A Igreja Católica celebra, a 28 de
dezembro, a festa dos santos inocentes, em homenagem à morte daquelas
criancinhas que foram imoladas pela inveja sanhosa de Herodes, que se convenceu
de que o Rei dos Judeus, a criança acabada de nascer em Belém, lhe iria, muito
em breve, tirar o régio lugar.
O mundo atual, eivado em mui grande
parte dos valores emoldurantes da tradição cultural judaico-cristã, a cada
passo estabelece judiciosas comparações com alguns dos episódios bíblicos. Não
me considerando exceção, também eu vou alinhar por esse mecanismo discursivo,
já que não sendo eu judeu, às vezes, gosto de pregar as minhas partidinhas de judeu,
que os judeus, afinal, não usam praticar.
Vêm à colação factos e afirmações de
quem não quer perder o poder ou de quem não quer ser criticado pela forma como
o terá exercido. No segundo caso, está o inefável Vítor Gaspar, oriundo dos
lados da Beira Serra, de onde têm provindo personalidades de alto gabarito.
Mas, enquanto Pina Moura, que fez um longo estágio na pasta da Economia, que
acumulou com a das Finanças, onde se curou das maleitas comunistas de antanho, e
depois enveredou pelo mundo empresarial ibérico, Gaspar, um nome aparentado com
um dos reis magos, veio garantir publicamente que não foi nada o quarto
elemento da troika, desmentindo,
tarde e a más horas, os bem informados jornalistas da Irlanda. E nós, tão
inocentes como ele, vamos acreditar, não sem afirmar que efetivamente não fora
o quarto elemento da troika, mas o
seu principal elemento. De resto, como é que aquelas águias dispunham de tanta
informação do estado das contas portuguesas se os serviços do titular da pasta não
prestassem a informação de que nem os portugueses eram detentores? Tenho, é
claro, de esclarecer que a troika que
ele integrou era a constituída por representantes do FMI, da Comissão Europeia
e do BCE, que não a constituída pelo PCP, BE e PEV (que recusaram terminantemente
o que denominavam de pacto de agressão), mas a coincidente com o trio que
subscreveu o memorandum de entendimento
e protocolo complementar – PS (que sofre de amnésia bienal), PSD (que não via inconveniente
em governar com o “fmi”, garantindo somente cortar a banhas do Estado, e passou
a ir além da troika) e CDS (que viu
aqui uma oportunidade de ouro de cumprir a obra de misericórdia de zelar pelos
pobrezinhos no meio de irrevogáveis linhas vermelhas).
Quanto aos primeiros, que fazem mais
enjoo, são aqueles inocentes que pontificaram no Coliseu dos Recreios, no fim
de semana (e não só um dia) de 21 a 23 de fevereiro.
Então não é que o líder do grupo
parlamentar do PSD não teve pejo em clamar que o país está melhor que há dois
anos e meio, mas as pessoas estão pior! E eu pergunto-me quem é que
efetivamente tem a culpa, se o país, se as pessoas. É óbvio que foram as
pessoas, as pessoas que têm governado a fazer-nos apertar o cinto em nome das
inevitabilidades por que teriam de passar aqueles que viveram acima das suas possibilidades,
mas, enquanto estiveram na oposição ou em governos anteriores, emparceiraram no
bloco central de interesses a esvaziar as tulherias da nação, a promover
crédito fácil, consumo desmedido, investimento público até mais não.
E o venusto presidente do maior
partido da maioria veio justificar a ação desenvolvida pela governança até ao
momento, em nome do grande interesse nacional, sublinhando o crescimento económico
dos últimos tempos, augurando um feliz pós-troika, mas não topando qualquer
folga orçamental. E vem proclamar a maior narrativa de que ninguém estava à
espera: o partido é socialdemocrata! Tanto quanto me é dado recordar, o partido
nunca foi propriamente socialdemocrata (aí é mais comedido Santa Lopes que não
abdica da sigla PPD), pelo menos à laia dos países nórdicos ou de Willy Brandt.
Como não há memória, segundo o modo como se lamentava Jorge Coelho, as pessoas já
não recordam as palavras de Francisco Sá Carneiro, que, uns dias a seguir ao
momento da revolução abrilina, referiu à RTP que era necessário organizar um grande
partido de centro, o que tentou cumprir com base nas personalidades que
constituíram a denominada ala liberal do marcelismo, embora de portas abertas a
quem professasse as bases de um são humanismo personalista, num lastro de
interclassismo.
Porém, a dinâmica dos acontecimentos, no quadro do
PREC, levou a que os partidos que singraram na era revolucionária, com exceção do
CDS que sempre insistiu na linha da democracia progressiva ou mesmo progressista),
subscrevessem “a decisão do povo
português de defender a independência nacional, de garantir os direitos
fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da
democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir
caminho para uma sociedade socialista” (vd CRP/preâmbulo), definissem o
país como uma república “empenhada na sua
transformação numa sociedade sem classes” (cf CRP, versão de 1976, art.º
2.º) e assegurassem “a
transição para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício
democrático do poder pelas classes trabalhadoras” (cf id, art.º 3.º). Tanto
assim que não tardou que o partido tivesse abandonado o seu cariz popular e se afirmasse
socialdemocrata. Nesse sentido, alguns dos partidários clamavam que pretendiam
a socialdemocracia, mas não como um objetivo em si – o que uns entenderam que
eles almejavam o socialismo através da socialdemocracia e outros se convenceram
de que aqueles talvez anelassem por um outro objetivo que naquele período não
se afigurava politicamente correto revelar. Marcelo Rebelo de Sousa
confidenciou no passado domingo na TVI que Sá Carneiro naquele período “precano”
lhe solicitara que elaborasse um discurso de contestação à nacionalização das
mercearias e outras lojas de pequena e média dimensão com base em argumentos de
inspiração marxista, de que o ilustre comentador se encarregou com sucesso. E,
se é verdade que Mário Soares resolveu meter o socialismo na gaveta, para garantir
um 2.º governo constitucional em coligação com o CDS, para responder ao repto
de Eanes, então Presidente da República, da constituição de uma maioria clara e
coerente no Parlamento, não é menos verdade que Sá Carneiro tentou, à direita,
a convergência democrática, primeiro, e a AD (aliança democrática), depois; e
Cavaco Silva, durante a vigência do seu primeiro governo (o de minoria), não se
cansou de bradar urbi et orbi que o
seu governo não conseguia fazer as reformas necessárias porque o Parlamento não
lhe dava condições, o que lhe favoreceu o granjeamento de duas maiorias absolutas
consecutivas. No entanto, conseguiu fazer aprovar a Lei de Bases do Sistema Educativo,
que, ao longo dos anos, sofreu apenas três pequenas alterações cirúrgicas.
Porém, regressando à
plataforma dos inocentes, há que salientar que ninguém estaria à espera de um
congresso socialdemocrata empolgante, a respirar apoteose personalista ou
arroubo ideológico. Mas também não se esperaria pelo desfile de ex-líderes, uns
silenciosos, a acotovelar o vizinho a significar que também ali estavam, e
outros a tomar a palavra a raiar o insólito.
Um a assumir fora de
tempo e fora do lugar o ónus pessoal de uma derrota autárquica, quando a sua
candidatura correspondia oficialmente à linha das escolhas da direção
partidária; outro, com o pretexto de ir saudar o aniversariante coletivo
quarentão e mostrar que proclama em congresso o mesmo que prega no púlpito
dominical, faz o discurso a pugnar pela liberdade de expressão nos escaninhos
da agremiação partidária e subliminarmente a mostrar-se preparado para qualquer
eventualidade, em que os mais atentos incluem a corrida presidencial; e outro,
ao mesmo tempo que agradece o ensejo que o governo lhe ofereceu de beneficência
misericordiosa em favor dos pobres e sem-abrigo, vem rasgar o segredo: estão
ali todos amostrar que existem e a indicar que ainda poderia chegar um outro,
que só o não teria feito por motivos de agenda.
Finalmente, o cúmulo
da inocência aconteceu com a escolha de Miguel Relvas para o conselho nacional –
o órgão mais importante do partido entre congressos. Não é de comentar esta
inocência despudorada de um ministro que deixou a credibilidade governativa em
pantanas, teve de ser substituído por dois outros ministros e se reconverteu à
pureza do estadismo em pouco mais de seis meses. Por mais críticos que
hipoteticamente possamos ser de Sá Carneiro ou por mais que duvidemos do seu
caráter de grande estadista que não teve tempo de revelar, temos de fazer jus à
sua probidade política e ao seu sentido do país que todos desejamos que tenha
futuro e que não continue a dar o espetáculo da arena política onde tudo ganha
foros de cidadania.
É esta a inocência
do milagre económico sem efeitos benéficos na vida dos cidadãos, é esta
inocência do despudor político que faz dos portugueses objeto de gozo e
diversão, é esta inocência sem ética que vilipendia o sacrifício e a seriedade
dos portugueses, e é esta inocência tão inestética no painel da cidadania e na
via da decência que é necessário denunciar e de que é imperioso abjurar para que
a política passe a compaginar a arte de conduzir os povos pela rota da justiça para
a esteira da felicidade, estribada na ciência do direito e da antropologia e nos
valores axiológicos da ética.
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