Passou ontem, 22 de fevereiro, a festa da cadeira de
São Pedro. Era já celebrada, neste dia, em Roma, no século IV, para significar a
unidade da Igreja, fundada sobre o Príncipe dos Apóstolos. Santo Agostinho, num dos seus sermões, refere-a e os
calendários e martirológios mais antigos mencionam-na.
Antes da reestruturação do Missal Romano,
no âmbito da reforma litúrgica, na sequência do Concílio Vaticano II,
celebravam-se, a partir do século XVI, duas festas da cadeira de São Pedro: em
Roma, a 18 de janeiro; e em Antioquia, a 22 de fevereiro. Não se pode olvidar,
na caminhada do cristianismo, a importância histórica da Igreja de Antioquia,
que chegou a ser o mais importante centro de cristandade antes de Roma. Foi aí
que os seguidores de Cristo assumiram pela primeira vez e em definitivo o
designativo de cristãos.
Como é fácil de entender, não é a cadeira
material – a cátedra – que está no
jogo da importância. Dessa, uns dizem que ainda remanesce como relíquia
guardada num artístico relicário, como veremos; outros sustentam, provavelmente
com razão, que a cadeira de Pedro nunca existiu efetivamente como objeto de uso
de Simão Pedro (que não tinha prata nem ouro,
cf Act 3,6). Porém, o que está em causa é a simbologia: a Igreja é mãe e a mãe
costuma utilizar o seu banquinho de acolhimento e educação; a Igreja é mestra e
ao mestre liga-se simbolicamente a cátedra ou cadeira de ensino. Mas não
podemos esquecer que a mãe anda por trancos e barrancos, solícita à procura do
filho que eventualmente se tenha perdido; por vezes, corre pressurosa, quando a
necessidade aperta; e não deixa de correr entusiasmada, quando o encontra.
Concomitantemente, não podemos deixar de perceber como as metodologias
magistrais divergem e a história do pensamento deixa-nos o exemplo daquele
mestre, Aristóteles, que ensinava passeando diante os discípulos e com eles, ao
ar livre. Quem não se lembra dos “peripatéticos” do “liceu”? E Jesus e os
discípulos eram “notados” pelo facto de se deslocarem com o Mestre, embora
fosse frequente sentarem-se em seu redor para o escutarem, muitas vezes, ante
as multidões. Mas que andavam, lá isso andavam. E o mandato do Cristo é
basicamente: ide por todo o mundo e
pregai o Evangelho a toda a criatura (Mc 16,15). E eles cumpriram: eles partiram a pregar por toda a parte (Mc
16,20).
Por seu turno, o papa Francisco quer que
os cristãos e os pastores (e mesmos os eminentíssimos cardeais vão a todas as
periferias, como construtores da paz); e, logo na primeira homilia do seu pontificado
(perante os cardeais que tinham acabado de o eleger), traçou reiterada e claramente
as linhas do dinamismo apostólico: caminhar, edificar, confessar Jesus Cristo
Crucificado.
É certo que
aquele que caminha precisa da cátedra para se sentar com vista ao descanso e ao
ensino mais tranquilo, que também são situações e necessárias.
Quanto à
autenticidade da cadeira existente em Roma – objeto que serve de pretexto
simbólico para a celebração da festa da cadeira de São Pedro, agora
simplesmente em Roma, já que foi ali que Pedro passou os últimos anos de vida
apostólica e de seu martírio como que surgiu o testamento do ministério petrino
a partir dali, de Roma – também podemos atentar naquilo que rezamos
historiadores.
A Cátedra, ou
seja, o trono de Pedro, guardado até ao século V, no batistério de São Pedro, é
uma relíquia que possui a forma de cadeira de espaldar alto e se encontra
atualmente na abside da Basílica Vaticana. Consta apenas de alguns pedaços de
tábuas, ligadas por placas de marfim. Desde o século XVII está encerrada num
grande relicário de bronze dourado, obra projetada e construída por Gian Lorenzo Bernini entre os anos 1647 e
1653.
A cadeira de um bispo ou de outra
autoridade religiosa (superior de mosteiro/convento, imã, rabi, lama),
especialmente se dentro de uma catedral, é chamada cátedra (cathedra do latim). A cátedra do papa, bispo
de Roma, é por ele utilizada como “trono” para o seu exercício de
autoridade máxima e de magistério solene, dito ex cathedra. Até Paulo VI, o papa entrava na Basílica
Vaticana na cadeira-andor – sede gestatória – mostrando-se acima dos ombros de
doze homens, os sediários.
Alguns historiadores e técnicos de história
de arte afirmam que a relíquia religiosamente conservada foi utilizada pelo
próprio São Pedro, o que não julgo provável; outros, porém, afirmam que, na
realidade, aquele objeto-monumento foi um presente de Carlos II de França ao
Papa Adriano II, em 875. Também é certo que existe uma
inscrição muito mais antiga, datada de 370, atribuída ao papa São Dâmaso,
mencionando uma cadeira portátil dentro do Vaticano, que fora objeto de
veneração e pretexto para celebração de festas, anteriores a essa data. Assim,
da primitiva cadeira existiriam apenas uns pequenos pedaços que seriam encrustados
nesta nova cadeira, também de madeira, que se encontra lacrada no mencionado
relicário.
Para se compreender a relevância
deste objeto e seu relicário é preciso pensar que, no tempo de Bernini, se
estava em plena contrarreforma em que foram construídos diversos outros
relicários com a intenção de proteger as respetivas relíquias, de que se
destaca O Êxtase de Santa Teresa. Uma
e outra relíquia compaginam belos espécimes da arte barroca, em que se fundem
elementos escultóricos e arquitetónicos em rica policromia, com
manipulação de efeitos de luz. Depois, a relíquia “petrina” possui um painel
com estofos padrão com um baixo-relevo que representa a entrega das chaves do
céu a Pedro por Cristo. E, na cúpula em cima do relicário, estão inscritas em latim
as palavras do Evangelho de Mateus que Jesus dirige a Pedro: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a
minha Igreja as portas do inferno nunca prevalecerão contra ela. Eu
te darei as chaves do Reino dos Céus e o que ligares na terra será
ligado nos céus. E o que desligares na terra será desligado nos céus"
(Mt 16,18-19). Diversos anjos estão em torno do painel e, em baixo, há um
assento almofadado de bronze.
Voltando à simbologia da cadeira, é
de insistir que ela é um documento escultórico-arquitetónico que nos reporta a
missão de Pedro: estribado na oração que
Jesus Cristo fez por ele, fortalecer os irmãos na fé (Lc 22,32), apascentar os cordeiros, apascentar as
ovelhas (Jo 21,15-17). Ora, quem passou pela experiência de apascentar
cordeiros e ovelhas, bem sabe do cuidado, da solicitude e da paciência que é
preciso mobilizar permanentemente. Mais do que o “trono”, cadeira ou cátedra, é
preciso utilizar: os passos, para procurar as ovelhas que se percam, se buscarem
os melhores lugares de pasto e se transportarem as melhores forragens; o cajado,
para arrimo (não para bater nas ovelhas, mas para lhes indicar o caminho); a
manta e o capote, para resguardo do frio e acolhimento da ovelha mais frágil ou
mais doente; e as botas, polainas e chapéu ou boina, para enfrentar os escolhos
e as intempéries. Mas a “cátedra”, talvez necessariamente improvisada e andante,
há de servir para ensinar os melhores caminhos, ensinar a escolher os pastos
mais adequados a cada momento, ensinar a escolher as melhores parcerias de vida
e de acasalamento.
Quando Pedro chegou a Roma, a sede do
império achava-se no auge do poder despótico e da corrupção. Nos palácios, templos,
parques e teatros reinavam a pompa e o luxo desmesurados. Com as riquezas das
províncias mais longínquas, tinham chegado os ídolos, a superstição e
os vícios de outras paragens. Ao lado das riquezas asfixiantes, grande parte da
população gemia sob o mais vil jugo da escravidão. O imperador era considerado o
divino “Deus e Senhor”, e como tal recebia dos aduladores as supremas
homenagens. O vício, sob as formas mais hediondas, ostentava-se publicamente e,
para o justificar, pululavam as divindades às quais se oferecesse incenso –
cerimónia que os cristãos recusavam com desassombro.
Naquele ninho de luxúria pútrida, o
principal representante de Jesus Cristo veio pregar o Evangelho e ficou a
aguentar a luta no terreno – tarefa bem espinhosa; naquele reino de soberba presumida,
fundou e alimentou uma Igreja que perdura há vinte séculos e forneceu como
semente de cristãos milhares de mártires; naquele terreno sísmico, estabeleceu
a “cadeira da verdade” sofrida; e aí, reconhecendo-se indigno de ter um fim igual
ao do divino Mestre, ofereceu a vida em sacrifício no patíbulo da cruz, feito
cadeira, trono e altar.
Assim, com um testemunho de fim, tão
eloquente como o da vida, Simão, filho de João, deu o visível pontapé de baliza
do grande desafio-desígnio indicado pelo arcanjo Gabriel a Maria, sobre Cristo,
cujo “reino não é deste mundo” (Jo
18,36):
“Darás
à luz um filho ao qual porás o nome de Jesus. Este será grande e chamá-lo-ão
Filho do Altíssimo. Ele reinará eternamente sobre a casa de Jacob e o seu reino
não terá fim” (Lc 1,31-33).
Eis o papa Francisco, sem deitar fora os
tesouros vaticanos, mas entusiasticamente a transportar consigo a cátedra de
Pedro para andar por ceca e meca a
presidir ao exercício da missão dos discípulos de Cristo, o jogo que não terá
fim enquanto mundo houver: “Ide e
doutrinai todas as gentes, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito
Santo, ensinando-as a observar tudo quanto vos mandei” (Mt 28,19-20).
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