quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Situações precárias e instáveis dos povos e da Igreja


O Beato João Paulo II esteve em Portugal no ano de 1991 com vários objetivos de que destacou, no ato de confiança a Nossa Senhora de Fátima, pronunciado durante a celebração eucarística de 13 de maio, agradecer “a constante proteção que nos livrou de tragédias e destruições irreparáveis e favoreceu o progresso e as conquistas sociais dos nossos dias”. Porém, apesar de as “mudanças inesperadas” haverem restituído a confiança a povos longamente oprimidos e humilhados”, o pontífice, em jeito de oração à Virgem, lança o seguinte alerta ao mundo inteiro: “As novas situações dos povos e da Igreja são ainda precárias e instáveis. Existe o perigo de substituir o marxismo por uma outra forma de ateísmo, que adulando a liberdade tende a destruir as raízes da moral humana e cristã”. Ao tempo, impressionou-me este alerta e confidenciei esta impressão a alguém que me tem brindado com a sua amizade, o então padre Cândido de Azevedo, hoje monsenhor.
Vêm estas considerações a propósito de a 25 de maio próximo ocorrerem as eleições para o Parlamento Europeu e o mundo, sobretudo o europeu e o que mais de perto envolve a Europa, estar mergulhado naquela situação de “quem morre de fome e sem assistência na doença, de quem sofre injustiças e afrontas,  de quem não encontra trabalho, casa nem abrigo, de quem é oprimido e explorado de quem desespera ou em vão procura o repouso longe de Deus” (isto rezava João Paulo II naquele dia – aviso para quem só descobriu muito recentemente a preocupação social da hierarquia católica). Ao mesmo tempo, criaram-se ocasiões não pouco duradouras de abertura ou reabertura de “novos fossos de ódio e vingança”, parecendo estar o mundo a ceder “à ilusão de um falso bem-estar que avilta a dignidade da pessoa e compromete para sempre os recursos da criação” – previa o papa. 
Face a tais situações e factos, hoje pandemicamente alastrantes, cresce na Europa a avassaladora onda das formações partidárias que negam o projeto de solidariedade europeia (já de si tão fragilizado nos últimos tempos) ou dele duvidam e descreem, propondo soluções políticas discriminatórias eivadas de não oculta xenofobia, de restrições à liberdade de circulação de pessoas, atividades e bens, e de formas alternativas de terrorismo dos Estados ou dos grupos económicos e financeiros, desprezando os ditames fundamentais da ética estribada em princípios axiológicos e promotora dos valores antropológicos. Perante este desenho de conjuntura, que gostaríamos que não se tornasse irreversível, quais têm sido as posições dos deputados ao Parlamento Europeu e, em especial, dos que lá foram colocados pelos votos dos portugueses? A resposta parece ficar pelo “nada de significativo”, pois, as suas atenções têm-se centrado na apreciação crítica e nem sempre coroada de êxito das diretivas a transpor para as legislações nacionais e da elaboração de pareceres e relatórios atinentes àqueles belos projetos carregados de humanismo personalista, igualdade de género, censura a estes ou àqueles povos que desrespeitam os direitos do homem, com tanta retórica e tão pouca força anímica que tudo fica quase na mesma.
Em Portugal, ao aproximar-se o ato eleitoral europeu, um deputado em funções cria um novo partido; um designado cabeça de lista de uma determinada formação partidária, em vez de prometer o acerto da composição da lista que vai liderar e de acenar com as bases do projeto que eventualmente irá defender, exige a imediata designação do seu principal adversário na corrida eleitoral; o partido interpelado apressa-se a proclamar a resposta efetiva à exigência, embora o indicado possa desempenhar suficientemente o múnus de que é incumbido; e o designado pela força partidária mais igual a si mesma lá vai aguentando, contra todas as troikas, o otimismo da futura vitória das classes trabalhadoras na Europa como no presente em Portugal (Sobre a vitória, não dos trabalhadores, mas sobre os trabalhadores atualmente no ativo e sobre aqueles que já estiveram no ativo, já temos dissertado alguma coisa!).
Por motivos, que o diretor do Expresso denomina de “prostituição política”, a Comissão Europeia tem apoiado quase indistintamente as sublevações populares (algumas delas bem radicais), umas vezes, destituintes de órgãos políticos democraticamente eleitos, outras, sem se apresentarem como construtoras de alternativa mais democrática, pacífica e eficaz. Porém, as autoridades europeias, coerente ou oportunisticamente, “condenam”, ameaçando com o não desbloqueamento das “tranches” financeiras inerentes aos programas de ajustamento, todas as manifestações contestatárias das políticas europeias – na Grécia, na França, na Espanha, na Itália, em Portugal – ao mesmo tempo que reiteram hipocritamente o democrático direito de manifestação.
Tendo aludido à proliferação do ataque a regimes com órgãos políticos democraticamente eleitos, às sublevações legítimas que não trazem melhores alternativas, às situações de pobreza alastrante e ao desrespeito pelos direitos humanos, em consequência do referenciado no título, não posso deixar de referir algumas das ondas de perseguição às Igrejas.  
O site http://destrave.cancaonova.com/cristaos-perseguidos/#sthash.qkuZSGNR.dpuf, dá-nos acesso a inquietantes informações de que destacamos as seguintes, embora com aparato discursivo nosso, com algum aditamento de oportunidade:
São perseguidos anualmente pela fé cerca de 105 mil cristãos, superando o número de mártires nos dois últimos séculos os de toda a história do cristianismo, que é mesclada com a história de incontáveis mártires – a poderosa semente de cristãos – que, desde os primeiros séculos até aos nossos dias, testemunham, com o derramamento de sangue, a fé incondicional em Jesus Cristo Filho de Deus Salvador.
A caça aos cristãos começou logo no início do cristianismo. O livro dos Atos dos Apóstolos relata do martírio do diácono Estêvão e do apóstolo Tiago e assinala vários momentos em que os apóstolos foram, insultados, presos e vergastados por causa de Cristo, em cujo nome se gloriavam de sofrer. O próprio Paulo de Tarso, fariseu convicto, de mero guardador de capas de lapidadores se tornara feroz perseguidor. A partir daí, o Cristianismo procedeu paulatina, mas firmemente, à sua diáspora, até que chegou a Roma, onde sob o imperador Nero (64 D.C), sob o pretexto da acusação de ateus (recusavam-se a adorar o divino imperador), incestuosos (tratavam-se por irmãos e casavam), antropófagos (comiam o corpo e bebiam o sangue de um indivíduo chamado Cristo) e idólatras (prestavam culto a um crucificado), se inaugura a onda da tentativa de aniquilação dos cristãos, a qual só terá fim três séculos depois.
“No início, os cristãos precisavam ser bem preparados para assumirem o batismo, porque abraçar a fé, naquela época, significava correr um perigo constante de morte”, afirma o padre Carlo, professor de história da Igreja na Universidade Santa Cruz de Roma.
Porém, falando de perseguições aos cristãos, nada pode se comparar ao Século XX. Atestam-no os mártires provenientes das grandes revoluções e regimes ditatoriais. A Revolução Russa (1917), por exemplo, terá levado à morte cerca de 17 mil sacerdotes e 34 mil religiosos. O bolchevismo espalhado pelo mundo declarou a religião como subversiva e inimiga do Estado, o que levou ao encerramento e destruição de igrejas, conventos e seminários.
Neste século XXI, o número de cristãos perseguidos tende a igualar-se aos do século passado. Segundo o sociólogo investigador David Barrett, no seu livro World Christian Trends AD 30-AD 2200, na primeira década deste milénio, foram assassinados 160 mil cristãos e, na segunda década, calcula-se já o número de 150 mil. 
Porque não se revelam estes dados? “Não é interessante para a mídia divulgar o martírio de cristãos”, diz a missionária do ministério Portas Abertas, um grupo evangélico fundado pelo Irmão André, que tem por missão dar suporte à “Igreja que sofre”. Segundo a missionária – que já visitou países como Cuba, Iraque e Paquistão – os cristãos desses países não possuem, muitas vezes, nem sequer uma Bíblia e vivem a sua fé sob a pressão torturante e letal de grupos radicais islâmicos. “Uma pessoa muçulmana que se converte ao Cristianismo, por exemplo, morre se não voltar atrás, mas, mesmo assim, eles não negam a fé em Jesus”, refere.
Mas os nossos dias inventaram um tipo de perseguição, que não passa necessariamente pelo sofrimento físico ou que leve ao martírio de sangue. Existe outra forma de perseguição que se espalha pelo mundo e por países que, dantes, eram profundamente cristãos. O papa fala hoje do martírio da ridicularização, ou seja, se alguém se denomina cristão no trabalho, na universidade ou coloca um crucifixo no peito, é ridicularizado por alienado, fundamentalista, medieval. Os crucifixos parecem ter-se portado mal e foram, também em Portugal, enxotados para fora da sala de aula.
Um exemplo da secularização equívoca, que redunda em hostilidade, mostra-se na libérrima França, que proscreveu também a burka e o véu islâmico. “Recentemente, a ministra do alojamento francês acabou de pedir, publicamente, que a Igreja devolva imóveis e salas para colocar outras pessoas dentro. O atual governo decidiu voltar atrás no reconhecimento de diplomas dos estudantes sob o argumento de que estas instituições estão ligadas à Igreja e ao Vaticano e não podem gozar dos mesmos privilégios das instituições estaduais”, disse Louis-Marie Guitton, responsável pelo observatório sociopolítico da diocese de Toulon. Também no Brasil, também começa a exibir-se esta modalidade de laicismo. Em março de 2013, a pedido da Liga Brasileira de Lésbicas, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul  determinou a retirada dos crucifixos e símbolos religiosos dos espaços públicos e prédios da justiça. Em novembro, o Procurador Regional dos Direitos do Cidadão, Jefferson Aparecido Dias, pediu a retirada do termo “Deus seja Louvado” das cédulas da moeda brasileira, o Real, com o argumento de que o Estado é laico.
Também, neste aspeto, sigo o argumento já por várias vezes apresentando contra semelhantes atitudes ostentadas em Portugal: o caráter aconfessional, ou mesmo laico, de um Estado não significa que se possa negar nem combater a cultura religiosa do povo. “Nós estamos num Estado cuja maioria da população é cristã, isto significa que ter um crucifixo, por exemplo, num prédio público é respeitar o sentimento religioso desta maioria e também a fé cristã que está impregnada na cultura do Brasil”, diz o especialista em direito civil Aleksandro Clemente. Já para Elizabeth, a referida missionária do ministério Portas Abertas, é preciso que os cristãos do Brasil aprendam com os países que se fecharam ao Evangelho. “Se nós formos ver, os países mais hostis ao Cristianismo, hoje, são aqueles nos quais o Cristianismo era muito forte no início, onde ele nasceu. Nós precisamos de estar atentos às leis que tramitam no Congresso, porque nenhum país se fecha ao Evangelho da noite para o dia, as coisas vão acontecendo devagar”, disse a missionária.
É necessário, de uma vez por todas, acertar nas vias da clarificação: não é desejável, em nome da autonomia das realidades terrestres, a mistura ou confusão entre a esfera dos Estados e a das Confissões Religiosas. Todavia, a secularidade (ou seja a não essencialidade da índole religiosa do Estado) ou o laicismo (a supremacia do caráter popular do Estado sobre quaisquer outras possíveis vertentes) não podem redundar em combate a qualquer religião nem a qualquer irreligião. Se o Estado não pode urgir nem propor uma religião ou um ensino religioso, também não pode impedir a prática e o ensino de uma religião desde que tal seja exigido ou proposto legitimamente. E, se quisermos avançar um pouco mais na linha do respeito dos direitos humanos, então há que adotar o sistema da laicidade positiva e suas consequências, proposta por Sarkozy e Bento XVI, segundo a qual o Estado e a Igrejas cooperam na facilitação do desempenho das tarefas próprias de cada uma das partes: as Igrejas veiculam as justas iniciativas de promoção estatais e o Estado dá espaço e tempo à prática da religião e seu ensino, sem intromissão ou mescla dos diferentes campos.
Para reflexão de todas as pessoas de boa vontade aqui transcrevo um excerto do discurso do referido pontífice em 12 de setembro de 2008, na cerimónia de boas-vindas no Eliseu:

(…) Vossa Excelência, Senhor Presidente, empregou a bela expressão «laicidade positiva» para qualificar esta compreensão mais aberta. Neste momento histórico em que as culturas se entrecruzam sempre mais, estou profundamente convicto de que se tornou necessária uma nova reflexão sobre o verdadeiro sentido e sobre a importância da laicidade. De facto, é fundamental, por um lado, insistir sobre a distinção entre o âmbito político e o religioso, para tutelar quer a liberdade religiosa dos cidadãos quer a responsabilidade do Estado em relação a eles, e, por outro, consciencializar-se mais claramente da função insubstituível da religião na formação das consciências e da contribuição que a mesma pode dar, juntamente com outras instâncias, para a criação de um consenso ético fundamental na sociedade.

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