segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

A cátedra de Pedro




Passou ontem, 22 de fevereiro, a festa da cadeira de São Pedro. Era já celebrada, neste dia, em Roma, no século IV, para significar a unidade da Igreja, fundada sobre o Príncipe dos Apóstolos. Santo Agostinho, num dos seus sermões, refere-a e os calendários e martirológios mais antigos mencionam-na.
Antes da reestruturação do Missal Romano, no âmbito da reforma litúrgica, na sequência do Concílio Vaticano II, celebravam-se, a partir do século XVI, duas festas da cadeira de São Pedro: em Roma, a 18 de janeiro; e em Antioquia, a 22 de fevereiro. Não se pode olvidar, na caminhada do cristianismo, a importância histórica da Igreja de Antioquia, que chegou a ser o mais importante centro de cristandade antes de Roma. Foi aí que os seguidores de Cristo assumiram pela primeira vez e em definitivo o designativo de cristãos.
Como é fácil de entender, não é a cadeira material – a cátedra – que está no jogo da importância. Dessa, uns dizem que ainda remanesce como relíquia guardada num artístico relicário, como veremos; outros sustentam, provavelmente com razão, que a cadeira de Pedro nunca existiu efetivamente como objeto de uso de Simão Pedro (que não tinha prata nem ouro, cf Act 3,6). Porém, o que está em causa é a simbologia: a Igreja é mãe e a mãe costuma utilizar o seu banquinho de acolhimento e educação; a Igreja é mestra e ao mestre liga-se simbolicamente a cátedra ou cadeira de ensino. Mas não podemos esquecer que a mãe anda por trancos e barrancos, solícita à procura do filho que eventualmente se tenha perdido; por vezes, corre pressurosa, quando a necessidade aperta; e não deixa de correr entusiasmada, quando o encontra. Concomitantemente, não podemos deixar de perceber como as metodologias magistrais divergem e a história do pensamento deixa-nos o exemplo daquele mestre, Aristóteles, que ensinava passeando diante os discípulos e com eles, ao ar livre. Quem não se lembra dos “peripatéticos” do “liceu”? E Jesus e os discípulos eram “notados” pelo facto de se deslocarem com o Mestre, embora fosse frequente sentarem-se em seu redor para o escutarem, muitas vezes, ante as multidões. Mas que andavam, lá isso andavam. E o mandato do Cristo é basicamente: ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda a criatura (Mc 16,15). E eles cumpriram: eles partiram a pregar por toda a parte (Mc 16,20).
Por seu turno, o papa Francisco quer que os cristãos e os pastores (e mesmos os eminentíssimos cardeais vão a todas as periferias, como construtores da paz); e, logo na primeira homilia do seu pontificado (perante os cardeais que tinham acabado de o eleger), traçou reiterada e claramente as linhas do dinamismo apostólico: caminhar, edificar, confessar Jesus Cristo Crucificado.
É certo que aquele que caminha precisa da cátedra para se sentar com vista ao descanso e ao ensino mais tranquilo, que também são situações e necessárias.
Quanto à autenticidade da cadeira existente em Roma – objeto que serve de pretexto simbólico para a celebração da festa da cadeira de São Pedro, agora simplesmente em Roma, já que foi ali que Pedro passou os últimos anos de vida apostólica e de seu martírio como que surgiu o testamento do ministério petrino a partir dali, de Roma – também podemos atentar naquilo que rezamos historiadores.
A Cátedra, ou seja, o trono de Pedro, guardado até ao século V, no batistério de São Pedro, é uma relíquia que possui a forma de cadeira de espaldar alto e se encontra atualmente na abside da Basílica Vaticana. Consta apenas de alguns pedaços de tábuas, ligadas por placas de marfim. Desde o século XVII está encerrada num grande relicário de bronze dourado, obra projetada e construída por Gian Lorenzo Bernini entre os anos 1647 e 1653.
A cadeira de um bispo ou de outra autoridade religiosa (superior de mosteiro/convento, imã, rabi, lama), especialmente se dentro de uma catedral, é chamada cátedra (cathedra do latim). A cátedra do papa, bispo de Roma, é por ele utilizada como “trono” para o seu exercício de autoridade máxima e de magistério solene, dito ex cathedra. Até Paulo VI, o papa entrava na Basílica Vaticana na cadeira-andor – sede gestatória – mostrando-se acima dos ombros de doze homens, os sediários.
Alguns historiadores e técnicos de história de arte afirmam que a relíquia religiosamente conservada foi utilizada pelo próprio São Pedro, o que não julgo provável; outros, porém, afirmam que, na realidade, aquele objeto-monumento foi um presente de Carlos II de França ao Papa Adriano II, em 875.   Também é certo que existe uma inscrição muito mais antiga, datada de 370, atribuída ao papa São Dâmaso, mencionando uma cadeira portátil dentro do Vaticano, que fora objeto de veneração e pretexto para celebração de festas, anteriores a essa data. Assim, da primitiva cadeira existiriam apenas uns pequenos pedaços que seriam encrustados nesta nova cadeira, também de madeira, que se encontra lacrada no mencionado relicário.
Para se compreender a relevância deste objeto e seu relicário é preciso pensar que, no tempo de Bernini, se estava em plena contrarreforma em que foram construídos diversos outros relicários com a intenção de proteger as respetivas relíquias, de que se destaca O Êxtase de Santa Teresa. Uma e outra relíquia compaginam belos espécimes da arte barroca, em que se fundem elementos escultóricos e arquitetónicos em rica policromia, com manipulação de efeitos de luz. Depois, a relíquia “petrina” possui um painel com estofos padrão com um baixo-relevo que representa a entrega das chaves do céu a Pedro por Cristo. E, na cúpula em cima do relicário, estão inscritas em latim as palavras do Evangelho de Mateus que Jesus dirige a Pedro: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja as portas do inferno nunca prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus e o que ligares na terra será ligado nos céus. E o que desligares na terra será desligado nos céus" (Mt 16,18-19). Diversos anjos estão em torno do painel e, em baixo, há um assento almofadado de bronze.
Voltando à simbologia da cadeira, é de insistir que ela é um documento escultórico-arquitetónico que nos reporta a missão de Pedro: estribado na oração que Jesus Cristo fez por ele, fortalecer os irmãos na fé (Lc 22,32), apascentar os cordeiros, apascentar as ovelhas (Jo 21,15-17). Ora, quem passou pela experiência de apascentar cordeiros e ovelhas, bem sabe do cuidado, da solicitude e da paciência que é preciso mobilizar permanentemente. Mais do que o “trono”, cadeira ou cátedra, é preciso utilizar: os passos, para procurar as ovelhas que se percam, se buscarem os melhores lugares de pasto e se transportarem as melhores forragens; o cajado, para arrimo (não para bater nas ovelhas, mas para lhes indicar o caminho); a manta e o capote, para resguardo do frio e acolhimento da ovelha mais frágil ou mais doente; e as botas, polainas e chapéu ou boina, para enfrentar os escolhos e as intempéries. Mas a “cátedra”, talvez necessariamente improvisada e andante, há de servir para ensinar os melhores caminhos, ensinar a escolher os pastos mais adequados a cada momento, ensinar a escolher as melhores parcerias de vida e de acasalamento.
Quando Pedro chegou a Roma, a sede do império achava-se no auge do poder despótico e da corrupção. Nos palácios, templos, parques e teatros reinavam a pompa e o luxo desmesurados. Com as riquezas das províncias  mais  longínquas, tinham chegado os ídolos, a superstição  e os vícios de outras paragens. Ao lado das riquezas asfixiantes, grande parte da população gemia sob o mais vil jugo da escravidão. O imperador era considerado o divino “Deus e Senhor”, e como tal recebia dos aduladores as supremas homenagens. O vício, sob as formas mais hediondas, ostentava-se publicamente e, para o justificar, pululavam as divindades às quais se oferecesse incenso – cerimónia que os cristãos recusavam com desassombro.
Naquele ninho de luxúria pútrida, o principal representante de Jesus Cristo veio pregar o Evangelho e ficou a aguentar a luta no terreno – tarefa bem espinhosa; naquele reino de soberba presumida, fundou e alimentou uma Igreja que perdura há vinte séculos e forneceu como semente de cristãos milhares de mártires; naquele terreno sísmico, estabeleceu a “cadeira da verdade” sofrida; e aí, reconhecendo-se indigno de ter um fim igual ao do divino Mestre, ofereceu a vida em sacrifício no patíbulo da cruz, feito cadeira, trono e altar.
Assim, com um testemunho de fim, tão eloquente como o da vida, Simão, filho de João, deu o visível pontapé de baliza do grande desafio-desígnio indicado pelo arcanjo Gabriel a Maria, sobre Cristo, cujo “reino não é deste mundo” (Jo 18,36):
Darás à luz um filho ao qual porás o nome de Jesus. Este será grande e chamá-lo-ão Filho do Altíssimo. Ele reinará eternamente sobre a casa de Jacob e o seu reino não terá fim” (Lc 1,31-33).
Eis o papa Francisco, sem deitar fora os tesouros vaticanos, mas entusiasticamente a transportar consigo a cátedra de Pedro para andar por ceca e meca a presidir ao exercício da missão dos discípulos de Cristo, o jogo que não terá fim enquanto mundo houver: “Ide e doutrinai todas as gentes, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a observar tudo quanto vos mandei” (Mt 28,19-20).

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