segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Crença na lei e na justiça



Creio na lei dita igual para todos, – mas que permite e sanciona as desigualdades, os privilégios e o enriquecimento por qualquer meio, tornando uns mais iguais que outros.
Creio na lei que formalmente resulta da vontade das maiorias, – mas nem sempre respeita os direitos de cada um, sobretudo se integrados em minorias, tantas vezes tiranizadas pela partidocracia.
Creio na lei que alegadamente tem em conta a realidade do país, – mas, ao arrepio das maiorias, privilegia o interesse de minorias e o impõe como valor supremo e exemplar, em nome do endeusado progresso civilizacional, contra o crasso e obsoleto obscurantismo.
Creio na lei que, ao nível das metas, promove o bem-estar, – mas explora todas as modalidades de reduzir à expressão mais simples os rendimentos de quem trabalha ou trabalhou, e cava o empobrecimento generalizado de todo um povo, esfacelando as classes médias.
Creio na lei que pede teoricamente os sacrifícios de todos os que não podem eximir-se a eles, – mas deixa engrossar desmedidamente o património de uns poucos, até pela sonegação de impostos ao Estado Português.
Creio na lei que, no papel, exige a qualificação académica e profissional da maioria dos cidadãos, – mas coloca nos lugares de topo filhos, amigos, afilhados e correligionários do bloco central de interesses sem a dita qualificação académica, profissional ou experiencial.
Creio na lei que propala a liberdade e a autonomia de pensamento, expressão, associação, reunião e manifestação, – mas condiciona a segurança no emprego e o exercício profissional a quem ousar pensar e dizer de modo diferente do politicamente correto.
Creio na lei que supostamente preserva a ordem pública, procede às reformas necessárias e exige profissionalismo – mas faz pagar ao contribuinte desmandos de desordeiros, deixa setores consideráveis intocáveis e pactua com a falta de zelo na gestão dos bens públicos.
Creio na lei que a todos considera cidadãos com direitos iguais, – mas discrimina negativamente o setor de trabalho na administração pública, cujos trabalhadores desprestigia com sucessivos cortes salariais, degradação das condições de trabalho e favorecimento do desprestígio profissional e social, multiplicando a existência de burocratas sanduíche, criadores do desconforto e da precariedade, através de vários meios, inclusive certa avaliação de desempenho.
Creio na lei que eleva aos píncaros da cidadania a eleição democrática de representantes, – mas só permite o voto em quem se sujeite ao aparelhismo partidário.
Creio na lei que proclama o voto em consciência nos órgãos colegiais, – mas impõe a disciplina de voto quando tal se torna conveniente para a manutenção do status quo ou para alterações fundamentais do painel dos padrões democráticos.
Creio na lei provinda de deputados responsáveis, – mas que votam ao sabor de interesses setoriais quando estão em causa graves questões de governabilidade.
Creio na lei que proclama a soberania nacional e entende que o poder político reside no povo, – mas não referenda a alienação internacional de relevantes aspetos da soberania nacional.
Creio na lei aprovada por legítimos deputados do povo, – mas cujos interesses profissionais nunca deixam de estar presentes.
Creio na lei elaborada por uma assembleia eleita democraticamente, – mas cujos apreciadores são deputados provenientes de partidos cujos líderes (não todos, é claro), de vários patamares, investiram na obtenção do favor popular através da simpatia, das promessas e do dinheiro.
Creio na lei que, na sua letra, aceita candidaturas de cidadãos independentes para os órgãos do poder autárquico, – mas as rodeia de uma fatia de exigências burocráticas tal que, em muitos casos, elas ficam pelo caminho.
Creio na lei que é em tudo rigorosa e clarividente, – mas faz equivaler ao estatuto de independente a situação daqueles que, por motivos justos ou duvidosos, são na realidade dissidentes partidários.
E, por consequência,
Creio na justiça que tem demasiado em conta a realidade nacional, – mas produz sentenças e acórdãos de sentido contrário sobre matérias similares, para não mencionar todo o aparato de autoridade judicial.
Creio na justiça a que todos têm acesso, – mas os remediados e os pobres, a não ser que sejam mesmo indigentes, não têm possibilidades de a ela aceder.
Creio na justiça que funciona sempre, – mas que recusa proceder à audiência de julgamento enquanto não se pagar o imposto de justiça e as custas judiciais em atraso.
Creio na justiça que acredita no cidadão e nas suas potencialidades, – mas exige que ele se faça representar por causídico a quem tem de pagar e através de quem o cidadão satisfaz os seus encargos com a justiça, e não de outro modo.
Creio na justiça que dá garantias a todos, – mas sonega a defensores oficiosos a consulta prévia do respetivo processo, enquanto aos ricos e poderosos permite a exploração de todos os meios de dilação.
Creio na justiça equitativa, – mas quem puder dispor de elevada quantia de caução (em dinheiro ou em garantia bancária) pode ser dispensado da prisão preventiva.
Creio na justiça ministrada em nome do povo, – mas em ambiente de tribunal altamente inibidor para testemunhas inexperientes e público em geral.
Creio na justiça sempre disponível, – mas que tudo faz para evitar agir, podendo penalizar quem se exima à aceitação de acordo.
Creio na justiça ministrada somente em consideração da lei, – mas com dissertações inoportunas sobre a vida das pessoas ou com reprimendas ao ambiente familiar, à procuradoria ou às polícias.
Creio na justiça discreta, – mas que gosta do espetáculo.
Creio na justiça ágil, – mas que se torna excessivamente morosa e cujo efeito fica altamente minorado.
Creio na justiça justa, – mas que penaliza mais a vítima que o infrator, aquele que se defende que aquele que ataca.
Creio na justiça eficiente e eficaz, – mas célere para quem desvia uma embalagem de açúcar ou de leite no supermercado e lenta ou nunca vinda para a grande corrupção ou o grande crime, que ou não se consegue provar ou que prescreve.
Creio na justiça ministrada por operadores independentes e imparciais, – mas dificultam, por vezes, a apensação de peças ao processo respetivo e revelam dificuldade em mobilizar, em prol da decisão justa, todos os saberes disponíveis na comunidade científica.
Creio na justiça como serviço e configuradora de um poder soberano, – mas que deixou confundir a prevalência das decisões judiciais transitadas em julgado com a extrema dificuldade do cidadão em lançar um olhar crítico sobre o sistema e sobre as decisões, alijando frequentemente a responsabilidade para os políticos, como se os magistrados o não fossem também (vd CRP, organização do poder político, onde se leem também os artigos atinentes aos tribunais e aos magistrados).
Creio na justiça de poderoso efeito, – mas que, por vezes, se limita a decretar a perda de mandato, ou, preventivamente, contacto com as vítimas em casos como o da violência doméstica, ou com os comparsas, em casos como o de gestão danosa.
Creio na justiça que busca a verdade e só a verdade, – mas se prende literalmente a determinados formalismos e ajuramenta as pessoas somente em nome da honra sem a admissão democrática de outros valores como suporte de ajuramentação.
Em face do objeto precário destas “ingénuas e crédulas crenças”,
Creio firmemente, na justiça e na lei, mas divinas, porque não o li, dado que a minha catequese paroquial foi rodada sobre catecismos editados por Monsenhor Amílcar Amaral e na denominada Bíblia das Escolas, mas, em casa, quando eu ainda não sabia ler e só decorava, me ensinaram a dizer que Deus, além do Ser Infinitamente Perfeito e Criador e Senhor do Céu e da Terra, é o nosso “legislador e remunerador” – verdade que a Teologia e a Filosofia Escolástica ainda não desmentiram. Este, sim, segundo a lei, mas a lei dos filhos de Deus; e segundo a justiça, mas não a dos homens – talvez porque não precisou do favor popular para ser quem é e estar onde está ao lado do homem que o queira reverenciar, servir e amar! 

Sem comentários:

Enviar um comentário