quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Em torno de K e C



Quando escrevi o texto Francisco, “o guardião”?, autopropus-me refletir sobre o que se pode discorrer em torno dos significados das palavras cuja mensagem envolve determinadas questões teológicas. E estas duas letras terão, nesta perspetiva, o seu lugar nesta reflexão. Seguirei de perto o livro de Rómulo Cândido de Souza, então referenciado, mas obviamente com as alterações que o meu jeito e visão pessoal recomendam, a par da minha própria consulta aos dicionários de que disponho.
A propósito da palavra Kefa(s) e seu significado a aplicar ao chefe da Igreja Católica, o interlocutor de Rómulo Cândido de Souza, garante, a partir de uma série de dicionários, que aquele som vogou através dos séculos até aos dias de hoje.
Assim, o hieróglifo egípcio que representa o desenho da “mão” aberta ou em concha, era nomeado com o som D e, mais tarde na escrita, era representado pelo caráter D, pois, a ideia de “mão” era pronunciada d-r-t. Já quando se tratava da mão que protege, cobre, segura ou ampara, a palavra que a significava era kep; e, se era o braço estendido, dizia-se kept; mas a palavra que significava pata de leão (mão firme que afasta os inimigos do clã animal ou os esmaga se eles forem demasiado agressivos) soava kap. E havia palavras com som semelhante que reuniam algumas caraterísticas da mão (como acolhimento, protuberância, reentrância, refúgio, ninho, relicário). Tais são: keb, a significar intestinos, entranhas, vísceras, ventre, útero, interior da pessoa; kabt, com o sentido de seio, mama, teta; geb, a significar urna, vaso sagrado, cofre para restos mortais. Aí, as línguas semitas, que para significarem “mão” tinham palavra iniciada pelo som k, perante o hieróglifo acima referenciado, atribuíam-lhe o dito som k, som que se manteve para esta letra na maioria das línguas clássicas e modernas.
Deste modo, o assírio-babilónio regista kab, para mão que segura e garras de águia, bem como as suas variantes gab, qub e hub. O árabe, tem kaf () para gancho que prende e agarra, montanha sagrada, centro do mundo, nombril ou umbigo. Em sírio, kpá (verbo) significa cobrir, encubar as crias no ninho; kpaya (verbo) quer dizer chocar ou cobrir os ovos com o alento ou calor corporal; kpaká (verbo) tem o sentido de abraçar, agarrar com afeição e com os dois braços; e kapyait (advérbio) abrange os nossos advérbios modais “secretamente” ou “privadamente”. No sânscrito, temos: gup (guardar, proteger, esconder, fugir; secreto, confidencial; cuidado, proteção); gopa (protetor, guarda, defensor, pastor, vaqueiro, guardião); gupta-dhana (tesouro escondido), gupa (gruta, caverna, fonte, poço); e kubja (corcunda, cavo, abobadado).
Entretanto, se nos desviarmos um pouco para um excursus significativo pelas línguas ditas clássicas, encontraremos curiosidades interessantes. Assim, no grego, conceitos similares aos acima referenciados são representados lexicalmente por: kápetos (cavidade, reentrância); kefalê (cabeça); kefálaion (cabeça, fundamento); skáfe (berço); skáfos (navio); skáptos (mina subterrânea); skífos (vaso, taça, jarro, bule, leiteira). E o latim consigna, em seus dicionários, palavras como: capax, a significar “capaz”, ou seja, que agarra, que pega, que pode segurar, que pode conter, que pode prender com a inteligência, bem como palavras da mesma família, como capere (verbo), capedo, capeduncula, capis (respetivamente vaso para sacrifícios, pequeno vaso sacrificial e grande vaso com asas para beber) e caput (cabeça); habere (não esquecer que antigamente o h era aspirado como hoje no alemão e em muitos vocábulos no inglês), com o sentido de ter, segurar com as mãos, prender; habilitas, para habilidade, isto é, possibilidade de agarrar com a mente, com o coração ou com as mãos; e habitus, a significar hábito, ou seja, o que cerca, envolve, bem como a facilidade firme e constante de fazer.
É de notar que as palavras que significam cabeça (no grego, kefalê / kefálaion, e, no latim, caput) e termos similares semanticamente, também abrangem outros sentidos. A cabeça, ao mesmo tempo que é tida como a parte cimeira e mais importante do corpo, é o fundamento das ideias e projetos, sentimentos e emoções (embora tradicionalmente se considere o coração como motor das emoções e símbolo da benevolência); é a sede do juízo avaliativo e da tomada de decisões; é a guarda e resguardo dos dentes, da língua, do cérebro; é espaço de movimentação da língua; é a sede dos olhos e dos ouvidos; das sensações do olfato e dos sabores; é a porta de entrada do ar puro e da palavra ouvida ou lida; é a via de saída do ar saturado e das vozes benéficas ou malédicas; e é o centro aonde chegam todas as informações fautoras de euforia, admonitoras de risco ou perigo, prenhes de emoção e de temperança, e donde partem todas as recomendações de cautela, entusiasmo, de discernimento e de ação.
Mas, depois deste excursus, voltemos ao périplo pelas outras línguas. O inglês regista to have – palavra que provém do latim habere e tenere – no sentido, respetivamente, de ter ou possuir, segurar ou ter na mão (o castelhano tem o verbo “tener” e o francês, o verbo “avoir”); e o alemão tem os verbos haben, para ter, e geben, para dar, oferecer. E o português tem como o latim, as palavras cavo, cavidade, caverna, cofre, cabana, cabo, caber, capaz, capacidade, hábil, habilidade, haver, hábito – com os significados acima expostos. E temos as palavras “capa” e “capote” – do livro, do pastor – para resguardo, proteção, acolhimento, encobrimento (físico ou moral), e coevamente o “capoto” para revestimento exterior da habitação, contra infiltração de águas e de humidades.
Ora, todo este arrazoado vem ao caso do que vimos refletindo. Não basta sabermos que as nossas letras k e c provêm do grego K ou k (kappa), adaptado por seu turno do Kap ou kaf das línguas semitas, símbolo que representava a mão aberta ou em concha (Veja-se como abençoam, com a mão a desenhar no ar o sinal da cruz, os presbíteros, os bispos e o papa – até há pouco tempo, a mão e os dedos estavam em posição diferente conforme o benedicente de que se tratasse). Não basta satisfazermos a nossa curiosidade com a informação de esta letra terá sido adaptada, por sua vez, pelos povos semitas, que teriam vivido no Egito, a partir do hieróglifo que representa “mão”, como já expusemos, ou que, ao serem as palavras provenientes do grego assimiladas pelo latim, o K foi convertido em C ou Ch, mantendo esta língua o uso do K para palavras provenientes do etrusco, como por exemplo Kalendae, “o primeiro dia do mês”, que deu origem à palavra calendário. Não basta acolhermos, de boa mente ou constrangidos, a ideia da evolução das línguas românicas, que utilizam o K apenas em casos muito particulares, como por exemplo, em português, as palavras viking, kantiano, karaté ou Kart, ficando o uso desta letra restrito às abreviaturas, às palavras de origem estrangeira e aos seus derivados.
O nosso escopo, para lá do conhecimento linguístico, é continuar a enquadrar a reflexão produzida com o texto acima evocado Francisco, “o guardião”?.
Se o paralelismo fonético-semântico de kef / kéfas nas diversas línguas mostra a sua raiz no hieróglifo “mão” que acolhe, tapa, segura e protege, mão que oferece um presente, e “pata de leão”, que vigorosamente afasta os inimigos – também mereceu a perenidade da existência nas diversas línguas. A letra K (o “kappa” grego) provém do “Kep” (mão) egípcio, com o entendimento que descremos acima, e do “Kaf” (palma da mão) hebraico; e a letra C nada mais é que uma variante do K, aparecendo como a letra hebraica invertida a significar “concha”, “vaso”, “palma”.
Nestes termos, o pastor de cada comunidade e o pastor dos pastores, na sequência da reflexão constante do texto aludido, há de ter as funções (e promover que a comunidade que lidera também as assuma e exerça de modo ininterrupto e intenso) de: fundamento, passagem, voz, consenso, centro de diáspora para as periferias e centro de convergência a partir das periferias, resguardo dos tesouros mais valiosos, acolhimento, testemunho, proteção, refúgio, envolvimento, sede de movimento e renovação, pontificado entre céu e terra e entre terra e terra, exercício do alpinismo sagrado e deambulação por caminhos não andados.
Mantém total vitalidade o kaf hebraico (palma da mão, mão estendida, mão que acaricia, cavidade da mão, cavo, côncavo, vaso, curva, curvo, montanha sagrada onde o céu se encontra com a terra), com as variantes kafar (cobrir, encobrir, perdoar), kafár (cobertura, teto, lugar, lugarejo, vilarejo, gruta, e cobrir com a capa divina), kapóret (cobertura da arca da aliança), kefór (vaso, vaso sagrado que esconde as relíquias divinas, copo, cântaro), kófer (resina, cola, betume), kafas (reunir, juntar, concentrar), kafash (cobrir), keb (útero maternal onde se desenvolve o embrião da vida), kipá (abraço carinhoso que cerca e envolve), kipáh (ramo, folha de palmeira, folhagem copada da palmeira que, no deserto, dá sombra aos viandantes sedentos do trasncendente), gueb (navio que transporta uma carga preciosa, arca da aliança como lugar privilegiado da presença divina), guéfen (folhagem, ramo, palma), gaf (asa, asa que cobre os filhos de Deus, pena de ave), gafaf (encobrir, ser curvo, encurvar-se), guf (cercar, ser fundo ou cavo), haf (ninho, porto, teto, asilo), hafah (proteger, defender, cobrir, velar), hafa (ocultar, cobrir), hob (seio, útero, entranhas maternas, ninho, proteção, e fecundar, chocar, esconder e guardar um tesouro), hafar (escavar, furar, abrir um poço), héfer (gruta escavada na rocha petrina, cova, poço, cavidade, fosso, braço), hob (ovo, seio, útero, entranhas da mãe, que geram e protegem a criança) e hufah (abrigo, refúgio, proteção). E trata-se de sentidos assumidos originariamente pelo KEFA da misericórdia e do perdão, que reputo de interesse teológico, alguns do quais grifei de modo especial neste parágrafo.
Em vez do poder pelo poder, propõe-se o serviço ou o serviço com poder eficaz; em vez da fiscalização e constrição, a promoção e a liberdade; em vez da omnipotência e da visibilidade, a misericórdia e a discrição; em vez da suma justiça e do rigor, a suma afabilidade e o perdão; e ao lado do Deus que é Aquele que é, o Deus que está sempre disponível.

Assim, a Igreja de Jesus Cristo presente no século XXI será o verdadeiro Kaf hebraico : a palma da mão que detém a capacidade de realizar todo o seu potencial, na via da pulcritude, em prol do homem que veio a este mundo e a quem o Redentor do Homem quer cumular de vida e vida em abundância – em prol do que se encontra o Kefa(s) apostólico incarnado nos pastores.

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