Barrett, no seu livro World Christian Trends AD 30-AD 2200, na primeira década deste milénio, foram assassinados 160 mil cristãos e, na segunda década, calcula-se já o número de 150 mil. 
Porque não se revelam estes dados? “Não é interessante para a mídia divulgar o martírio de cristãos”, diz a missionária do ministério Portas Abertas, um grupo evangélico fundado pelo Irmão André, que tem por missão dar suporte à “Igreja que sofre”. Segundo a missionária – que já visitou países como Cuba, Iraque e Paquistão – os cristãos desses países não possuem, muitas vezes, nem sequer uma Bíblia e vivem a sua fé sob a pressão torturante e letal de grupos radicais islâmicos. “Uma pessoa muçulmana que se converte ao Cristianismo, por exemplo, morre se não voltar atrás, mas, mesmo assim, eles não negam a fé em Jesus”, refere.
Mas os nossos dias inventaram um tipo de perseguição, que não passa necessariamente pelo sofrimento físico ou que leve ao martírio de sangue. Existe outra forma de perseguição que se espalha pelo mundo e por países que, dantes, eram profundamente cristãos. O papa fala hoje do martírio da ridicularização, ou seja, se alguém se denomina cristão no trabalho, na universidade ou coloca um crucifixo no peito, é ridicularizado por alienado, fundamentalista, medieval. Os crucifixos parecem ter-se portado mal e foram, também em Portugal, enxotados para fora da sala de aula.
Um exemplo da secularização equívoca, que redunda em hostilidade, mostra-se na libérrima França, que proscreveu também a burka e o véu islâmico. “Recentemente, a ministra do alojamento francês acabou de pedir, publicamente, que a Igreja devolva imóveis e salas para colocar outras pessoas dentro. O atual governo decidiu voltar atrás no reconhecimento de diplomas dos estudantes sob o argumento de que estas instituições estão ligadas à Igreja e ao Vaticano e não podem gozar dos mesmos privilégios das instituições estaduais”, disse Louis-Marie Guitton, responsável pelo observatório sociopolítico da diocese de Toulon. Também no Brasil, também começa a exibir-se esta modalidade de laicismo. Em março de 2013, a pedido da Liga Brasileira de Lésbicas, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul  determinou a retirada dos crucifixos e símbolos religiosos dos espaços públicos e prédios da justiça. Em novembro, o Procurador Regional dos Direitos do Cidadão, Jefferson Aparecido Dias, pediu a retirada do termo “Deus seja Louvado” das cédulas da moeda brasileira, o Real, com o argumento de que o Estado é laico.
Também, neste aspeto, sigo o argumento já por várias vezes apresentando contra semelhantes atitudes ostentadas em Portugal: o caráter aconfessional, ou mesmo laico, de um Estado não significa que se possa negar nem combater a cultura religiosa do povo. “Nós estamos num Estado cuja maioria da população é cristã, isto significa que ter um crucifixo, por exemplo, num prédio público é respeitar o sentimento religioso desta maioria e também a fé cristã que está impregnada na cultura do Brasil”, diz o especialista em direito civil Aleksandro Clemente. Já para Elizabeth, a referida missionária do ministério Portas Abertas, é preciso que os cristãos do Brasil aprendam com os países que se fecharam ao Evangelho. “Se nós formos ver, os países mais hostis ao Cristianismo, hoje, são aqueles nos quais o Cristianismo era muito forte no início, onde ele nasceu. Nós precisamos de estar atentos às leis que tramitam no Congresso, porque nenhum país se fecha ao Evangelho da noite para o dia, as coisas vão acontecendo devagar”, disse a missionária.
É necessário, de uma vez por todas, acertar nas vias da clarificação: não é desejável, em nome da autonomia das realidades terrestres, a mistura ou confusão entre a esfera dos Estados e a das Confissões Religiosas. Todavia, a secularidade (ou seja a não essencialidade da índole religiosa do Estado) ou o laicismo (a supremacia do caráter popular do Estado sobre quaisquer outras possíveis vertentes) não podem redundar em combate a qualquer religião nem a qualquer irreligião. Se o Estado não pode urgir nem propor uma religião ou um ensino religioso, também não pode impedir a prática e o ensino de uma religião desde que tal seja exigido ou proposto legitimamente. E, se quisermos avançar um pouco mais na linha do respeito dos direitos humanos, então há que adotar o sistema da laicidade positiva e suas consequências, proposta por Sarkozy e Bento XVI, segundo a qual o Estado e a Igrejas cooperam na facilitação do desempenho das tarefas próprias de cada uma das partes: as Igrejas veiculam as justas iniciativas de promoção estatais e o Estado dá espaço e tempo à prática da religião e seu ensino, sem intromissão ou mescla dos diferentes campos.
Para reflexão de todas as pessoas de boa vontade aqui transcrevo um excerto do discurso do referido pontífice em 12 de setembro de 2008, na cerimónia de boas-vindas no Eliseu:

(…) Vossa Excelência, Senhor Presidente, empregou a bela expressão «laicidade positiva» para qualificar esta compreensão mais aberta. Neste momento histórico em que as culturas se entrecruzam sempre mais, estou profundamente convicto de que se tornou necessária uma nova reflexão sobre o verdadeiro sentido e sobre a importância da laicidade. De facto, é fundamental, por um lado, insistir sobre a distinção entre o âmbito político e o religioso, para tutelar quer a liberdade religiosa dos cidadãos quer a responsabilidade do Estado em relação a eles, e, por outro, consciencializar-se mais claramente da função insubstituível da religião na formação das consciências e da contribuição que a mesma pode dar, juntamente com outras instâncias, para a criação de um consenso ético fundamental na sociedade.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Em torno de K e C



Quando escrevi o texto Francisco, “o guardião”?, autopropus-me refletir sobre o que se pode discorrer em torno dos significados das palavras cuja mensagem envolve determinadas questões teológicas. E estas duas letras terão, nesta perspetiva, o seu lugar nesta reflexão. Seguirei de perto o livro de Rómulo Cândido de Souza, então referenciado, mas obviamente com as alterações que o meu jeito e visão pessoal recomendam, a par da minha própria consulta aos dicionários de que disponho.
A propósito da palavra Kefa(s) e seu significado a aplicar ao chefe da Igreja Católica, o interlocutor de Rómulo Cândido de Souza, garante, a partir de uma série de dicionários, que aquele som vogou através dos séculos até aos dias de hoje.
Assim, o hieróglifo egípcio que representa o desenho da “mão” aberta ou em concha, era nomeado com o som D e, mais tarde na escrita, era representado pelo caráter D, pois, a ideia de “mão” era pronunciada d-r-t. Já quando se tratava da mão que protege, cobre, segura ou ampara, a palavra que a significava era kep; e, se era o braço estendido, dizia-se kept; mas a palavra que significava pata de leão (mão firme que afasta os inimigos do clã animal ou os esmaga se eles forem demasiado agressivos) soava kap. E havia palavras com som semelhante que reuniam algumas caraterísticas da mão (como acolhimento, protuberância, reentrância, refúgio, ninho, relicário). Tais são: keb, a significar intestinos, entranhas, vísceras, ventre, útero, interior da pessoa; kabt, com o sentido de seio, mama, teta; geb, a significar urna, vaso sagrado, cofre para restos mortais. Aí, as línguas semitas, que para significarem “mão” tinham palavra iniciada pelo som k, perante o hieróglifo acima referenciado, atribuíam-lhe o dito som k, som que se manteve para esta letra na maioria das línguas clássicas e modernas.
Deste modo, o assírio-babilónio regista kab, para mão que segura e garras de águia, bem como as suas variantes gab, qub e hub. O árabe, tem kaf () para gancho que prende e agarra, montanha sagrada, centro do mundo, nombril ou umbigo. Em sírio, kpá (verbo) significa cobrir, encubar as crias no ninho; kpaya (verbo) quer dizer chocar ou cobrir os ovos com o alento ou calor corporal; kpaká (verbo) tem o sentido de abraçar, agarrar com afeição e com os dois braços; e kapyait (advérbio) abrange os nossos advérbios modais “secretamente” ou “privadamente”. No sânscrito, temos: gup (guardar, proteger, esconder, fugir; secreto, confidencial; cuidado, proteção); gopa (protetor, guarda, defensor, pastor, vaqueiro, guardião); gupta-dhana (tesouro escondido), gupa (gruta, caverna, fonte, poço); e kubja (corcunda, cavo, abobadado).
Entretanto, se nos desviarmos um pouco para um excursus significativo pelas línguas ditas clássicas, encontraremos curiosidades interessantes. Assim, no grego, conceitos similares aos acima referenciados são representados lexicalmente por: kápetos (cavidade, reentrância); kefalê (cabeça); kefálaion (cabeça, fundamento); skáfe (berço); skáfos (navio); skáptos (mina subterrânea); skífos (vaso, taça, jarro, bule, leiteira). E o latim consigna, em seus dicionários, palavras como: capax, a significar “capaz”, ou seja, que agarra, que pega, que pode segurar, que pode conter, que pode prender com a inteligência, bem como palavras da mesma família, como capere (verbo), capedo, capeduncula, capis (respetivamente vaso para sacrifícios, pequeno vaso sacrificial e grande vaso com asas para beber) e caput (cabeça); habere (não esquecer que antigamente o h era aspirado como hoje no alemão e em muitos vocábulos no inglês), com o sentido de ter, segurar com as mãos, prender; habilitas, para habilidade, isto é, possibilidade de agarrar com a mente, com o coração ou com as mãos; e habitus, a significar hábito, ou seja, o que cerca, envolve, bem como a facilidade firme e constante de fazer.
É de notar que as palavras que significam cabeça (no grego, kefalê / kefálaion, e, no latim, caput) e termos similares semanticamente, também abrangem outros sentidos. A cabeça, ao mesmo tempo que é tida como a parte cimeira e mais importante do corpo, é o fundamento das ideias e projetos, sentimentos e emoções (embora tradicionalmente se considere o coração como motor das emoções e símbolo da benevolência); é a sede do juízo avaliativo e da tomada de decisões; é a guarda e resguardo dos dentes, da língua, do cérebro; é espaço de movimentação da língua; é a sede dos olhos e dos ouvidos; das sensações do olfato e dos sabores; é a porta de entrada do ar puro e da palavra ouvida ou lida; é a via de saída do ar saturado e das vozes benéficas ou malédicas; e é o centro aonde chegam todas as informações fautoras de euforia, admonitoras de risco ou perigo, prenhes de emoção e de temperança, e donde partem todas as recomendações de cautela, entusiasmo, de discernimento e de ação.
Mas, depois deste excursus, voltemos ao périplo pelas outras línguas. O inglês regista to have – palavra que provém do latim habere e tenere – no sentido, respetivamente, de ter ou possuir, segurar ou ter na mão (o castelhano tem o verbo “tener” e o francês, o verbo “avoir”); e o alemão tem os verbos haben, para ter, e geben, para dar, oferecer. E o português tem como o latim, as palavras cavo, cavidade, caverna, cofre, cabana, cabo, caber, capaz, capacidade, hábil, habilidade, haver, hábito – com os significados acima expostos. E temos as palavras “capa” e “capote” – do livro, do pastor – para resguardo, proteção, acolhimento, encobrimento (físico ou moral), e coevamente o “capoto” para revestimento exterior da habitação, contra infiltração de águas e de humidades.
Ora, todo este arrazoado vem ao caso do que vimos refletindo. Não basta sabermos que as nossas letras k e c provêm do grego K ou k (kappa), adaptado por seu turno do Kap ou kaf das línguas semitas, símbolo que representava a mão aberta ou em concha (Veja-se como abençoam, com a mão a desenhar no ar o sinal da cruz, os presbíteros, os bispos e o papa – até há pouco tempo, a mão e os dedos estavam em posição diferente conforme o benedicente de que se tratasse). Não basta satisfazermos a nossa curiosidade com a informação de esta letra terá sido adaptada, por sua vez, pelos povos semitas, que teriam vivido no Egito, a partir do hieróglifo que representa “mão”, como já expusemos, ou que, ao serem as palavras provenientes do grego assimiladas pelo latim, o K foi convertido em C ou Ch, mantendo esta língua o uso do K para palavras provenientes do etrusco, como por exemplo Kalendae, “o primeiro dia do mês”, que deu origem à palavra calendário. Não basta acolhermos, de boa mente ou constrangidos, a ideia da evolução das línguas românicas, que utilizam o K apenas em casos muito particulares, como por exemplo, em português, as palavras viking, kantiano, karaté ou Kart, ficando o uso desta letra restrito às abreviaturas, às palavras de origem estrangeira e aos seus derivados.
O nosso escopo, para lá do conhecimento linguístico, é continuar a enquadrar a reflexão produzida com o texto acima evocado Francisco, “o guardião”?.
Se o paralelismo fonético-semântico de kef / kéfas nas diversas línguas mostra a sua raiz no hieróglifo “mão” que acolhe, tapa, segura e protege, mão que oferece um presente, e “pata de leão”, que vigorosamente afasta os inimigos – também mereceu a perenidade da existência nas diversas línguas. A letra K (o “kappa” grego) provém do “Kep” (mão) egípcio, com o entendimento que descremos acima, e do “Kaf” (palma da mão) hebraico; e a letra C nada mais é que uma variante do K, aparecendo como a letra hebraica invertida a significar “concha”, “vaso”, “palma”.
Nestes termos, o pastor de cada comunidade e o pastor dos pastores, na sequência da reflexão constante do texto aludido, há de ter as funções (e promover que a comunidade que lidera também as assuma e exerça de modo ininterrupto e intenso) de: fundamento, passagem, voz, consenso, centro de diáspora para as periferias e centro de convergência a partir das periferias, resguardo dos tesouros mais valiosos, acolhimento, testemunho, proteção, refúgio, envolvimento, sede de movimento e renovação, pontificado entre céu e terra e entre terra e terra, exercício do alpinismo sagrado e deambulação por caminhos não andados.
Mantém total vitalidade o kaf hebraico (palma da mão, mão estendida, mão que acaricia, cavidade da mão, cavo, côncavo, vaso, curva, curvo, montanha sagrada onde o céu se encontra com a terra), com as variantes kafar (cobrir, encobrir, perdoar), kafár (cobertura, teto, lugar, lugarejo, vilarejo, gruta, e cobrir com a capa divina), kapóret (cobertura da arca da aliança), kefór (vaso, vaso sagrado que esconde as relíquias divinas, copo, cântaro), kófer (resina, cola, betume), kafas (reunir, juntar, concentrar), kafash (cobrir), keb (útero maternal onde se desenvolve o embrião da vida), kipá (abraço carinhoso que cerca e envolve), kipáh (ramo, folha de palmeira, folhagem copada da palmeira que, no deserto, dá sombra aos viandantes sedentos do trasncendente), gueb (navio que transporta uma carga preciosa, arca da aliança como lugar privilegiado da presença divina), guéfen (folhagem, ramo, palma), gaf (asa, asa que cobre os filhos de Deus, pena de ave), gafaf (encobrir, ser curvo, encurvar-se), guf (cercar, ser fundo ou cavo), haf (ninho, porto, teto, asilo), hafah (proteger, defender, cobrir, velar), hafa (ocultar, cobrir), hob (seio, útero, entranhas maternas, ninho, proteção, e fecundar, chocar, esconder e guardar um tesouro), hafar (escavar, furar, abrir um poço), héfer (gruta escavada na rocha petrina, cova, poço, cavidade, fosso, braço), hob (ovo, seio, útero, entranhas da mãe, que geram e protegem a criança) e hufah (abrigo, refúgio, proteção). E trata-se de sentidos assumidos originariamente pelo KEFA da misericórdia e do perdão, que reputo de interesse teológico, alguns do quais grifei de modo especial neste parágrafo.
Em vez do poder pelo poder, propõe-se o serviço ou o serviço com poder eficaz; em vez da fiscalização e constrição, a promoção e a liberdade; em vez da omnipotência e da visibilidade, a misericórdia e a discrição; em vez da suma justiça e do rigor, a suma afabilidade e o perdão; e ao lado do Deus que é Aquele que é, o Deus que está sempre disponível.

Assim, a Igreja de Jesus Cristo presente no século XXI será o verdadeiro Kaf hebraico : a palma da mão que detém a capacidade de realizar todo o seu potencial, na via da pulcritude, em prol do homem que veio a este mundo e a quem o Redentor do Homem quer cumular de vida e vida em abundância – em prol do que se encontra o Kefa(s) apostólico incarnado nos pastores.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Os inocentes




A Igreja Católica celebra, a 28 de dezembro, a festa dos santos inocentes, em homenagem à morte daquelas criancinhas que foram imoladas pela inveja sanhosa de Herodes, que se convenceu de que o Rei dos Judeus, a criança acabada de nascer em Belém, lhe iria, muito em breve, tirar o régio lugar.
O mundo atual, eivado em mui grande parte dos valores emoldurantes da tradição cultural judaico-cristã, a cada passo estabelece judiciosas comparações com alguns dos episódios bíblicos. Não me considerando exceção, também eu vou alinhar por esse mecanismo discursivo, já que não sendo eu judeu, às vezes, gosto de pregar as minhas partidinhas de judeu, que os judeus, afinal, não usam praticar.
Vêm à colação factos e afirmações de quem não quer perder o poder ou de quem não quer ser criticado pela forma como o terá exercido. No segundo caso, está o inefável Vítor Gaspar, oriundo dos lados da Beira Serra, de onde têm provindo personalidades de alto gabarito. Mas, enquanto Pina Moura, que fez um longo estágio na pasta da Economia, que acumulou com a das Finanças, onde se curou das maleitas comunistas de antanho, e depois enveredou pelo mundo empresarial ibérico, Gaspar, um nome aparentado com um dos reis magos, veio garantir publicamente que não foi nada o quarto elemento da troika, desmentindo, tarde e a más horas, os bem informados jornalistas da Irlanda. E nós, tão inocentes como ele, vamos acreditar, não sem afirmar que efetivamente não fora o quarto elemento da troika, mas o seu principal elemento. De resto, como é que aquelas águias dispunham de tanta informação do estado das contas portuguesas se os serviços do titular da pasta não prestassem a informação de que nem os portugueses eram detentores? Tenho, é claro, de esclarecer que a troika que ele integrou era a constituída por representantes do FMI, da Comissão Europeia e do BCE, que não a constituída pelo PCP, BE e PEV (que recusaram terminantemente o que denominavam de pacto de agressão), mas a coincidente com o trio que subscreveu o memorandum de entendimento e protocolo complementar – PS (que sofre de amnésia bienal), PSD (que não via inconveniente em governar com o “fmi”, garantindo somente cortar a banhas do Estado, e passou a ir além da troika) e CDS (que viu aqui uma oportunidade de ouro de cumprir a obra de misericórdia de zelar pelos pobrezinhos no meio de irrevogáveis linhas vermelhas).
Quanto aos primeiros, que fazem mais enjoo, são aqueles inocentes que pontificaram no Coliseu dos Recreios, no fim de semana (e não só um dia) de 21 a 23 de fevereiro.
Então não é que o líder do grupo parlamentar do PSD não teve pejo em clamar que o país está melhor que há dois anos e meio, mas as pessoas estão pior! E eu pergunto-me quem é que efetivamente tem a culpa, se o país, se as pessoas. É óbvio que foram as pessoas, as pessoas que têm governado a fazer-nos apertar o cinto em nome das inevitabilidades por que teriam de passar aqueles que viveram acima das suas possibilidades, mas, enquanto estiveram na oposição ou em governos anteriores, emparceiraram no bloco central de interesses a esvaziar as tulherias da nação, a promover crédito fácil, consumo desmedido, investimento público até mais não.
E o venusto presidente do maior partido da maioria veio justificar a ação desenvolvida pela governança até ao momento, em nome do grande interesse nacional, sublinhando o crescimento económico dos últimos tempos, augurando um feliz pós-troika, mas não topando qualquer folga orçamental. E vem proclamar a maior narrativa de que ninguém estava à espera: o partido é socialdemocrata! Tanto quanto me é dado recordar, o partido nunca foi propriamente socialdemocrata (aí é mais comedido Santa Lopes que não abdica da sigla PPD), pelo menos à laia dos países nórdicos ou de Willy Brandt. Como não há memória, segundo o modo como se lamentava Jorge Coelho, as pessoas já não recordam as palavras de Francisco Sá Carneiro, que, uns dias a seguir ao momento da revolução abrilina, referiu à RTP que era necessário organizar um grande partido de centro, o que tentou cumprir com base nas personalidades que constituíram a denominada ala liberal do marcelismo, embora de portas abertas a quem professasse as bases de um são humanismo personalista, num lastro de interclassismo.
Porém, a dinâmica dos acontecimentos, no quadro do PREC, levou a que os partidos que singraram na era revolucionária, com exceção do CDS que sempre insistiu na linha da democracia progressiva ou mesmo progressista), subscrevessem a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista” (vd CRP/preâmbulo), definissem o país como uma república “empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes” (cf CRP, versão de 1976, art.º 2.º) e assegurassem “a transição para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras” (cf id, art.º 3.º). Tanto assim que não tardou que o partido tivesse abandonado o seu cariz popular e se afirmasse socialdemocrata. Nesse sentido, alguns dos partidários clamavam que pretendiam a socialdemocracia, mas não como um objetivo em si – o que uns entenderam que eles almejavam o socialismo através da socialdemocracia e outros se convenceram de que aqueles talvez anelassem por um outro objetivo que naquele período não se afigurava politicamente correto revelar. Marcelo Rebelo de Sousa confidenciou no passado domingo na TVI que Sá Carneiro naquele período “precano” lhe solicitara que elaborasse um discurso de contestação à nacionalização das mercearias e outras lojas de pequena e média dimensão com base em argumentos de inspiração marxista, de que o ilustre comentador se encarregou com sucesso. E, se é verdade que Mário Soares resolveu meter o socialismo na gaveta, para garantir um 2.º governo constitucional em coligação com o CDS, para responder ao repto de Eanes, então Presidente da República, da constituição de uma maioria clara e coerente no Parlamento, não é menos verdade que Sá Carneiro tentou, à direita, a convergência democrática, primeiro, e a AD (aliança democrática), depois; e Cavaco Silva, durante a vigência do seu primeiro governo (o de minoria), não se cansou de bradar urbi et orbi que o seu governo não conseguia fazer as reformas necessárias porque o Parlamento não lhe dava condições, o que lhe favoreceu o granjeamento de duas maiorias absolutas consecutivas. No entanto, conseguiu fazer aprovar a Lei de Bases do Sistema Educativo, que, ao longo dos anos, sofreu apenas três pequenas alterações cirúrgicas.
Porém, regressando à plataforma dos inocentes, há que salientar que ninguém estaria à espera de um congresso socialdemocrata empolgante, a respirar apoteose personalista ou arroubo ideológico. Mas também não se esperaria pelo desfile de ex-líderes, uns silenciosos, a acotovelar o vizinho a significar que também ali estavam, e outros a tomar a palavra a raiar o insólito.
Um a assumir fora de tempo e fora do lugar o ónus pessoal de uma derrota autárquica, quando a sua candidatura correspondia oficialmente à linha das escolhas da direção partidária; outro, com o pretexto de ir saudar o aniversariante coletivo quarentão e mostrar que proclama em congresso o mesmo que prega no púlpito dominical, faz o discurso a pugnar pela liberdade de expressão nos escaninhos da agremiação partidária e subliminarmente a mostrar-se preparado para qualquer eventualidade, em que os mais atentos incluem a corrida presidencial; e outro, ao mesmo tempo que agradece o ensejo que o governo lhe ofereceu de beneficência misericordiosa em favor dos pobres e sem-abrigo, vem rasgar o segredo: estão ali todos amostrar que existem e a indicar que ainda poderia chegar um outro, que só o não teria feito por motivos de agenda.
Finalmente, o cúmulo da inocência aconteceu com a escolha de Miguel Relvas para o conselho nacional – o órgão mais importante do partido entre congressos. Não é de comentar esta inocência despudorada de um ministro que deixou a credibilidade governativa em pantanas, teve de ser substituído por dois outros ministros e se reconverteu à pureza do estadismo em pouco mais de seis meses. Por mais críticos que hipoteticamente possamos ser de Sá Carneiro ou por mais que duvidemos do seu caráter de grande estadista que não teve tempo de revelar, temos de fazer jus à sua probidade política e ao seu sentido do país que todos desejamos que tenha futuro e que não continue a dar o espetáculo da arena política onde tudo ganha foros de cidadania.

É esta a inocência do milagre económico sem efeitos benéficos na vida dos cidadãos, é esta inocência do despudor político que faz dos portugueses objeto de gozo e diversão, é esta inocência sem ética que vilipendia o sacrifício e a seriedade dos portugueses, e é esta inocência tão inestética no painel da cidadania e na via da decência que é necessário denunciar e de que é imperioso abjurar para que a política passe a compaginar a arte de conduzir os povos pela rota da justiça para a esteira da felicidade, estribada na ciência do direito e da antropologia e nos valores axiológicos da ética.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Crença na lei e na justiça



Creio na lei dita igual para todos, – mas que permite e sanciona as desigualdades, os privilégios e o enriquecimento por qualquer meio, tornando uns mais iguais que outros.
Creio na lei que formalmente resulta da vontade das maiorias, – mas nem sempre respeita os direitos de cada um, sobretudo se integrados em minorias, tantas vezes tiranizadas pela partidocracia.
Creio na lei que alegadamente tem em conta a realidade do país, – mas, ao arrepio das maiorias, privilegia o interesse de minorias e o impõe como valor supremo e exemplar, em nome do endeusado progresso civilizacional, contra o crasso e obsoleto obscurantismo.
Creio na lei que, ao nível das metas, promove o bem-estar, – mas explora todas as modalidades de reduzir à expressão mais simples os rendimentos de quem trabalha ou trabalhou, e cava o empobrecimento generalizado de todo um povo, esfacelando as classes médias.
Creio na lei que pede teoricamente os sacrifícios de todos os que não podem eximir-se a eles, – mas deixa engrossar desmedidamente o património de uns poucos, até pela sonegação de impostos ao Estado Português.
Creio na lei que, no papel, exige a qualificação académica e profissional da maioria dos cidadãos, – mas coloca nos lugares de topo filhos, amigos, afilhados e correligionários do bloco central de interesses sem a dita qualificação académica, profissional ou experiencial.
Creio na lei que propala a liberdade e a autonomia de pensamento, expressão, associação, reunião e manifestação, – mas condiciona a segurança no emprego e o exercício profissional a quem ousar pensar e dizer de modo diferente do politicamente correto.
Creio na lei que supostamente preserva a ordem pública, procede às reformas necessárias e exige profissionalismo – mas faz pagar ao contribuinte desmandos de desordeiros, deixa setores consideráveis intocáveis e pactua com a falta de zelo na gestão dos bens públicos.
Creio na lei que a todos considera cidadãos com direitos iguais, – mas discrimina negativamente o setor de trabalho na administração pública, cujos trabalhadores desprestigia com sucessivos cortes salariais, degradação das condições de trabalho e favorecimento do desprestígio profissional e social, multiplicando a existência de burocratas sanduíche, criadores do desconforto e da precariedade, através de vários meios, inclusive certa avaliação de desempenho.
Creio na lei que eleva aos píncaros da cidadania a eleição democrática de representantes, – mas só permite o voto em quem se sujeite ao aparelhismo partidário.
Creio na lei que proclama o voto em consciência nos órgãos colegiais, – mas impõe a disciplina de voto quando tal se torna conveniente para a manutenção do status quo ou para alterações fundamentais do painel dos padrões democráticos.
Creio na lei provinda de deputados responsáveis, – mas que votam ao sabor de interesses setoriais quando estão em causa graves questões de governabilidade.
Creio na lei que proclama a soberania nacional e entende que o poder político reside no povo, – mas não referenda a alienação internacional de relevantes aspetos da soberania nacional.
Creio na lei aprovada por legítimos deputados do povo, – mas cujos interesses profissionais nunca deixam de estar presentes.
Creio na lei elaborada por uma assembleia eleita democraticamente, – mas cujos apreciadores são deputados provenientes de partidos cujos líderes (não todos, é claro), de vários patamares, investiram na obtenção do favor popular através da simpatia, das promessas e do dinheiro.
Creio na lei que, na sua letra, aceita candidaturas de cidadãos independentes para os órgãos do poder autárquico, – mas as rodeia de uma fatia de exigências burocráticas tal que, em muitos casos, elas ficam pelo caminho.
Creio na lei que é em tudo rigorosa e clarividente, – mas faz equivaler ao estatuto de independente a situação daqueles que, por motivos justos ou duvidosos, são na realidade dissidentes partidários.
E, por consequência,
Creio na justiça que tem demasiado em conta a realidade nacional, – mas produz sentenças e acórdãos de sentido contrário sobre matérias similares, para não mencionar todo o aparato de autoridade judicial.
Creio na justiça a que todos têm acesso, – mas os remediados e os pobres, a não ser que sejam mesmo indigentes, não têm possibilidades de a ela aceder.
Creio na justiça que funciona sempre, – mas que recusa proceder à audiência de julgamento enquanto não se pagar o imposto de justiça e as custas judiciais em atraso.
Creio na justiça que acredita no cidadão e nas suas potencialidades, – mas exige que ele se faça representar por causídico a quem tem de pagar e através de quem o cidadão satisfaz os seus encargos com a justiça, e não de outro modo.
Creio na justiça que dá garantias a todos, – mas sonega a defensores oficiosos a consulta prévia do respetivo processo, enquanto aos ricos e poderosos permite a exploração de todos os meios de dilação.
Creio na justiça equitativa, – mas quem puder dispor de elevada quantia de caução (em dinheiro ou em garantia bancária) pode ser dispensado da prisão preventiva.
Creio na justiça ministrada em nome do povo, – mas em ambiente de tribunal altamente inibidor para testemunhas inexperientes e público em geral.
Creio na justiça sempre disponível, – mas que tudo faz para evitar agir, podendo penalizar quem se exima à aceitação de acordo.
Creio na justiça ministrada somente em consideração da lei, – mas com dissertações inoportunas sobre a vida das pessoas ou com reprimendas ao ambiente familiar, à procuradoria ou às polícias.
Creio na justiça discreta, – mas que gosta do espetáculo.
Creio na justiça ágil, – mas que se torna excessivamente morosa e cujo efeito fica altamente minorado.
Creio na justiça justa, – mas que penaliza mais a vítima que o infrator, aquele que se defende que aquele que ataca.
Creio na justiça eficiente e eficaz, – mas célere para quem desvia uma embalagem de açúcar ou de leite no supermercado e lenta ou nunca vinda para a grande corrupção ou o grande crime, que ou não se consegue provar ou que prescreve.
Creio na justiça ministrada por operadores independentes e imparciais, – mas dificultam, por vezes, a apensação de peças ao processo respetivo e revelam dificuldade em mobilizar, em prol da decisão justa, todos os saberes disponíveis na comunidade científica.
Creio na justiça como serviço e configuradora de um poder soberano, – mas que deixou confundir a prevalência das decisões judiciais transitadas em julgado com a extrema dificuldade do cidadão em lançar um olhar crítico sobre o sistema e sobre as decisões, alijando frequentemente a responsabilidade para os políticos, como se os magistrados o não fossem também (vd CRP, organização do poder político, onde se leem também os artigos atinentes aos tribunais e aos magistrados).
Creio na justiça de poderoso efeito, – mas que, por vezes, se limita a decretar a perda de mandato, ou, preventivamente, contacto com as vítimas em casos como o da violência doméstica, ou com os comparsas, em casos como o de gestão danosa.
Creio na justiça que busca a verdade e só a verdade, – mas se prende literalmente a determinados formalismos e ajuramenta as pessoas somente em nome da honra sem a admissão democrática de outros valores como suporte de ajuramentação.
Em face do objeto precário destas “ingénuas e crédulas crenças”,
Creio firmemente, na justiça e na lei, mas divinas, porque não o li, dado que a minha catequese paroquial foi rodada sobre catecismos editados por Monsenhor Amílcar Amaral e na denominada Bíblia das Escolas, mas, em casa, quando eu ainda não sabia ler e só decorava, me ensinaram a dizer que Deus, além do Ser Infinitamente Perfeito e Criador e Senhor do Céu e da Terra, é o nosso “legislador e remunerador” – verdade que a Teologia e a Filosofia Escolástica ainda não desmentiram. Este, sim, segundo a lei, mas a lei dos filhos de Deus; e segundo a justiça, mas não a dos homens – talvez porque não precisou do favor popular para ser quem é e estar onde está ao lado do homem que o queira reverenciar, servir e amar! 

Dom António Francisco dos Santos



O atual bispo de Aveiro, oriundo do clero da diocese de Lamego e depois de ter desempenhado o múnus de bispo auxiliar de Braga, foi nomeado bispo do Porto pela Santa Sé, no passado dia 21 de fevereiro. Esperada ou surpreendente, trata-se de uma provisão perfeitamente normal, pelo que se estranha quer a falsa prolação que, pelos vistos, dois jornais diários terão produzido pela quase certa designação de outro nome para antístite da diocese portuense, quer o reparo feito pelo semanário diocesano sediado na urbe visada em termos de espanto mal digerido, não sei se por causa do nome aventado, se pelo simples facto de a sua redação não haver sido contactada – diligência a que presumivelmente teria direito – ou ainda de pelo facto de, consultada a agência Ecclesia e o site do Vaticano, a respetiva redação nada ter encontrado no sentido da confirmação ou no do desmentido.
O certo é que a nomeação surgiu, foi divulgada e não se fizeram esperar nem os votos de congratulação da parte dos confrades na sucessão apostólica nem da estrutura diocesana que o vai acolher, bem como o elogio de autarcas e as saudações do bispo em transição da diocese de Aveiro, dedicada à Beata Joana e restaurada há 75 anos, para a vetusta diocese cuja cabeça é a cidade invicta ou a cidade da Virgem da Vandoma. Em tudo isto, é de anotar que um grupo de sacerdotes do clero aveirense terá ainda diligenciado no sentido de, à última hora, conseguir travar o intravável, o recuo tático da Santa Sé, mediante a Nunciatura Apostólica. A resposta “sacra” terá sido a da obediência ao Santo Padre, quando se sabe que o responsável material pela nomeação, evidentemente subscrita por Sua Santidade, é o Núncio Apostólico enquanto representante diplomático da Santa Sé junto da República Portuguesa (o papa Francisco não deixou de oportunamente fazer recomendações aos seus diplomatas sobre a escolha dos bispos, insistindo na adequação de perfil), ouvidas as entidades habituais, de que se destaca a Conferência Episcopal.
Ora, se o habitual processo de nomeação dos bispos merece reparos, nunca percebi qual o motivo por que o assunto, no quadro da colegialidade, não cai a sério e serenamente na mesa da discussão das conferências episcopais, do sínodo dos bispos, das agremiações do clero ou das associações laicais. Em contrapartida, o problema aflora, a meu ver, indevidamente em casos tão pontuais e quase sempre sobre o acontecimento. Lembro-me de que, quando um determinado sacerdote foi eleito bispo de Lamego, aliás administrador apostólico sede plena e bispo coadjutor, assumindo a diocese de pleno direito com o pedido de resignação do antecessor, se desenhou um ténue movimento de recusa, que não surtiu efeito. Alegava-se que se tratava de um sacerdote de gabinete, com uma certa idade e sem experiência pastoral. Fico a pensar que experiência pastoral detinha um recém-ordenado que era catapultado para uma paróquia logo a seguir aos estudos ou muitos dos que chegavam ao episcopado sem nunca terem sido párocos ou desempenhado funções congéneres e até João Batista Montini, o futuro papa Paulo VI, quando foi provido na arquidiocese de Milão (E como ele exerceu por lá o seu múnus episcopal!). Mas também um outro bispo, então auxiliar, depois residencial e agora emérito, em 1996, em Fátima, num encontro de sacerdotes, a partir a mesa a que presidia, ouviu uma crítica à forma como são designados os bispos. Por outro lado, quando o atual bispo da diocese de Viseu foi nomeado, também surgiram reparos públicos, porque era oriundo da respetiva diocese (como se fora o primeiro caso) e porque não passara antes como bispo auxiliar de outra diocese, como se fosse comparável ao vinho da madeira estragado que necessitasse de primeiro ir dar uma volta! 
É óbvio que recuso o facto de se contestar um processo de provimento, embora com boas razões, sobre o acontecimento e em torno de uma pessoa em concreto ou depois de tomada uma decisão, para mais já publicamente assumida. Depois, não aceito que a contestação a uma personalidade concreta, por mais legítima e razoável que seja, se escore em argumentos não sustentáveis.
Quanto a Dom António Francisco, se dúvidas tivesse havido sobre a sua capacidade de liderança pastoral, a sua passagem pela diocese de Aveiro tê-las ia dissipado. Se não, vejamos: é inatacável a cultura da proximidade que demonstrou, sobretudo acompanhando, vendo e ouvindo, venerando, acolhendo iniciativas, despertando outras; não se descuidou em proceder às visitas pastorais de forma arejada, eficaz e mobilizadora; tomou iniciativas emblemáticas como as tendas de praia, as cristotecas, a missão jubilar, a valorização das festas da padroeira diocesana; o espírito e atitude de fraternidade com que manteve a convivência assídua e possibilitou a palavra discreta e/ou pública aos antecessores; e encarou exemplarmente a dimensão da solicitude pastoral pelas outras Igrejas, não se fechando no seu mundo, mas comparecendo aonde era razoavelmente solicitado e desempenhando cabalmente as funções que lhe foram atribuídas nas diferentes comissões episcopais que integrou e/ou a que presidiu. Gostei de ouvir e reler o texto que pronunciou em saudação a Bento XVI, em Fátima a 12 de maio de 2010. Mais: continuou ou criou escola de lucidez na diocese. A título de exemplo, gosto de recordar que a pessoa que melhor avaliou analiticamente o pontificado de Bento XVI, do meu ponto de vista, terá sido a diretora do Secretariado Diocesano da Pastoral Juvenil e Vocacional de Aveiro, Ondina Matos.
De resto, que pode esperar a diocese do Porto do seu novo bispo? Não lhe bastará o seu eloquente e humilde propósito, não sei se antoniano se franciscano, contido nas suas palavras “Levo comigo o modo próximo de ser e de viver, a alegria convicta da fé e o desejo fraterno de a todos olhar com os olhos de Deus, para a todos servir como Deus quer e ama”? Medite-se ainda o desdobramento pragmático deste propósito: “
Quero dirigir uma palavra de muito afeto às crianças, aos jovens e às famílias. Serei irmão e presença junto dos doentes, dos pobres e dos que sofrem e com eles procurarei fazer caminho de bondade e de esperança na busca comum de um mundo melhor. Quero ser apóstolo das Bem-Aventuranças nestes tempos difíceis que vivemos. Sei que é grande a missão que agora me é confiada, mas vou com alegria e generosidade ao vosso encontro para amar a Deus e vos servir. (vd saudação à diocese do Porto).

Depois, não será de meditar a sua docilidade e abnegação em seguir o ditame profético – de escuta permanente da vox Dei, da cintilação da liderança solidária e da perceção do sensus ecclesiae – expresso na certeza por si enunciada “Sei que é ao Santo Padre, como Bispo de Roma e Pastor Universal da Igreja, que compete dar Pastores a todas as Igrejas. Lembrei nesse momento a Palavra de Deus ao Profeta Jeremias: “Irás aonde Eu te enviar” (Jer 1,7) – id et ib.
Finalmente, iremos encontrar neste bispo, que merece parabéns e que precisa da oração ardente da Igreja, da cooperação solidária e do aconselhamento leal, os predicados que Dom José Manuel Cordeiro topou em Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, o tridentino beato arcebispo de Braga: em termos de perfil, “pureza de intenção, conversação santa e irrepreensível, humildade interior e sincera”; em termos de atitude, “coragem da esperança”; e em termos de programa, “a caridade, a sabedora, a retidão e a justiça” (cf Ecclesia, 2014/02/22).
Oxalá que ninguém nem nenhum facto desminta a disponibilidade que o diretor-adjunto do núcleo do Porto da Faculdade de Teologia manifestou em nome da comunidade: “Vamos recebê-lo como um sinal, uma dádiva, alguém que faz a ligação à Igreja Universal e quem vem certamente cheio de boa vontade para capacitar e potencializar as capacidades desta grande diocese que lhe compete governar agora”.
Assim seja – e que este homem santo reze e suscite oração, que este homem sabedor ensine e promova o conhecimento, que este homem prudente governe de modo que os conteúdos da oração da fé se tornem obra!


A cátedra de Pedro




Passou ontem, 22 de fevereiro, a festa da cadeira de São Pedro. Era já celebrada, neste dia, em Roma, no século IV, para significar a unidade da Igreja, fundada sobre o Príncipe dos Apóstolos. Santo Agostinho, num dos seus sermões, refere-a e os calendários e martirológios mais antigos mencionam-na.
Antes da reestruturação do Missal Romano, no âmbito da reforma litúrgica, na sequência do Concílio Vaticano II, celebravam-se, a partir do século XVI, duas festas da cadeira de São Pedro: em Roma, a 18 de janeiro; e em Antioquia, a 22 de fevereiro. Não se pode olvidar, na caminhada do cristianismo, a importância histórica da Igreja de Antioquia, que chegou a ser o mais importante centro de cristandade antes de Roma. Foi aí que os seguidores de Cristo assumiram pela primeira vez e em definitivo o designativo de cristãos.
Como é fácil de entender, não é a cadeira material – a cátedra – que está no jogo da importância. Dessa, uns dizem que ainda remanesce como relíquia guardada num artístico relicário, como veremos; outros sustentam, provavelmente com razão, que a cadeira de Pedro nunca existiu efetivamente como objeto de uso de Simão Pedro (que não tinha prata nem ouro, cf Act 3,6). Porém, o que está em causa é a simbologia: a Igreja é mãe e a mãe costuma utilizar o seu banquinho de acolhimento e educação; a Igreja é mestra e ao mestre liga-se simbolicamente a cátedra ou cadeira de ensino. Mas não podemos esquecer que a mãe anda por trancos e barrancos, solícita à procura do filho que eventualmente se tenha perdido; por vezes, corre pressurosa, quando a necessidade aperta; e não deixa de correr entusiasmada, quando o encontra. Concomitantemente, não podemos deixar de perceber como as metodologias magistrais divergem e a história do pensamento deixa-nos o exemplo daquele mestre, Aristóteles, que ensinava passeando diante os discípulos e com eles, ao ar livre. Quem não se lembra dos “peripatéticos” do “liceu”? E Jesus e os discípulos eram “notados” pelo facto de se deslocarem com o Mestre, embora fosse frequente sentarem-se em seu redor para o escutarem, muitas vezes, ante as multidões. Mas que andavam, lá isso andavam. E o mandato do Cristo é basicamente: ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda a criatura (Mc 16,15). E eles cumpriram: eles partiram a pregar por toda a parte (Mc 16,20).
Por seu turno, o papa Francisco quer que os cristãos e os pastores (e mesmos os eminentíssimos cardeais vão a todas as periferias, como construtores da paz); e, logo na primeira homilia do seu pontificado (perante os cardeais que tinham acabado de o eleger), traçou reiterada e claramente as linhas do dinamismo apostólico: caminhar, edificar, confessar Jesus Cristo Crucificado.
É certo que aquele que caminha precisa da cátedra para se sentar com vista ao descanso e ao ensino mais tranquilo, que também são situações e necessárias.
Quanto à autenticidade da cadeira existente em Roma – objeto que serve de pretexto simbólico para a celebração da festa da cadeira de São Pedro, agora simplesmente em Roma, já que foi ali que Pedro passou os últimos anos de vida apostólica e de seu martírio como que surgiu o testamento do ministério petrino a partir dali, de Roma – também podemos atentar naquilo que rezamos historiadores.
A Cátedra, ou seja, o trono de Pedro, guardado até ao século V, no batistério de São Pedro, é uma relíquia que possui a forma de cadeira de espaldar alto e se encontra atualmente na abside da Basílica Vaticana. Consta apenas de alguns pedaços de tábuas, ligadas por placas de marfim. Desde o século XVII está encerrada num grande relicário de bronze dourado, obra projetada e construída por Gian Lorenzo Bernini entre os anos 1647 e 1653.
A cadeira de um bispo ou de outra autoridade religiosa (superior de mosteiro/convento, imã, rabi, lama), especialmente se dentro de uma catedral, é chamada cátedra (cathedra do latim). A cátedra do papa, bispo de Roma, é por ele utilizada como “trono” para o seu exercício de autoridade máxima e de magistério solene, dito ex cathedra. Até Paulo VI, o papa entrava na Basílica Vaticana na cadeira-andor – sede gestatória – mostrando-se acima dos ombros de doze homens, os sediários.
Alguns historiadores e técnicos de história de arte afirmam que a relíquia religiosamente conservada foi utilizada pelo próprio São Pedro, o que não julgo provável; outros, porém, afirmam que, na realidade, aquele objeto-monumento foi um presente de Carlos II de França ao Papa Adriano II, em 875.   Também é certo que existe uma inscrição muito mais antiga, datada de 370, atribuída ao papa São Dâmaso, mencionando uma cadeira portátil dentro do Vaticano, que fora objeto de veneração e pretexto para celebração de festas, anteriores a essa data. Assim, da primitiva cadeira existiriam apenas uns pequenos pedaços que seriam encrustados nesta nova cadeira, também de madeira, que se encontra lacrada no mencionado relicário.
Para se compreender a relevância deste objeto e seu relicário é preciso pensar que, no tempo de Bernini, se estava em plena contrarreforma em que foram construídos diversos outros relicários com a intenção de proteger as respetivas relíquias, de que se destaca O Êxtase de Santa Teresa. Uma e outra relíquia compaginam belos espécimes da arte barroca, em que se fundem elementos escultóricos e arquitetónicos em rica policromia, com manipulação de efeitos de luz. Depois, a relíquia “petrina” possui um painel com estofos padrão com um baixo-relevo que representa a entrega das chaves do céu a Pedro por Cristo. E, na cúpula em cima do relicário, estão inscritas em latim as palavras do Evangelho de Mateus que Jesus dirige a Pedro: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja as portas do inferno nunca prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus e o que ligares na terra será ligado nos céus. E o que desligares na terra será desligado nos céus" (Mt 16,18-19). Diversos anjos estão em torno do painel e, em baixo, há um assento almofadado de bronze.
Voltando à simbologia da cadeira, é de insistir que ela é um documento escultórico-arquitetónico que nos reporta a missão de Pedro: estribado na oração que Jesus Cristo fez por ele, fortalecer os irmãos na fé (Lc 22,32), apascentar os cordeiros, apascentar as ovelhas (Jo 21,15-17). Ora, quem passou pela experiência de apascentar cordeiros e ovelhas, bem sabe do cuidado, da solicitude e da paciência que é preciso mobilizar permanentemente. Mais do que o “trono”, cadeira ou cátedra, é preciso utilizar: os passos, para procurar as ovelhas que se percam, se buscarem os melhores lugares de pasto e se transportarem as melhores forragens; o cajado, para arrimo (não para bater nas ovelhas, mas para lhes indicar o caminho); a manta e o capote, para resguardo do frio e acolhimento da ovelha mais frágil ou mais doente; e as botas, polainas e chapéu ou boina, para enfrentar os escolhos e as intempéries. Mas a “cátedra”, talvez necessariamente improvisada e andante, há de servir para ensinar os melhores caminhos, ensinar a escolher os pastos mais adequados a cada momento, ensinar a escolher as melhores parcerias de vida e de acasalamento.
Quando Pedro chegou a Roma, a sede do império achava-se no auge do poder despótico e da corrupção. Nos palácios, templos, parques e teatros reinavam a pompa e o luxo desmesurados. Com as riquezas das províncias  mais  longínquas, tinham chegado os ídolos, a superstição  e os vícios de outras paragens. Ao lado das riquezas asfixiantes, grande parte da população gemia sob o mais vil jugo da escravidão. O imperador era considerado o divino “Deus e Senhor”, e como tal recebia dos aduladores as supremas homenagens. O vício, sob as formas mais hediondas, ostentava-se publicamente e, para o justificar, pululavam as divindades às quais se oferecesse incenso – cerimónia que os cristãos recusavam com desassombro.
Naquele ninho de luxúria pútrida, o principal representante de Jesus Cristo veio pregar o Evangelho e ficou a aguentar a luta no terreno – tarefa bem espinhosa; naquele reino de soberba presumida, fundou e alimentou uma Igreja que perdura há vinte séculos e forneceu como semente de cristãos milhares de mártires; naquele terreno sísmico, estabeleceu a “cadeira da verdade” sofrida; e aí, reconhecendo-se indigno de ter um fim igual ao do divino Mestre, ofereceu a vida em sacrifício no patíbulo da cruz, feito cadeira, trono e altar.
Assim, com um testemunho de fim, tão eloquente como o da vida, Simão, filho de João, deu o visível pontapé de baliza do grande desafio-desígnio indicado pelo arcanjo Gabriel a Maria, sobre Cristo, cujo “reino não é deste mundo” (Jo 18,36):
Darás à luz um filho ao qual porás o nome de Jesus. Este será grande e chamá-lo-ão Filho do Altíssimo. Ele reinará eternamente sobre a casa de Jacob e o seu reino não terá fim” (Lc 1,31-33).
Eis o papa Francisco, sem deitar fora os tesouros vaticanos, mas entusiasticamente a transportar consigo a cátedra de Pedro para andar por ceca e meca a presidir ao exercício da missão dos discípulos de Cristo, o jogo que não terá fim enquanto mundo houver: “Ide e doutrinai todas as gentes, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a observar tudo quanto vos mandei” (Mt 28,19-20).

Propósito de comunicação

Este modo de comunicar vai destinar-se à opinião, análise e reflexão sobre um conjunto diversificado de temas.
Nele cabem textos que vão desde a abordagem mais breve de temas do dia a dia como alguns, excecionais por certo, os de desenvolvimento de títulos mais questionáveis na reflexão temática. 

Sede bem-vindos à partilha livre e reflexiva para alimento do espírito, na certeza de que nos ficaremos por uma dimensão pessoal e social do discurso, sem sombras de pretensão de vinculação a qualquer dogmatismo ou de alinhamento sectário ou setorial.

Abílio Carvalho