terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Os inocentes




A Igreja Católica celebra, a 28 de dezembro, a festa dos santos inocentes, em homenagem à morte daquelas criancinhas que foram imoladas pela inveja sanhosa de Herodes, que se convenceu de que o Rei dos Judeus, a criança acabada de nascer em Belém, lhe iria, muito em breve, tirar o régio lugar.
O mundo atual, eivado em mui grande parte dos valores emoldurantes da tradição cultural judaico-cristã, a cada passo estabelece judiciosas comparações com alguns dos episódios bíblicos. Não me considerando exceção, também eu vou alinhar por esse mecanismo discursivo, já que não sendo eu judeu, às vezes, gosto de pregar as minhas partidinhas de judeu, que os judeus, afinal, não usam praticar.
Vêm à colação factos e afirmações de quem não quer perder o poder ou de quem não quer ser criticado pela forma como o terá exercido. No segundo caso, está o inefável Vítor Gaspar, oriundo dos lados da Beira Serra, de onde têm provindo personalidades de alto gabarito. Mas, enquanto Pina Moura, que fez um longo estágio na pasta da Economia, que acumulou com a das Finanças, onde se curou das maleitas comunistas de antanho, e depois enveredou pelo mundo empresarial ibérico, Gaspar, um nome aparentado com um dos reis magos, veio garantir publicamente que não foi nada o quarto elemento da troika, desmentindo, tarde e a más horas, os bem informados jornalistas da Irlanda. E nós, tão inocentes como ele, vamos acreditar, não sem afirmar que efetivamente não fora o quarto elemento da troika, mas o seu principal elemento. De resto, como é que aquelas águias dispunham de tanta informação do estado das contas portuguesas se os serviços do titular da pasta não prestassem a informação de que nem os portugueses eram detentores? Tenho, é claro, de esclarecer que a troika que ele integrou era a constituída por representantes do FMI, da Comissão Europeia e do BCE, que não a constituída pelo PCP, BE e PEV (que recusaram terminantemente o que denominavam de pacto de agressão), mas a coincidente com o trio que subscreveu o memorandum de entendimento e protocolo complementar – PS (que sofre de amnésia bienal), PSD (que não via inconveniente em governar com o “fmi”, garantindo somente cortar a banhas do Estado, e passou a ir além da troika) e CDS (que viu aqui uma oportunidade de ouro de cumprir a obra de misericórdia de zelar pelos pobrezinhos no meio de irrevogáveis linhas vermelhas).
Quanto aos primeiros, que fazem mais enjoo, são aqueles inocentes que pontificaram no Coliseu dos Recreios, no fim de semana (e não só um dia) de 21 a 23 de fevereiro.
Então não é que o líder do grupo parlamentar do PSD não teve pejo em clamar que o país está melhor que há dois anos e meio, mas as pessoas estão pior! E eu pergunto-me quem é que efetivamente tem a culpa, se o país, se as pessoas. É óbvio que foram as pessoas, as pessoas que têm governado a fazer-nos apertar o cinto em nome das inevitabilidades por que teriam de passar aqueles que viveram acima das suas possibilidades, mas, enquanto estiveram na oposição ou em governos anteriores, emparceiraram no bloco central de interesses a esvaziar as tulherias da nação, a promover crédito fácil, consumo desmedido, investimento público até mais não.
E o venusto presidente do maior partido da maioria veio justificar a ação desenvolvida pela governança até ao momento, em nome do grande interesse nacional, sublinhando o crescimento económico dos últimos tempos, augurando um feliz pós-troika, mas não topando qualquer folga orçamental. E vem proclamar a maior narrativa de que ninguém estava à espera: o partido é socialdemocrata! Tanto quanto me é dado recordar, o partido nunca foi propriamente socialdemocrata (aí é mais comedido Santa Lopes que não abdica da sigla PPD), pelo menos à laia dos países nórdicos ou de Willy Brandt. Como não há memória, segundo o modo como se lamentava Jorge Coelho, as pessoas já não recordam as palavras de Francisco Sá Carneiro, que, uns dias a seguir ao momento da revolução abrilina, referiu à RTP que era necessário organizar um grande partido de centro, o que tentou cumprir com base nas personalidades que constituíram a denominada ala liberal do marcelismo, embora de portas abertas a quem professasse as bases de um são humanismo personalista, num lastro de interclassismo.
Porém, a dinâmica dos acontecimentos, no quadro do PREC, levou a que os partidos que singraram na era revolucionária, com exceção do CDS que sempre insistiu na linha da democracia progressiva ou mesmo progressista), subscrevessem a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista” (vd CRP/preâmbulo), definissem o país como uma república “empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes” (cf CRP, versão de 1976, art.º 2.º) e assegurassem “a transição para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras” (cf id, art.º 3.º). Tanto assim que não tardou que o partido tivesse abandonado o seu cariz popular e se afirmasse socialdemocrata. Nesse sentido, alguns dos partidários clamavam que pretendiam a socialdemocracia, mas não como um objetivo em si – o que uns entenderam que eles almejavam o socialismo através da socialdemocracia e outros se convenceram de que aqueles talvez anelassem por um outro objetivo que naquele período não se afigurava politicamente correto revelar. Marcelo Rebelo de Sousa confidenciou no passado domingo na TVI que Sá Carneiro naquele período “precano” lhe solicitara que elaborasse um discurso de contestação à nacionalização das mercearias e outras lojas de pequena e média dimensão com base em argumentos de inspiração marxista, de que o ilustre comentador se encarregou com sucesso. E, se é verdade que Mário Soares resolveu meter o socialismo na gaveta, para garantir um 2.º governo constitucional em coligação com o CDS, para responder ao repto de Eanes, então Presidente da República, da constituição de uma maioria clara e coerente no Parlamento, não é menos verdade que Sá Carneiro tentou, à direita, a convergência democrática, primeiro, e a AD (aliança democrática), depois; e Cavaco Silva, durante a vigência do seu primeiro governo (o de minoria), não se cansou de bradar urbi et orbi que o seu governo não conseguia fazer as reformas necessárias porque o Parlamento não lhe dava condições, o que lhe favoreceu o granjeamento de duas maiorias absolutas consecutivas. No entanto, conseguiu fazer aprovar a Lei de Bases do Sistema Educativo, que, ao longo dos anos, sofreu apenas três pequenas alterações cirúrgicas.
Porém, regressando à plataforma dos inocentes, há que salientar que ninguém estaria à espera de um congresso socialdemocrata empolgante, a respirar apoteose personalista ou arroubo ideológico. Mas também não se esperaria pelo desfile de ex-líderes, uns silenciosos, a acotovelar o vizinho a significar que também ali estavam, e outros a tomar a palavra a raiar o insólito.
Um a assumir fora de tempo e fora do lugar o ónus pessoal de uma derrota autárquica, quando a sua candidatura correspondia oficialmente à linha das escolhas da direção partidária; outro, com o pretexto de ir saudar o aniversariante coletivo quarentão e mostrar que proclama em congresso o mesmo que prega no púlpito dominical, faz o discurso a pugnar pela liberdade de expressão nos escaninhos da agremiação partidária e subliminarmente a mostrar-se preparado para qualquer eventualidade, em que os mais atentos incluem a corrida presidencial; e outro, ao mesmo tempo que agradece o ensejo que o governo lhe ofereceu de beneficência misericordiosa em favor dos pobres e sem-abrigo, vem rasgar o segredo: estão ali todos amostrar que existem e a indicar que ainda poderia chegar um outro, que só o não teria feito por motivos de agenda.
Finalmente, o cúmulo da inocência aconteceu com a escolha de Miguel Relvas para o conselho nacional – o órgão mais importante do partido entre congressos. Não é de comentar esta inocência despudorada de um ministro que deixou a credibilidade governativa em pantanas, teve de ser substituído por dois outros ministros e se reconverteu à pureza do estadismo em pouco mais de seis meses. Por mais críticos que hipoteticamente possamos ser de Sá Carneiro ou por mais que duvidemos do seu caráter de grande estadista que não teve tempo de revelar, temos de fazer jus à sua probidade política e ao seu sentido do país que todos desejamos que tenha futuro e que não continue a dar o espetáculo da arena política onde tudo ganha foros de cidadania.

É esta a inocência do milagre económico sem efeitos benéficos na vida dos cidadãos, é esta inocência do despudor político que faz dos portugueses objeto de gozo e diversão, é esta inocência sem ética que vilipendia o sacrifício e a seriedade dos portugueses, e é esta inocência tão inestética no painel da cidadania e na via da decência que é necessário denunciar e de que é imperioso abjurar para que a política passe a compaginar a arte de conduzir os povos pela rota da justiça para a esteira da felicidade, estribada na ciência do direito e da antropologia e nos valores axiológicos da ética.

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