quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Em 2023, as pensões e o IAS aumentarão mais que o previsto

 

Apesar de a taxa da inflação, em novembro, ter descido ligeiramente (para 9,9%), na Zona Euro, o que pode evitar que o Banco Central Europeu (BCE) proceda a novo aumento da taxa diretora dos juros em 75 pontos base, o Governo, considerando que a taxa da inflação é bastante superior à prevista inicialmente, confirma que as pensões subirão mais em janeiro de 2023 do que a estimativa feita em setembro.

Na verdade, Ana Mendes Godinho, ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS), revelou, a 30 de novembro, que a atualização das pensões até 960 euros será de mais quatro décimas do que o previsto e que o Governo tudo fará para que a atualização seja paga já em janeiro. Assim, as pensões subirão entre 3,89% e 4,83% a partir de 1 de janeiro de 2023, uma revisão em alta, face aos valores percentuais anunciados em setembro, por causa do valor final da inflação de novembro, o que acarreta um acréscimo de despesa em mais 110 milhões de euros no orçamento da Segurança Social. Nestes termos, segundo a governante, “as pensões até 960 euros terão uma atualização de 4,83%, que é, no fundo, o valor que é o diferencial necessário para cumprir exatamente o valor que está previsto na fórmula [de cálculo], complementando com a meia pensão que já foi paga”. Já nas pensões entre 960 euros e seis Indexantes de Apoios Sociais (IAS), o aumento será de 4,49% e, nas pensões de mais de seis IAS, o aumento será de 3,89%. Ficam de fora as pensões que, por lei, não são objeto de atualização anual.

Também o valor do IAS será atualizado em 8,4%, em vez de 8%, passando para 480,43 euros.

Estes ajustamentos, quer nas pensões, quer no IAS, têm por base os dados da inflação divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), a 30 de novembro, que indicam que a inflação média dos últimos 12 meses, sem habitação (que tipicamente serve de referência para a atualização do IAS e das pensões) foi de 7,46%, em novembro, acelerando face aos 6,83% do mês anterior.

Em comunicado, o MTSSS refere que o IAS – indexante usado para diferenciar a atualização das pensões em função do seu valor mensal – terá em 2023 um “aumento de 8,4%, passando de 443,20 euros para 480,43 euros”. Inicialmente, o Governo tinha referido que o IAS seria atualizado em 8%, mas admitindo que o valor seria ajustado, se a inflação final fosse mais alta do que o estimado.

A taxa de inflação também terá descido, em Portugal, para 9,9% em novembro, segundo a estimativa rápida divulgada pelo INE. Os valores ainda hão de ser confirmados e, embora os preços continuem a subir, a inflação baixou, já que, em outubro, estava nos 10,1%. Assim, a taxa calculada nesta estimativa do INE é, inferior em 0,2 pontos percentuais à registada em outubro.

Com base na informação já apurada, o INE sustenta que “a taxa de variação homóloga do Índice de Preços no Consumidor (IPC) terá diminuído para 9,9% em novembro, taxa inferior em 0,2 pontos percentuais à observada no mês anterior”. Como este índice mede a evolução temporal dos preços de um conjunto de bens e serviços representativos da estrutura de despesa de consumo da população residente em Portugal, isto significa que houve uma desaceleração face a outubro, mas ainda se regista um nível de preços com uma taxa perto dos 10%.

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Já há uns tempos, a ministra garantia que havia almofada orçamental para um aumento das pensões maior do que o previsto. Porém, o Governo tem apostado em não gastar nos apoios sociais todo o excesso de receita que arrecada, em virtude da incerteza resultante do aumento da inflação, do aumento dos preços de produtos essenciais, da crise energética, agravados pelo inverno que se avizinha e pela situação de guerra na Europa sem fim à vista. Nesta atitude prudencial, o Governo é, por um lado, objeto de críticas acerbas por parte dos partidos da oposição, dos funcionários públicos e dos pensionistas, e é, por outro lado, secundado por muitos analistas e observadores.

Entretanto, em sede de discussão do Orçamento do Estado para 2023 (OE2023), os deputados aprovaram, a 23 de novembro, uma proposta de alteração ao OE2023 do PS que permite nova atualização das pensões, caso a inflação seja superior ao previsto. A proposta, que foi aprovada com os votos favoráveis do Partido Socialista (PS) e mimada com o voto contra do Chega e a abstenção dos demais partidos, estabelece: “O Governo procede através de portaria à atualização das pensões e demais prestações acima das percentagens previstas n.º 1 do artigo 5.º da Lei n.º 19/2022, de 21 de outubro, [Regime transitório de atualização das pensões] em função da evolução do IPC e do crescimento do PIB [Produto Interno Bruto].” E foi este o texto que abriu caminho a novo aumento das pensões em 2023. Porém, mereceu duras críticas por parte dos vários partidos da oposição durante o debate que, no dia 23, antecedeu as votações na especialidade.

Pior sorte teve uma iniciativa do Partido Comunista Português (PCP) que previa a atualização para todas as pensões em 8% do seu valor, com um montante mínimo de 50 euros por pensionista, a partir de 2023. O plenário confirmou, no dia 23 de novembro, a rejeição, na especialidade, da proposta de alteração ao OE2023 do PCP sobre aumento das pensões, após um debate em que oposição acusou Governo de não cumprir a lei.

A proposta, avocada para votação em plenário, foi rejeitada pelos votos contra de PS e Iniciativa Liberal (IL), tendo recolhido o voto favorável de PCP, Chega, Bloco de Esquerda (BE), Partido Pessoas Animais e Natureza (PAN) e Livre e a abstenção do Partido Social Democrata (PSD).

A votação da proposta foi precedida por um debate em que vários partidos da oposição acusaram o Governo e o PS de estar a “rasgar a lei” e a cortar no rendimento dos pensionistas perante o contexto de inflação elevada. Para o PCP era a “oportunidade de repor a verdade na relação entre o Estado e pensionistas” e de repor o poder de compra, tendo Alfredo Maia acusado o Governo de insistir “numa efabulação” que “equivale a dizer que não há perda de poder de compra dos pensionistas” em 2023. “Rasgar a lei” foi a forma usada por Pedro Filipe Soares, líder da bancada do BE, para se referir à solução do Governo em relação às pensões, notando que tal acontece ao invés do que sucedeu nos anos anteriores, em que o PS não tinha maioria absoluta.

Porém, Gabriel Bastos, secretário de Estado da Segurança Social, respondeu às acusações, dizendo que “governar é bem diferente do que colar cartazes com base em cenários hipotéticos criados sabe-se lá com que intenção”. “As pensões não foram cortadas em 2022, não serão cortadas em 2023”, vincou, para frisar que, em 2024, haverá oportunidade para falar quando se conhecer o resultado do grupo de trabalho que avalia a sustentabilidade do sistema. “Falaremos em 2024 com o pressuposto de que este Governo não falha com os compromissos assumidos pelos portugueses”, prometeu, lembrando que o PS apresentou a proposta de alteração ao OE2023 que permite ajustamentos à atualização prevista, se a inflação ficar acima do previsto.

Também o líder da bancada do PS, Eurico Brilhante Dias, precisou que as pensões aumentaram de forma consecutiva desde 2016 – vincando a diferença com o Governo anterior – e afirmou que as pensões aumentaram nesses anos com os votos do PS e, “em algumas circunstâncias”, com os do BE e do PCP. E vincou que aumentarão em 2023, “mas com os votos do PS”, que o PS não aceita lições, sendo com o Governo do PS que os pensionistas “continuarão a contar em 2024 para aumentar as pensões”.

Pelo Chega, Jorge Galveias, lembrou a proposta do seu partido de aumentar a pensão mínima até ao valor do salário mínimo nacional até ao final da legislatura, para assinalar que este tipo de medidas e de preocupações não são um exclusivo da esquerda.

Inês Sousa Real, do PAN, defendeu a necessidade de se reforçarem os apoios aos pensionistas, referindo que esta é a faixa etária “mais afetada” pela inflação, e Rui Tavares, do Livre, precisou que a única forma de se evitar que pensionistas percam poder de compra “é cumprir a lei”.

Pela IL, Rodrigo Saraiva apontou críticas aos partidos de esquerda por omitirem que “há problemas de sustentabilidade” da Segurança Social, e ao Governo por ter apresentado, em poucos meses, “quatro cenários distintos” sobre a sustentabilidade do sistema.

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Segundo a lei acima referida, o Governo decidiu atribuir, neste ano, aos pensionistas o valor equivalente a meia pensão, pago em outubro, e uma atualização, a partir de janeiro de 2023, que varia entre 4,43% e 3,53% em função do valor da pensão de reforma ou de aposentação. Contudo, tais percentagens são inferiores às que resultariam da aplicação da lei de atualização das pensões. Porém, o Governo comprometeu-se a fazer um ajuste aos valores definidos na lei, caso a inflação supere o previsto, sendo esta promessa concretizada através da proposta do PS aprovada nas votações, na especialidade, do OE2023. A fórmula de atualização considera o crescimento médio anual do PIB dos últimos dois anos, terminados no terceiro trimestre, e a variação média dos últimos 12 meses do IPC, sem habitação, disponível em dezembro ou em 30 de novembro.

Segundo o INE, a inflação média dos últimos 12 meses sem habitação foi, em outubro, de 6,83%, valor que compara com os 5,43% de agosto, quando o Governo aprovou o modelo de aumento das pensões em 2023 e o referido pagamento extra de meia pensão em outubro deste ano.

O OE2023 teve a sua aprovação final global no dia 25 de novembro, mas, apesar da boa vontade do Parlamento, muitos pensionistas terão de optar entre a alimentação e a medicação. Governar é difícil e discute-se muito, mas o povo tem cada vez menos e sofre demais.

2022.11.30 – Louro de Carvalho

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Governo pretende criar novo modelo de contratação de professores

 

O Ministério da Educação (ME) vai criar conselhos locais de diretores, que decidirão a colocação de professores. Diretores de escolas/agrupamentos de escolas criticam e lamentam não terem sido ouvidos. E os sindicatos dos professores discordam, mas por motivos diferentes.

Ao falarmos de professores neste contexto, referimo-nos a educadores de infância, a professores do ensino básico (1.º, 2.º e terceiro ciclos) e a do ensino secundário, ou seja, aos abrangidos pelo Estatuto da Carreira Docente (ECD), que não os do ensino superior.

Recentemente, o ministro da Educação reuniu com os sindicatos de professores, que estão contra a proposta do novo modelo de contratação de docentes, pois está em causa a passagem dos quadros de escola ou e agrupamento, providos por concurso nacional, a listas municipais e a decisão da escolha dos professores por conselhos locais de diretores.

Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), lamenta que os diretores não tenham sido ouvidos, pelo que a ANDAEP pediu audiência ao Ministro para tratar deste e de outros assuntos que os preocupam.

No atinente à medida, Filinto Lima vê com bons olhos a possibilidade de as escolas escolherem “alguns dos seus professores”, sustentando que este não deve ser tema “tabu, como pretendem alguns sindicatos”, que não deve ser posta em causa a boa-fé dos líderes das escolas e das suas equipas. Com efeito, pensa que a tutela criará “regras de escolha de professores pelas escolas cujos critérios ajudem a adequar o projeto educativo ao perfil do professor”.

Às críticas de sindicatos que temem o recurso à “cunha”, o presidente da ANDAEP lamenta “a forma como tratam os diretores e as equipas diretivas, que também são professores, pois em vez de os defenderem duvidam da capacidade de liderança, colocam em causa a idoneidade de profissionais de excelência”, alguns até sócios de sindicatos. Todavia, entende que não se deverá atribuir a um conselho local de diretores a tarefa que julga ser de cada escola.

Por sua vez, Arlindo Ferreira, diretor do Agrupamento de Escolas Cego do Maio e autor do blogue ArLindo, afirma a legitimidade dos receios de favoritismos, salientando: “No curto tempo da nossa democracia, ainda se verifica que a cunha é um enorme fator de compensação, porque não existem muitos mecanismos que a impeçam. E é o próprio poder político que continua a dar o exemplo de que a cunha é algo tão natural que é normal os docentes temerem essa possibilidade.”

Desconhecendo como se fará a transferência para os conselhos locais de diretores, discorda da contratação descentralizada, porque a história da Bolsa de Contratação de Escola (BCE) revelou os erros desse tipo de contratação, fazendo com que um professor ficasse colocado em inúmeras escolas e, como só poderia aceitar uma, atrasava todo o processo de colocações.

O fim da BCE, anunciado em 2016, deu lugar à Reserva de Recrutamento (RR), que se mantém e se baseia numa lista nacional de graduação profissional para colocar os docentes. E Arlindo Ferreira frisa que o concurso deve continuar centralizado, pelo critério da graduação profissional, que é o mais justo e o que os professores e as escolas aceitam com facilidade. Contudo, admite que a escola possa ter uma certa margem, mas curta e residual, para contratar alguns professores em casos devidamente justificados, em que o perfil do professor seja adequado ao projeto específico a desenvolver ou em desenvolvimento.

Luís Sottomaior Braga, professor de História e especializado em gestão e administração, diz estar em vigor um sistema de contratação transparente, ao passo que o proposto aumentará a litigância e os problemas de tipo corruptivo, por ser opaco e propenso à intervenção humana de favorecimento. Refere que, nas escolas onde foi diretor preferiu sempre o sistema de graduação, simples e eficaz para os curtos tempos de seleção e com as virtudes da transparência e declareza. O agora subdiretor do Agrupamento de Escolas da Abelheira, em Viana do Castelo, mostra-se contra a proposta do ME, afirmando tratar-se de “reformismo”, que não passa de “subversão dogmática de um instrumento de política pública que prestou bons serviços ao país durante décadas e com o pano de fundo de visar atacar direitos legítimos dos professores”.

Além disso, sublinha que o novo modelo exercitará o dogma da municipalização, “que se vê falhar todos os dias”, e que a atribuição da gestão das mobilidades de pessoal docente a um inventado conselho local de diretores “é uma medida péssima, que só quem conhece mal a história do sistema de ensino e de colocação de professores acha possível”. Por outro lado, diz que o governo está a pensar num mecanismo facilitador da desorçamentação, que é a sua linha política na gestão da educação, em que só há dinheiro para despesa, se esta couber nos fundos comunitários.

Relembra o “falhanço” da BCE: “As colocações em oferta de escola e a chamada BCE, no passado, quando se afastaram os critérios de graduação, deram origem a muitos casos de preferências ilegítimas e ilegais. Chegou a ser critério para escolher um professor o sítio onde morava.” E não crê necessárias alterações ao modelo de seleção de professores, mostrando-se apenas satisfeito com a redução de Quadros de Zona Pedagógica (QZP), proposta pelo ME.

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A FNE, em resposta ao desafio da tutela, fez chegar ao ME um conjunto de contrapropostas, que dizem respeito à operacionalização do novo regime de seleção e recrutamento de docentes, que garanta a total clareza do processo e uma negociação consistente e clara. É, pois, indispensável que, em resultado deste processo, se atinja um regime em que os educadores e professores depositem confiança, por ser objetivo, transparente, justo e equilibrado. Porém, a proposta do ME é genérica e não clarifica nem densifica, de forma consistente, as designações sugeridas para os mapas de docentes, gera confusão e pode criar a conceção de que se trata de um novo paradigma.

Sobre estrito o regime de concursos, a FNE quer garantida, além de outros pontos, a correta dimensão dos quadros de escola/agrupamento de escola, para o que é necessário identificar as reais necessidades de cada escola, em termos das respostas de cada uma aos níveis de educação, ensino e formação que oferece. O apuramento destas necessidades permanentes, que determinam a nova composição dos quadros (ou mapas) dos agrupamentos de escola/escolas, é catalogado como “crítico e decisivo”, pois neles residirá um dos pontos fulcrais da qualidade da intervenção legislativa. Por isso, a FNE propõe o envolvimento dos órgãos da escola, como o Conselho Geral e o Conselho Pedagógico, em tal apuramento.

Segundo a FNE, os concursos internos de periodicidade quinquenal não contribuirão para maior estabilidade e bem-estar do corpo docente e podem ser fator de desmotivação e mal-estar dos docentes que obtenham colocações, por os afastar das residências e das famílias, por um longo período de tempo, sem possibilidade concursal de aproximação.

Ao invés da FNE, discordo da extinção de lugares do mapa após três anos de Destacamento por ausência de componente letiva (DACL), por nefasta. Os docentes não podem ser obrigados a concorrer, por extinção do lugar, para lá do concelho a que pertence o respetivo agrupamento.

A acontecer, o dimensionamento dos Mapas Docentes Interconcelhios (MDI) deve ter em conta o seu caráter meramente supletivo, com o objetivo de suprir necessidades eventuais do sistema educativo, tendo em linha de conta a previsibilidade de necessidades de caráter transitório.

respeito pela graduação profissional (lista graduada) nacional, em todas as etapas concursais, continua a ser um dos pontos de honra da FNE. Por isso, o preenchimento dos lugares dos MDI tem de ser sempre realizado por concurso nacional e com respeito pela lista graduada nacional.

Além disso, a FNE exige: adequada composição geográfica MDI, para promover a estabilidade; e não entrega do processo de afetação de docentes do MDI para o preenchimento de necessidades transitóriasum Conselho Local de Diretores de Agrupamentos de Escola.

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Após reunir com o ME, o secretário-geral da Federação Nacional de Professores (FENPROF), criticou o modelo apresentado, dizendo ser o “início de um processo de municipalização das colocações de professores”, que pretende “acabar com a mobilidade interna”, mecanismo que permite que se possa aproximar de casa quem trabalha a centenas de quilómetros.

Entretanto, como o primeiro-Ministro afirmou confiar num acordo com os sindicatos para acabar com os professores de casa às costas, a FENPROF, tendo em conta os últimos desenvolvimentos, diz não ter a confiança que o primeiro-ministro afirma ter.

A FENPROF discorda da substituição dos quadros por mapas de pessoal em clara violação do disposto no ECD; discorda de serem os diretores a decidir a alocação de professores às escolas; considera negativa a eliminação da mobilidade interna; discorda da criação de zonas coincidentes com as das entidades intermunicipais (comunidades e áreas metropolitanas); diverge do ME em relação à relevância da graduação profissional, vincando que, não sendo critério perfeito, é, de todos, o menos imperfeito para a colocação em todas as fases e modalidades do concurso; e não concorda com mecanismos que impedem os professores dos quadros de se aproximarem da área de residência, impondo-lhes “a casa às costas” a dezenas ou centenas de quilómetros, por não lhes serem facultados os lugares disponíveis.

O ME quer substituir o direito de os professores aproximarem a colocação, por concurso, da área da residência pelo dever de adquirirem residência no local onde são colocados, o que é inaceitável até porque aos docentes colocados longe da residência familiar, não é atribuído suplemento para se fixarem, deslocarem a família e iniciarem nova vida, tendo maior parte deles mais de 40 anos.

A vingar a proposta de acabar com os professores de “casa às costas”, milhares de professores ficariam em eterno desterro e estaria dado o primeiro passo na sujeição das colocações aos critérios de diretores e ao curso da municipalização.

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Por mim, professor aposentado, reitero a minha discordância da municipalização da educação, que não passa de mais um setor em que o município exercerá o seu poder, sendo legítimos todos os meios, ou será forma de privatização do ensino pela via da concessão a privados. E devo frisar que a colocação dos professores, que sempre foi dada como não sendo competência do poder local, a sê-lo-á, não da câmara, mas dos diretores, cuja designação reflete, quase sempre, a vontade da câmara. Era de esperar: quem manda controla os principais atores da atividade em causa.

2022.11.29 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

É de otimizar a participação de alunos em avaliações internacionais

 

Decorreu, na Fundação Calouste Gulbenkian, das 17 às 18,30 horas de 28 de novembro, a sessão de apresentação do estudo “Avaliação de Aprendizagens em Instituições Educativas”, sob a coordenação de Júlio Pedrosa, que foi ministro da Educação no XIV Governo Constitucional, liderado por António Guterres – estudo que analisa o papel das métricas globais de avaliação, que os autores consideram úteis, mas apenas se utilizadas de forma complementar às que existem nos sistemas nacionais de avaliação.

Abriu a sessão o Dr. Guilherme d’Oliveira Martins, Administrador Executivo Fundação Calouste Gulbenkian, após o que se seguiu a aprestação do estudo por Júlio Pedrosa, Professor Jubilado da Universidade de Aveiro, e Carlinda Leite, Professora Emérita da Universidade do Porto. Por fim, moderada por Júlio Pedrosa e Carlinda Leite, desenvolveu-se a discussão, em que intervieram Ariana Cosme, Professora Auxiliar da Universidade do Porto, e José Augusto Pacheco, Professor Catedrático da Universidade do Minho.

O estudo incidiu, em dinamismo de recolha e de análise, sobre indicadores, modelos e experiências de monitorização e avaliação de aprendizagens e de desenvolvimento das crianças e jovens dos três aos 18 anos, em Portugal e num leque alargado de países, construindo fundamentos para avaliar a situação em Portugal e propor desenvolvimentos e melhorias.

O desafio abrangeu: a estruturação de uma abordagem aprofundada e fundamentada da avaliação formativa e da avaliação de competências transversais; a fundamentação e a apresentação de exemplos de boas práticas de formação para a avaliação de aprendizagens, com adequada ponderação de fatores a considerar (contextos, políticas nacionais, organização e governança da Educação Escolar, etc.); a procura de estudo de casos em que a avaliação da educação pré-escolar seja o foco; e o tratamento da avaliação na educação secundária, com atenção à diversidade de públicos e de programas, com especial atenção ao impacto e gestão da avaliação para acesso a educação pós-secundária de oferta diversificada e diferenciada.

Segundo os autores, o estudo apresenta a evidência de que acompanhar e promover as aprendizagens, medir e aferir os resultados alcançados, interagir de modo regular, sistemático, em sala de aula, são ações fundamentais para se dispor de boa educação. Tal orientação deve ser apropriada por todos os atores e grupos de interessados, a envolver, de modo sistemático no desenvolvimento de uma estratégia e plano de ação. Por outro lado, os alunos portugueses participam em vários estudos internacionais que avaliam aprendizagens e competências, mas as conclusões são pouco aproveitadas, pelo que se sustenta que se devem utilizar melhor esses resultados e recomendações nas políticas de educação.

Com o objetivo de avaliar as práticas de avaliação de aprendizagens das crianças e jovens dos três aos 18 anos, em Portugal, o estudo em referência analisou o contexto português, comparando-o com o cenário de outros 10 países: Singapura, Estónia, Alemanha, Noruega, Finlândia, Suíça, Reino Unido, Canadá, Brasil e Estados Unidos. E um dos aspetos da análise foi, como já se referiu, o papel das métricas globais de avaliação, que os autores consideram úteis, mas se utilizadas de forma complementar às que existem nos sistemas nacionais de avaliação.

Ora, em Portugal, além das componentes de avaliação formativa (autoavaliações, diagnóstico e provas de aferição) e da avaliação sumativa (provas finais e exames nacionais), os alunos participam num conjunto de estudos internacionais, como: o Programme for International Student Assessment (PISA), que avalia os alunos de 15 anos em leitura, matemática e ciências, desenvolvido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE); o Trends in International Mathematics and Science Study (TIMSS), avaliação internacional do desempenho dos alunos do 4.º e do 8.º anos de escolaridade em matemática e em ciências, desenvolvida pela International Association for the Evaluation of Educational Achievement (IEA); e o Progress in International Reading Literacy Study (PIRLS), que avalia a literacia de leitura dos alunos do 4.º ano de escolaridade, também sob a orientação da IEA. 

Contudo, os autores referem que a utilização dos dados e das recomendações fornecidos pelos resultados dos alunos “é ainda relativamente escassa” e consideram que existe “potencial para rentabilizar o investimento inerente a essa participação”.

Uma das 10 recomendações apontadas no estudo incide, precisamente, sobre esse tema e os especialistas propõem que se estruture uma iniciativa de avaliação do seu envolvimento nesses estudos, sobretudo quanto à forma como os resultados são usados.

O documento refere também que, em Portugal, o peso dos exames nacionais para a transição para o ensino superior constitui “um “travão” ao recurso a práticas de avaliação formativa que valorizem aprendizagens para lá dos conteúdos relacionados com o saber já existente.

Ao mesmo tempo, as classificações na educação pré-escolar são, não raro apoiadas pelo que os autores descrevem como checklists estandardizadas, quando, neste nível de educação e ensino, o objetivo da avaliação deve ser contribuir para melhorar os processos de ensino-aprendizagem, não para classificar. Com efeito, uma avaliação neste período de desenvolvimento da criança “deverá ter uma orientação eminentemente formativa”, refere o estudo.

Os autores apontam mais outros dois aspetos a merecer atenção da tutela: o reduzido número de estudantes do ensino profissional que segue para o superior e o desfasamento entre a idade esperada e a idade real média dos alunos em alguns níveis da escolaridade obrigatória, que “indica percursos escolares marcados por retenções e pelo risco de abandono escolar”.

Entre as recomendações do relatório, destaca-se o potencial de alguns casos internacionais e dos contributos de agências com intervenção na área da avaliação educacional, como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) ou a OCDE.

Os especialistas sugerem também o planeamento e acompanhamento de práticas de avaliação nas escolas que promovam a articulação entre as avaliações formativas e sumativas, além da implementação de um Plano Nacional de Avaliação de Aprendizagens, orientado nesse sentido.

No atinente aos professores e educadores, deve a formação inicial e contínua incidir no tema da avaliação de aprendizagens, bem como nos apoios tutoriais em iniciativas de formação.

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A 26 de novembro, já a jornalista Isabel Leiria, levantava, no Expresso online o véu que envolvia o estudo em causa, esquadrinhando o que se passa na escola  

As pessoas associam facilmente à avaliação as notas ou classificações (traduzidas em menções e ou em números). Ora, perante uma turma com alunos muito diferentes, é imperativo trabalhar com eles, de modo que possa cada um fazer o seu caminho e chegar o mais alto que conseguir.

Na verdade, mais do que testes e exames, a legislação determina que a principal modalidade de avaliação dos alunos é a formativa, ou seja, a que permite ir recolhendo elementos sobre o que cada criança e jovem está a aprender e perceber o que já foi alcançado e o que há a melhorar. Todavia, na prática, é a avaliação sumativa (os testes e as notas que deles resultam) aquela a que “gestores escolares, docentes, alunos e pais dão mais importância”, mesmo quando se reconhece que esta “serve apenas para a classificação dos estudantes” e que é a avaliação formativa que “potencia o desenvolvimento das aprendizagens”. (Cf, por exemplo Decreto-lei n.º 55/2018, de 6 de julho, nomeadamente artigo 24.º, números 1, 2 e 5, e artigo 27.º, números 1 e 2.

Nas escolas, muitos professores dizem sentir-se muito condicionados pela importância que todos os agentes (gestores, alunos e pais) atribuem aos testes, em particular no ensino secundário, pelo papel que as notas desempenham no acesso ao ensino superior. E a síndrome dos testes já perpassa o 1.º ciclo do ensino básico, aliada ao excesso do acervo dos conteúdos curriculares.

Porém, a importância dada aos exames que faz com que estes sejam o fator que mais influencia as práticas avaliativas e curriculares nas escolas. Os exames condicionam a introdução de práticas e metodologias de ensino inovadoras, porque o que conta são as notas que os alunos obtêm nos exames e a imagem que elas passam sobre a escola para o exterior. Enquanto houver exames, haverá pouca disponibilidade para práticas de avaliação que se afastem do paradigma sumativo.

Ora, mais do que oposição entre duas modalidades – a sumativa, com os momentos formais de avaliação, testes e exames, e a formativa, com au­toavaliação e recolha de elementos que permitam definir planos de trabalho para melhor progressão de cada criança e jovem –, é a boa articulação entre ambos que tem de ser conseguida. A tarefa é complexa, exige tempo para os professores, formação e até uma mudança de mentalidade, mas é fundamental, atendendo à diversidade de alunos na sala de aula. Com efeito, definir uma referência média ou uma bitola comum a todos não faz sentido, como não vale nivelar por baixo. Antes, face a um grupo de alunos diferentes, é imperativo que cada um faça o seu caminho e chegue o mais alto de que for capaz.

Para tanto, é preciso que a avaliação seja mais do que a atribuição de notas e sirva para promover melhorias nas aprendizagens. Mas isso implica tempo, autonomia e liberdade para os professores trabalharem dessa forma, tal como libertação das excessivas e, tantas vezes, desnecessárias tarefas burocráticas, devendo as necessárias ficar por conta dos assistentes administrativos.

Pegar na criança ou no jovem e usar a avaliação para perceber onde está cada um e as melhores estratégias de ensino e aprendizagem é mais exigente do que ministrar conteúdos e aplicar dois testes por período para saber a classificação com que chega ao fim do ano letivo. A tentação é visível já na educação pré-escolar, onde se usam estandardizadas checklists em apoio das classificações, quando a avaliação neste período deve ser eminentemente formativa.

Os investigadores quiseram perceber o que leva os professores a privilegiarem a avaliação sumativa ou a sentirem-se condicio­nados. A principal razão é elaboração de rankings com base nos resultados nos exames nacionais. Mas também figuram como razão as provas de aferição, que não contam para a nota, mas que são vistas como exames, bem como o envelhecimento do corpo docente, com o cansaço e a resistência à mudança que o mesmo pode potenciar.

Outra discussão que devia deixar de existir é a dicotomia política respeitante à avaliação. De facto, se o Governo é de esquerda, tende a retirar importância às provas de avaliação externa; se é de direita, insiste nos exames. Ora, a educação precisa de estabilidade e requer a inovação sustentada.

E o estudo sustenta a necessidade de conhecer experiências exemplares, usar a melhor evidência científica, definir objetivos e o plano para lá chegar, alinhando todos os envolvidos nesse esforço. Para isso, não pode haver orientações educativas novas de quatro em quatro anos.

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Há, pois, muito que fazer em educação, mas é de passar as tarefas administrativas para outros.

2022.11.28 – Louro de Carvalho

Relativizar os bens do mundo para participar no banquete do Senhor

 

A Liturgia da Palavra do 1.º domingo do Advento no Ano A, em que se proclamam, em quase todos os domingos, trechos do Evangelho de Mateus, contém um veemente apelo à vigilância da parte dos cristãos, que não podem instalar-se no comodismo e na indiferença, mas devem caminhar, sempre atentos e vigilantes, preparados para o acolhimento ao Senhor que vem e para a condigna resposta aos desafios que nos lança.

Os capítulos 24 e 25 do Evangelho de Mateus apresentam o último grande discurso de Jesus antes da paixão e morte. Para o compor, Mateus reelaborou o “discurso escatológico” presente em Marcos, ampliando-o e mudando-lhe o tema central, pois, enquanto, para Marcos, a questão principal é a dos sinais que precederão a destruição de Jerusalém e do Templo, para Mateus, a é a da vinda do Filho do homem e das atitudes com que os discípulos a devem preparar.

Tal mudança de perspetiva explica-se pela situação em que vivia a comunidade de Mateus. Na década de 80, ou seja, dez anos sobre a destruição de Jerusalém, não tinha ocorrido a segunda vinda de Jesus, o que desanimava os crentes. E o evangelista-apóstolo, olhando o desleixo, a rotina e o esfriamento que tendem a aparecer na comunidade, sente a necessidade de renovar a esperança e levar os crentes a comprometerem-se na história pela construção do Reino dos Céus. Por conseguinte, intui nas palavras de Jesus um profundo ensinamento e compõe uma exortação aos cristãos, fundamentada na profunda convicção de que a vinda do Filho do homem é certa, embora não seja para breve. E, como não se sabe o dia nem a hora, o foco deve pôr-se na preparação deste grande acontecimento, vivendo de acordo com o ensinamento de Jesus.

A linguagem, que é enigmática, insere-se no género apocalíptico usado por alguns judeus e cristãos da época de Jesus, para revelar algo escondido (verbo “apocaliptô”). Não raro, esta revelação é dirigida a comunidades que vivem em sofrimento, desespero e perseguição, com o objetivo de lhes avivar a esperança, mostrando que a vitória final será de Deus e dos seus fiéis.

A vinda do Senhor é certa e os crentes devem estar preparados e viver vigilantes e ativos. Para vincar esta ideia, o trecho evangélico em apreço (Mt 24,37-44) oferece-nos três cenários:

Antes de mais, o cenário da época de Noé: os homens viviam na alegre inconsciência, apenas preocupados com o gozo da vida. E, ao chegar o dilúvio, porque impreparados, ficaram surpresos. Ora, se o homem tiver como única prioridade o gozo da vida, arrisca-se a passar ao lado do que é importante e a não cumprir o seu papel no mundo. A seguir, o Evangelho põe-nos ante duas situações do quotidiano: o trabalho agrícola e a moagem do trigo. Obviamente têm de ser assumidos os compromissos e os trabalhos necessários à subsistência, mas de modo que não nos absorvam de tal sorte que negligenciemos o essencial: a preparação da vinda do Senhor, pela vigilância, pela oração e pelo testemunho. Por fim, somos confrontados com o exemplo do dono da casa que adormece e deixa que o ladrão lhe saqueie a casa. Ora, os crentes não podem deixar-se adormecer, visto que podem perder a oportunidade de encontrarem o Senhor que vem.

Assim, a questão fundamental é o crente estar sempre vigilante, atento e preparado para acolher o Senhor que vem. Não perde oportunidades, porque não se distrai com os bens do mundo, muito menos vive obcecado com eles, Antes, cumpre, no quotidiano, o papel que Deus lhe confiou, com empenho e com apurado sentido de responsabilidade.

***

Na segunda leitura (Rm 13, 11-14), o Apóstolo quer que os crentes despertem da letargia em que estão presos no mundo de trevas, se revistam da luz e caminhem, com alegria e esperança, ao encontro da salvação. Paulo redige a Carta aos Romanos em Corinto, no termo da terceira viagem missionária (ano 57 ou 58). Terminada a sua missão no Oriente, quer levar o Evangelho ao Ocidente. Todavia, precisa de passar a Jerusalém com o produto da coleta que organizou na Macedónia e na Acaia em prol dos “santos de Jerusalém que estão na pobreza”.

O pretexto da carta é preparar a sua ida a Espanha. E Paulo aproveita para contactar a comunidade de Roma e apresentar aos romanos e aos crentes, em geral, os problemas que o preocupam. O perigo da divisão ameaça a Igreja: de um lado, as comunidades de origem judeo-cristã e, do outro, as pagano-cristãs. Umas e outras têm dificuldades de entendimento e há perigo real de cisão. Paulo escreve a vincar a unidade da fé e a chamar a atenção para a igualdade fundamental de todos – judeo-cristãos e pagano-cristãos – no processo da salvação.

A primeira parte (cf Rm 1,18-11,36), de índole dogmática, mostra que o Evangelho é a força que congrega e salva todo o crente; a segunda parte (cf Rm 12,1-15,13), de caráter prático, exorta judeo-cristãos e pagano-cristãos a viverem no amor.

O texto em referência nesta liturgia pertence à segunda parte. Depois de exortar ao amor mútuo os cristãos da comunidade de Roma, Paulo pede que estejam vigilantes, para acolherem o Senhor.

Quanto à hora que estão a viver, exorta a que se levantem “do sono, porque a salvação está agora mais perto”. Paulo pensava na vinda mais ou menos iminente de Cristo, para consumar a história da salvação. Porém, a ausência de especulações apocalípticas mostra que não lhe interessa quando e como será essa vinda, mas o seu significado e as consequências. Assim, importa que os cristãos, estando a viver os “últimos tempos” (iniciados quando Jesus deixou o mundo e constituiu os discípulos em testemunhas da salvação diante dos homens) antes da vinda de Jesus, têm de assumir as consequências desse estádio de vida.

Antes, os cristãos viviam nas trevas e tinham a vida marcada pelo egoísmo (excesso de comida e de bebida, devassidão, libertinagem, discórdia e ciúmes; mas, pelo Batismo, nasceram para a nova realidade, para a qual devem acordar em definitivo, enquanto esperam o Senhor que vem: quando o Senhor chegar, deve encontrá-los despidos do velho mundo das trevas, atentos, preparados e revestidos da vida nova que Jesus lhes ofereceu, vivendo na fé, no amor, no serviço.

O convite aos crentes é para que vivam este “tempo” como o tempo último e definitivo, que tem de ser de caminhada ao encontro de Jesus Cristo e ao encontro da salvação. E, à luz deste convite, o Advento que celebramos anualmente é o tempo de reaprendizagem deste sentido da vigilância, uma aprendizagem a marcar toda a vida cristã e eclesial.

***

primeira leitura (Is 2,1-5), a interpretar à luz do Novo Testamento, convida os homens – de todas as raças e nações – a dirigirem-se ao monte onde mora o Senhor. É do encontro com o Senhor e com a sua Palavra que resultará um mundo de concórdia, de harmonia, de paz infinda.

O texto de Is 2,2-4 encontra-se – com variantes e uma adição – em Mi 4,1-3, o que presume a hipótese de fonte comum em que os redatores dos dois livros se terão inspirado, embora alguns defendam que o texto original é de Isaías e que Miqueias o reproduziu com variantes.

Tratar-se-á de um oráculo inspirado nas movimentações de peregrinos que, por ocasião das festas, subiam a Jerusalém. O profeta, contemplando, desde o monte Sião, a chegada das caravanas que avançavam em peregrinação para celebrar, por exemplo, a festa dos Tabernáculos, via que as caravanas provinham de todas as partes do território habitado pelo Povo de Deus e que elas convergiam para a cidade santa e subiam pela colina rumo ao Templo onde habita Deus. E, à medida que se aproximavam, o profeta ouvia os “cânticos de ascensão” com que os peregrinos saudavam o Senhor e pediam a paz para Jerusalém e para toda a nação. Depois, na fantasia poética do profeta, a cena transformou-se: num futuro sem data, uma multidão de povos de todas as raças e nações, atraídas pelo Senhor, rumam ao encontro da salvação de Deus.

Estamos perante um dos oráculos mais inspirados, profundos e belos do Antigo Testamento. É o poema da paz universal e da convergência e da reunião de todos os povos à volta de Deus.

Na visão do profeta, o monte do Senhor (o Templo) transforma-se no centro do mundo e sobressai entre todos os montes, não por ser o mais alto, mas por ser a morada do Senhor. De todas as partes do mundo convergem caravanas de povos e de nações que avançam, confluem e sobem montanha acima, ao encontro do Senhor. Vêm atraídos pela força da Palavra de Deus, querendo conhecer o seu ensinamento (Torah) e ser instruídos nos caminhos do Senhor. A Palavra libertadora de Deus atrai e agarra todos os povos que percorrem os caminhos do mundo, lança-os num movimento único e universal até que se reúnam todos à volta de Deus.

À medida que se juntam à volta de Deus, escutam a Palavra e aprendem os seus caminhos, desvanecem-se as divisões, as hostilidades e os conflitos. Primeiro, eles aceitam a arbitragem justa de Deus; depois, compreendem a não necessidade das armas (ao invés, as máquinas de guerra transformam-se em instrumentos pacíficos de trabalho e de vida); e, por fim, todos se regalam, no banquete universal, das mais saborosas e suculentas comidas, das mais saciantes bebidas e das melhores iguarias. Assim, se verificará que, do encontro com Deus e com a Palavra, provêm a harmonia, o progresso, o entendimento, a vida em abundância, a paz universal.

É o reverso da história da torre de Babel (cf Gn 11,1-9). Lá, os homens escolheram o confronto com Deus e a autossuficiência, do que resultou a divisão, o conflito, a confusão e a dispersão; aqui, os homens escolhem Deus e seguem os caminhos indicados por Ele, do que resultará a reunião de todos os povos, a harmonia, o progresso, a paz universal. É por isto e para isto que aguardamos em jubilosa esperança a última vinda de Cristo Salvador – o fim que almejamos.

2022.11.27 – Louro de Carvalho

domingo, 27 de novembro de 2022

Quem deu a ordem de avanço para o 25 de Novembro

 

Luís Pessoa, militar e militante do Partido Comunista (PCP), atendeu, depois das cinco da manhã, no Serviço Diretor e Coordenação da Informação das Forças Armadas (SDCI), a chamada de Jaime Serra, membro do Comité Central e responsável pela ligação aos militares mais bem colocados para acionar o plano gizado. Como refere Vasco Lourenço, na revista do Expresso (25/11), a ordem era para avançar e Pessoa sabia o número a ligar, a senha e a contra senha, mas do destino, sabia só que seria atendido por um sargento, a quem transmitiu a ordem.

A estrutura dos sargentos paraquedistas transformaria a ida às unidades numa demonstração de força, com a ocupação e prendendo alguns comandantes. Assim, em Monsanto, detiveram o general Pinho Freire, conselheiro da revolução.

Só agora Vasco Lourenço, presidente da Associação 25 de Abril e, na altura, conselheiro da revolução, diz conhecer 90% do que se passou, porque Luís Pessoa, na Associação 25 de Abril, lhe entregara um documento, até agora desconhecido, daquele militar, havia mais de 20 anos. Por isso, já não tem dúvidas em nomear quem deu a ordem para os militares afetos ao PCP se juntarem aos paraquedistas e ocuparem as bases militares em Lisboa. E aponta a reunião, entre 18 e 19 de novembro, no Tramagal, dos sargentos paraquedistas afetos ao PCP com a estrutura local do partido, para delinearem o plano de ocupação das bases. Quiseram impor a substituição do chefe do Estado-Maior da Força Aérea (CEMFA), Morais da Silva, e de outros, e recuperar o que perderam no Conselho da Revolução.

O caminho fora sinuoso, mas curto. Pouco mais de ano e meio da queda da ditadura, a esquerda fragmentara-se, a direita reorganizava-se, as instituições estavam à beira do colapso, as reservas de moeda estrangeira estavam a findar e a crise económica ia em crescendo.

O engenheiro químico Luís Pessoa cumpriu o serviço militar em Moçambique. Com Otelo Saraiva de Carvalho participou na preparação da revolução e comandou os ocupantes das antenas da Emissora Nacional (EN) em Porto Alto, plano que gizara, a 15 de abril, no restaurante Califa, em São Domingos de Benfica, com Miguel Amado, tenente e funcionário da EN, e com Otelo.

Em 1975, o verão foi quente nas ruas e o outono fez subir a temperatura. A viver no Brasil desde 11 de março, António de Spínola avisava, no final de setembro, que o curso político seria modificado violentamente, se os que estavam no poder persistissem na violência crescente. E, questionado se ilegalizaria partidos políticos, dizia entregar a questão ao povo, ouvido em sufrágio universal, mas sustentava que “esses partidos já demonstraram suficientemente que não respeitam as regras do jogo democrático”.

José Miguel Júdice, militante do Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP), pensou na possibilidade da guerra civil após o 11 de março e atribui a sorte no 25 de novembro à indisciplina na tropa de esquerda, ao recuo do PCP e à reorganização dos comandos com a mobilização dos antigos. Preso a 28 de setembro e a 11 de março, emigrou para o Brasil.

Alpoim Calvão, em “De Conakri ao MDLP”, conta o porquê da fundação do movimento: segurança pessoal e da família. E, apesar de ter convencido Otelo a impedir que a família fosse molestada, foi para Madrid, onde, em ligação com Spínola, mobilizou e armou “os portugueses exilados para uma frente de resistência comum”, de forma a “impedir a instauração de um regime comunista ou de ditadura militar marxista em Portugal”. Nisso, teve o apoio, em armas e munições, de Holden Roberto, líder da Frente Nacional da Libertação de Angola FLNA).

Também o cónego Melo, da arquidiocese de Braga, próximo do MDLP, assumia que o golpe da direita estava planeado para 30 de novembro e que era grande a probabilidade de violência.

Vasco Lourenço sabia do risco: “A situação estava a degradar-se de tal maneira, nós a perder o controlo e a extrema-direita a impor-se de tal forma que, não tivesse acontecido o que aconteceu, se chegássemos a janeiro ou fevereiro, perante uma tentativa de golpe à direita, não sei se teríamos tido condições para responder.”

No dia subsequente à chegada declaração de Spínola à imprensa nacional, o primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo assumia que o “clima de tensão generalizada” atingira “um dos pontos mais altos”. E, no último dia de setembro, o Partido Socialista (PS) e o Partido Popular Democrático (PPD) iniciaram ações de apoio ao governo e à luta pelo controlo das antenas transmissoras.

Desde abril de 1975, face aos resultados das eleições para a Assembleia Constituinte, o precário equilíbrio da política nacional começara a mudar. Até 25 de novembro, momentos determinantes marcaram o panorama político do país. Em Tancos, entre 2 e 5 de setembro, a Assembleia do MFA rejeitou Vasco Gonçalves como chefe do Estado-Maior-Geral das Forças Armadas (CEMGFA) e apoiou Morais e Silva, da Força Aérea. O Grupo dos Nove, de tendência moderada, só perdeu um representante no Conselho da Revolução. Houve o cerco à Assembleia Constituinte, a greve do VI Governo Provisório. E, em vez de sedes de partidos à direita eram queimadas as dos partidos de esquerda

A agitação nas Forças Armadas após as eleições para a Assembleia Constituinte ficou espelhada no documento “Aliança Povo/MFA”, que traduzia a posição da corrente próxima do PCP, a de “fomentar a participação revolucio­nária das massas” e a “implantação do verdadeiro órgão de poder popular”, no ‘Documento dos Nove’ ou ‘Documento Melo Antunes’ (autor do texto), assinado por nove dos mais influentes conselheiros da revolução, dando voz aos moderados e oficializando as divisões dentro do MFA, e a “Autocrítica Revolucionária do COPCON/Proposta de Trabalho para um Programa Político”, influenciado pelos partidos da extrema-esquerda.

Neste panorama, os Nove chegavam a posição dominante, vistos como porto de abrigo pelos que discordavam de Otelo ou temiam, a subida do PCP e da extrema-esquerda ao poder. Tinham, um plano militar, gizado sobretudo pelo tenente-coronel Ramalho Eanes, para responder a qualquer ameaça, mas resistindo aos alvitres de um plano ofensivo. Vasco Lourenço passa a governador militar de Lisboa e comandante da respetiva região militar (RML); Pires Veloso, Franco Charais e Pezarat Correia, comandam, respetivamente, as regiões militares do Norte (RMN), do Centro (RMC) e do Sul (RMS). Assim, as principais estruturas militares já eram lideradas por moderados, todos, com exceção de Costa Gomes, graduados em oficiais generais para o exercício do cargo.  

Acordado por telefone, o major Diniz de Almeida, segundo-comandante do Ralis, não se apercebe da gravidade da situação, apenas que tinha de se apresentar no Forte do Alto do Duque, aonde chegou perto das quatro. Otelo comunicara a decisão de Costa Gomes de manter a nomeação de Vasco Lourenço para a RML. E Jaime Neves, do regimento de Comandos, acordou Vasco Lourenço, por telefone, perto das sete, a alertar para a ocupação das bases pelos paraquedistas.

Foi então que Jaime Serra ligou ao tenente Luís Pessoa a dar a ordem de avanço. Os paraquedistas controlaram as unidades da Força Aérea da RML e as várias unidades do Exército montaram dispositivos especiais de segurança, em clima que transcendia a prevenção rigorosa. As emissoras de Rádio e a RTP foram ocupadas por forças militares que, tal como os paraquedistas, afirmavam obedecer ao Comando Operacional do Continente (COPCON), chefiado por Otelo.

O comunicado do CEMGFA, General Costa Gomes, referia que “sublevados da Base-Escola de Tancos assaltaram, durante a noite de 24-25 de Novembro, o comando da Região Aérea, a Base Aérea n.º 3 de Tancos, a Base Aérea n.º 5 de Monte Real e a Base Aérea n.º 6, do Montijo”. Apelava a “atitude de bom senso para evitar o agravamento da sua situação criminosa” e lembrava que ainda não tinham sido dadas ordens para uma “intervenção de força”.

Pelas nove horas, com tropas do Ralis mais a sul na autoestrada, no Aeroporto e em Beirolas e, ocupadas as instalações da RTP, já o Palácio de Belém estava cheio de militares. Vasco Lourenço, graduado em general, ficou no comando da operação, sendo o tenente-coronel Ramalho Eanes o principal comandante operacional, no controlo das movimentações no terreno.  

Com o estado de sítio declarado em Lisboa pelas 16,30 horas, do quartel da Amadora, arrancaram as forças dos Comandos. Pouco depois, chegaria Álvaro Cunhal ao Palácio de Belém. E Costa Gomes ter-lhe-á dito que seria a guerra civil, que estaria contra e que iriam perder, que tinham de recuar. E Cunhal, recuando, ajudou a evitar a guerra, tal como Otelo, ao voltar para casa. No entanto, Cunhal refere, antes, uma conversa telefónica com o Presidente na noite de 24 para 25 a garantir que “o PCP não estava envolvido em qualquer iniciativa de confronto militar” e a insistir na “necessidade de uma solução política” para a crise.  

Passadas 12 horas do primeiro telefonema, o telefone de Luís Pessoa volta a tocar. Era Jaime Serra a convencer da reviravolta o tenente do SDCI. A hora era de recolher.

O tenente-coronel Ramalho Eanes era pressionado para bombardear os quartéis que, durante o dia, a Força Aérea sobrevoara com caças. Com efeito, a direita queria sangue e ainda não o tinha feito. Ao telefone, Eanes e Lourenço acordaram: na Ajuda, a Polícia Militar tinha até às oito da manhã para se render, o que sucedeu após duro confronto com o Regimento de Comandos.

***

É esta a data que muitos, acastelados numa direita saudosista que já não tem pejo de se mostrar como tal, querem celebrar como o dia da verdadeira revolução. Ora, por mais saudável que seja o 25 de Novembro – restabeleceu o caminho claro para uma democracia ocidental de tipo liberal – não se afigura plausível deixar de considerar o 25 de Abril de 1974 como a data matricial da revolução democrática. Todas as revoluções conhecem as contrafações, purgas e acertos, mas celebra-se o dia que dá origem a cada uma, não outro. Por exemplo, ninguém celebra a Revolução Francesa no dia da coroação imperial de Napoleão Bonaparte.

Resta apontar que, segundo alguns analistas geralmente bem informados, a narrativa da iminência de guerra civil violenta no dito verão quente não corresponderá à realidade (até a forma como Otelo reagiu a Alpoim Galvão foi pacífica), não passando da narrativa conveniente para a legitimação de medidas tomadas em anos seguintes, como o regresso de empresários, as privatizações, etc. Aliás, consta que o PCP não sentiria o apoio do homólogo da União Soviética, dada a proximidade do país com os Estados Unidos, no contexto da Guerra Fria.

Portanto, recorde-se o 25 de Novembro, mas celebre-se o 25 de Abril e promova-se a de democracia integral – política, social, económica e cultural.

2022.11.27 – Louro de Carvalho

sábado, 26 de novembro de 2022

Desgaste e cansaço presidencial, uma hipótese em equação

 
As declarações do Presidente da República (PR) a propósito da sua ida ao Catar, por ocasião do Mundial de Futebol 2022, aumentaram críticas ao chefe de Estado.
O atual inquilino de Belém cumprirá, a 9 de março próximo, o sétimo ano da sua primeira tomada de posse como Presidente da República, cargo para que foi eleito, pela primeira vez, a 24 de janeiro de 2016, com 52% dos votos na primeira volta, proeza que repetiu a 24 de janeiro de 2021, mas, desta feita, com 60,66% dos votos, também na primeira volta.
Há mais de 20 anos, quando liderava o Partido Social Democrata (PSD), Marcelo Rebelo de Sousa sustentava a ideia de o mandato presidencial ser único e durar sete anos. E disse-o, sem margem para dúvidas, em janeiro de 2014, em conversa com Judite de Sousa na TVI: “Dez anos para um Presidente [são] demais.” Mas na, Assembleia Constituinte, defendera os dois mandatos.
Estava, então, em análise o desempenho presidencial de Cavaco Silva, cuja popularidade estava em declínio, mercê de algumas declarações proferidas no âmbito da crise (por exemplo, sobre a exiguidade da reforma do casal presidencial, sobre a eventualidade da saída da Grécia da Zona Euro, etc.), da forma como os governantes respondiam às dificuldades, da sua geral cumplicidade com os diplomas do Parlamento e do Governo, pela via da promulgação, e pela forma como pensava resolver a crise política gerada pela demissão “irrevogável” de Paulo Portas, na sequência da estrondosa demissão de Vítor Gaspar da pasta das Finanças e da indigitação de Maria Luís Albuquerque para lhe suceder, sem consulta prévia ao líder do segundo partido que integrava o Governo. Porém, o que vale para uns tem de valer para outros, pois os tempos mudaram.
A ideia do mandato único de sete anos parece vir a propósito do presente desempenho do cargo por Marcelo Rebelo de Sousa.
O que disse e a forma como o fez à ministra da Coesão Territorial mostram um uso do poder, que não lhe compete, e um, pelo menos aparente, desconhecimento da orgânica do Governo:
“Queria dizer-lhe duas coisas. Este é um dia superfeliz, mas há dias superinfelizes. E verdadeiramente superinfeliz para si será o dia em que eu descubra que a taxa de execução dos fundos europeus não é aquela que eu acho que deve ser. Nesse caso não lhe perdoo.”
O ministro não responde diretamente perante o chefe de Estado, mas perante o primeiro-ministro, que tem a obrigação de informar periodicamente o Presidente da República sobre a governação. Ademais, cabe ao Parlamento e ao Tribunal de Contas a fiscalização da execução física e financeira dos projetos que envolvem dinheiro público, não à Presidência da República. Qualquer crítica que lhe apraza fazer tem lugar nos contactos institucionais com o primeiro-ministro e no recurso a mensagens a enviar ao Parlamento.
Como é seu hábito, quando notou que não esteve bem, disse aos jornalistas que se referia ao PRR (Plano de Recuperação e Resiliência), cuja monitorização cabe à ministra da Presidência, que não à destinatária do esquisito e equívoco ralhete. Todavia, não é a primeira vez que o PR põe em questão ministros. Fê-lo claramente com Mário Centeno, de forma estrondosa e “bem-sucedida”, com Constança Urbano de Sousa e, de forma hesitante e sem êxito, com Eduardo Cabrita.
Sobre os abusos na Igreja alvitrou, ao virar da esquina: “Haver 400 casos não me parece que seja particularmente elevado.” Passados alguns dias, emendou o que não devia ter comentado: “A minha intenção não foi ofender quando disse o que disse, mas, se porventura entenderam, uma que seja das vítimas que está ofendida, eu peço desculpa por isso.”
Não se tratava de falta de entendimento, mas de não dever comentar e de não se atrelar a números, quando está em causa a dignidade das pessoas.
A propósito do Mundial de Futebol 2022, comentou: “O Catar não respeita os direitos humanos. Toda a construção dos estádios e tal, mas, enfim, esqueçamos isto. É criticável, mas concentremo-nos na equipa” Porém, ante o chorrilho de críticas – umas convictas, outras hipócritas – emendou a mão: “Naturalmente, eu, depois de manhã, estarei a falar de direitos humanos no Catar.”
Até falou dos direitos humanos, mas não perante individualidades dos Catar. Fê-lo a propósito da educação e da saúde, em reunião com os representantes do Gana e dando testemunho do que se faz em Portugal nestas áreas. Enfim, tratou o Catar com pezinhos de lã não falou para o Catar.
Aliás, como era possível as autoridades máximas do país criticarem, agora, a falta de respeito pelos direitos humanos, quando aceitaram acriticamente a decisão da Federação Internacional de Futebol (FIFA) de realizar o Mundial naquele país, credenciaram a participação da seleção nacional e, como tantos outros países do Ocidente, sabem que têm lá as empresas a rasgar estradas e a contruir os estádios, provavelmente a engrossar a falta de respeito pelos direitos humanos, pelo menos na área do trabalho?     
É também hábito do PR ser fácil em comentar o mérito ou o demérito do Governo nesta ou naquela matéria e, passado algum tempo, vir emendar a mão ou dizer, precisamente, o contrário. E facilmente promulga um diploma oriundo do Parlamento ou do Governo com reservas expressas publicamente, quase dando razões que tornariam difícil a promulgação.
Fez cair o látego da ameaça da dissolução parlamentar aquando da discussão na generalidade do Orçamento do Estado para 2022, como o fez confrontado com a hipótese – prontamente rejeitada – de o primeiro-ministro assumir um cargo europeu em 2024.    
Não raro se lê que o PR se banaliza e banaliza a função, que esbanja a “gravitas” do cargo, que fala e torna a falar, que não o levam a sério, que diz que não disse o que disse, mas não queria dizer, que está velho e cansado, que faz o que não deve e não faz o que deve.
Todavia, as sondagens não confirmam o teor dos comentários da nossa praça. Antes, a queda da popularidade dos políticos, registada em outubro pela Aximage, mantinha o PR como o político mais popular, acima dos 60%. No entanto, a teoria do número sete aguenta-se e é o próprio chefe de Estado a sustentá-la, de modo que o PSD a incluiu no seu projeto de revisão constitucional.
O PR, que referiu, na campanha eleitoral, que se recandidatara por causa da pandemia, reiterou-o recentemente a Francisco Pinto Balsemão, no podcast “Deixar o Mundo Melhor”, justificando que “a renovação é uma caraterística da democracia” e os anos do primeiro mandato “foram cinco anos brutais”. Por isso, entendia dever “dar lugar a outra pessoa, com a idade que já tinha”, com a forma como exerce a presidência: “com proximidade, que é um esforço físico brutal”.
Quem lhe acompanhou o final do primeiro mandato confirma que sempre partilhou dúvidas sobre se iria a um segundo mandato, mas há quem nunca tenha visto pouca verdade nisso, como há quem tenha percebido hesitações genuínas na cabeça do PR. Quem o segue de perto legitima a tese do desgaste e do cansaço. Aliás, é o que apontam aos primeiros-ministros mais duráveis: Cavaco Silva, António Guterres e, agora, António Costa. Chegaram desgastados aos sete anos.
É caso para perguntarmos como estará o país, a 9 de março de 2023, sete anos depois da sua entrada na chefatura do Estado. Estará à vista o fim da crise social, que parece estar a piorar, a insuficiência da aplicação dos milhões de fundos da União Europeia (UE), a pobreza, que tem cada vez mais pacientes, a falta de habitação e a incerteza do futuro dos jovens? E que fará o PR a partir de março de 2023? Marcelo Rebelo de Sousa não desiste, antes garante exigência, atenção e vigilância. Está a fazer aquilo de que gosta e que programou desde há muito.
Nos sete anos que chama de “brutais” e que foram singulares, herdou a geringonça, ajudou a segurar o sistema financeiro e a estabilizar a imagem do país na UE, levou com os fogos e com o líder, “otimista irritante”, de dois governos minoritários, que cederam o lugar a um governo maioritário do Partido Socialista (PS), por vontade inequívoca do eleitorado. Chegou a pandemia, o PSD, perdido em lutas internas e na ambiguidade, marcava passo, o Chega crescia e o Partido do Centro Democrático Social (CDS) ficou sem assento parlamentar e veio a guerra e a inflação histórica. Marcelo crê encontrar suplemento anímico “na espontaneidade e junto do povo”.
A ex-deputada do CDS, Inês Teotónio Pereira, no Diário de Notícias, coloriu o quadro assim: “Num país de fado, de inflação, de filas de trânsito, de gente chata e queixosa, Marcelo é o único que se diverte e que nos diverte. É como uma criança aos saltos, feliz da vida, num dia de chuva e cinzento. Ele é gafe atrás de gafe, é um livro de aventuras, uma série de suspense, uma sitcom, é o enredo vivo de revista à portuguesa sobre política.”
Já não tem nenhum desafio eleitoral pela frente. Provavelmente, seguirá o exemplo de Mário Soares, que fez dura magistratura de oposição ao cavaquismo, que se desgastou e se esvaziou. A agenda política do PR, por maior que seja o apoio institucional ao Governo, não faz esquecer o quadrante político de onde é oriundo. E, nos últimos tempos, tem aproveitado a maré.
O Presidente nem disfarça os planos que tem para quando deixar o palácio: viajar pelo mundo, voltar ao voluntariado, ser cuidador informal, puxar pelos jovens.
Entretanto, o tempo que lhe resta de mandato pode-lhe dar o ensejo de ver um PS desgastado e de poder acompanhar e até de estimular uma reviravolta à direita que vire o jogo político, desde que o PSD clarifique o programa e a metodologia. Seja como for, Marcelo Rebelo de Sousa, segundo o qual mais do que cinco anos é mau, vai cumprir os dez, arriscando a sua associação a uma década de sucessivas crises, com o PS ao leme e sem garantias de deixar um país muito diferente, ou vindo a gloriar-se de ter instalado em São Bento um poder legislativo e um poder executivo liderado pela “direita social”. Porém, o sonho é acabar como o “Presidente do povo”.
Luís Montenegro, evitando entrar na onda de críticas, escuda-se na prática de não comentar as declarações do chefe de Estado. E o primeiro-ministro tem vindo em socorro do PR, mesmo nos casos mais delicados e nas suas atitudes mais verrinosas (apontando-lhe os diversos “momentos criativos” ou reconhecendo ao PR o direito de falar do que entender). Por sua vez, o chefe de Estado vem sendo gentil com António Costa, como sucedeu ao defendê-lo das acusações do ex-governador do Banco de Portugal.
No entanto, é pertinente o aviso que fez a Ana Abrunhosa, no sentido de que a política exige sacrifícios, ninguém é obrigado a esta atividade e quem a aceita tem de contar com isso, não podendo queixar-se. E, se aplicar a si o aviso, em vez de se queixar ou de se afirmar cansado, pode mudar de atuação e até renunciar. Não tem que, repetidamente, levantar o látego da dissolução parlamentar, como não tem de elogiar ou de cominar o Governo.  

2022.11.26 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres

 

Foi assinalado, a 25 de novembro, o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, em cumprimento da Resolução 52/134, de 1934, da Organização das Nações Unidas (ONU), com o propósito de alertar a sociedade para a violência física, psicológica, sexual e social, que atinge as mulheres em todo o Mundo e, obviamente, também em Portugal.
A data prende-se com a homenagem às irmãs Patria, María Teresa e Minerva Maribal, presas, torturadas e assassinadas em 1960, a mando do ditador da República Dominicana Rafael Trujillo. As irmãs tornaram-se um símbolo mundial de luta contra a violência que vitimiza as mulheres.
Em média, uma em cada três mulheres é vítima de violência doméstica (vd). Em Portugal, 85% das vítimas de violência doméstica são mulheres. A violência doméstica contra as mulheres abarca vítimas de todas as condições e de todos os estratos sociais e económicos.
A violência doméstica é crime. Se alguém é vítima ou conhece quem seja, deve pedir ajuda, por exemplo, enviando SMS para 3060 ou ligando 800 202 148 ou 800 219 090.
 As vítimas de VD, em Portugal, podem recorrer à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), que, além do apoio às vítimas, organizou eventos especiais para este dia: Conferência APAV Algarve contra a Violência Doméstica, em Lagoa; Marcha pelo Fim da Violência contra as Mulheres, em Lisboa; assinatura de protocolo de colaboração entre a APAV e a Câmara Municipal de Mangualde, para criar um novo Gabinete de Apoio à Vítima da APAV em Mangualde; campanha de sensibilização, com o mote “Há momentos que começam vidas inteiras”, como nova fase da campanha “Tenha um momento APAV”, a agência SA365 Portugal, para divulgar o Serviço Integrado de Apoio à Distância, com foco na Linha de Apoio à Vítima da APAV – 116 006; III Jornadas do Alto Alentejo contra a Violência, a 29 de novembro, em Ponte de Sor; ação de sensibilização, em Braga; VII Jornadas APAV Açores contra a Violência, em Ponta Delgada; Exposição APAV “Pelos direitos das vítimas”, em Braga; ação de sensibilização em Odivelas; Marca A-100 Burger a associar-se numa ação de sensibilização; e Joana Alegre a associar-se com a canção “Maria Graça”, que “representa a inocência no contraste com a realidade atroz da violência doméstica”.
Também a Polícia de Segurança Pública (PSP) garante apoio às vítimas de VD, tendo implementado o Programa Integrado de Policiamento de Proximidade na PSP (PIPP), que consiste no atendimento, acompanhamento, apoio e encaminhamento das vítimas.
No âmbito da campanha, a Guarda Nacional Republicana (GNR) divulga um vídeo e cartazes que vão ser distribuídos a nível nacional, direcionados para a “prevenção de comportamentos violentos contra as mulheres, atendendo a que a violência se dissimula sobre diferentes formas: física, psicológica, sexual, moral, entre outras”.
A União Europeia (UE) está fortemente comprometida em prevenir e em condenar qualquer crime desta natureza, promovendo a mobilização dos seus parceiros a nível institucional, procurando reforçar os ordenamentos jurídicos de apoio às vítimas. Uma das iniciativas é o “Plano de Ação em Matéria de Igualdade de Género 2021-2025” da Comissão Europeia, que visa fomentar a cooperação entre Estados-Membros, UE e organizações da sociedade civil em questões de igualdade de género. Promove o acesso universal a cuidados de saúde (sobretudo direitos sexuais e reprodutivos), à educação e a cargos de liderança. E destaca a inclusão da perspetiva da mulher em novos domínios estratégicos, como a transição ecológica e a transformação digital.
Em 2022, o tema escolhido foi “UNITE! Activism to End Violence against Women & Girls”.
Em Portugal, o “Programa Nacional de Prevenção da Violência no Ciclo de Vida”, da Direção-Geral da Saúde (DGS) lança a campanha “Masculinidades Saudáveis”.
Com materiais dirigidos a utentes e profissionais de saúde, a DGS alerta para a importância da promoção de padrões de masculinidade mais saudáveis nos diversos contextos da vida dos homens, comunidade, laboral, familiar, relações de intimidade, que contrariem estereótipos enraizados e previnam formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas.
A vida humana é marcada pela dificuldade em exprimir o sofrimento psicológico e físico. E os padrões de masculinidade, muitas vezes reforçados pela sociedade, acabam por resultar em comportamentos pouco saudáveis para os próprios homens e para quem os rodeia. As expectativas do que se espera do papel social do ser-se homem reprimem emoções e acabam por condicionar formas de expressão pouco adequadas e até violentas. É, pois, importante criar, desde cedo, espaço para o diálogo sobre este assunto junto de meninos e rapazes, bem como reforçar, nas famílias, nas escolas e na comunidade, que é natural os homens expressarem sentimentos, incluindo medos e inseguranças e que errar faz parte da aprendizagem. Por isso, devem ser ajudados, de forma empática, a encontrar formas adaptativas de lidar com a frustração e com a irritabilidade em todo o ciclo de vida e ao longo de gerações.
Nos Centros de Saúde e nos Hospitais, os Núcleos de Apoio a Crianças e Jovens em Risco e as Equipas de Prevenção da Violência em Adultos realizam um trabalho junto das comunidades e profissionais de saúde na promoção de relações mais igualitárias, sobretudo na área da igualdade de género entre mulheres e homens. E, entre as instituições da área da Saúde, a Equipa para a Prevenção da Violência em Adultos (EPVA) do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa assinala o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, lançando um desafio para participar num quiz sobre a Violência no Adulto. 
Também o Presidente da República assinalou o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, sublinhando o apelo da efeméride “à ação de todos os portugueses e portuguesas para que, de forma efetiva e permanente, sejam erradicadas todas as formas de agressão contra as mulheres”.
Depois, considerando “o papel insubstituível e extraordinário das mulheres na sociedade portuguesa, conquistado por mérito próprio”, vincou a obrigação que todos e cada um têm de agir, de denunciar e de impedir “toda e qualquer forma de violência contra as mulheres no nosso País”. E, verificando, que “os números da violência doméstica entre nós são hoje gritantes, assim como a ainda contínua desigualdade de que as mulheres portuguesas são objeto, nos mais variados contextos sociais e profissionais”, o Presidente da República sustentou: “Devemos todos e todas unir-nos contra eles e contra o que representam, na vida de cada uma das vítimas e suas famílias, mas também no que revelam sobre a nossa comunidade.”
Por fim, no propósito de alargar esta obrigação a “todos os dias que o futuro nos trará”, apelou: “Saibamos estar à altura do contributo indelével das portuguesas no desenvolvimento de Portugal, eliminando e combatendo, nas suas múltiplas formas, a violência contra as mulheres, e não compactuando com silêncios cúmplices ou cómodas omissões.”
E a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, para marcar, em termos de debate e de reflexão, a efeméride, organizou, em Matosinhos, nos dias 24 e 25 de novembro, o “II Fórum Portugal contra a Violência | Combate à violência contra as mulheres e a violência de género”, com o tema “O papel da comunicação social”.
Pretendeu-se “analisar e debater a importância da comunicação social no reporte dos casos de violência contra as mulheres” e “a forma como essa informação é relatada”. Na, verdade, como refere a organização, “os tempos modernos são apressados e o avanço da tecnologia potenciou a aceleração e a urgência da veiculação da informação, por vezes com prejuízo no cuidado com as palavras e as imagens”. Por isso, foi criada a oportunidade do debate, com os e com as profissionais, sobre “como se pode trabalhar melhor a forma de noticiar casos de violência” e “de que forma se podem criar sinergias entre as pessoas que, no terreno, acompanham as vítimas e quem tem a responsabilidade de relatar os factos”. Assim, no dia 24, às 17 horas, foi dada a conhecer a campanha de combate à violência, que assinala o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres (25 de novembro). E, no dia 25, entre as 10 e as 17 horas, jornalistas e especialistas na área da violência doméstica, juntaram-se para refletir sobre o papel dos Órgãos de Comunicação Social no combate à violência e na proteção das vítimas.
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De janeiro a outubro foram mortas, em Portugal, 22 mulheres em contexto de violência doméstica. O Observatório de Mulheres Assassinadas da UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta) lançou os dados anuais preliminares e traçou-lhes o perfil enquanto vítimas: 13 foram mortas pelos companheiros atuais, 9 estavam separadas do agressor, em 55% dos casos havia violência prévia, sete apresentaram queixa às autoridades, 55% foram mortas em casa com arma de fogo ou arma branca. Deixaram 46 crianças órfãs de mãe, 21 menores; algumas perderam também o pai; 8 homicidas suicidaram-se após o crime; e 14 estão em prisão preventiva.
Até ao final de outubro, a PSP deteve 802 pessoas por violência doméstica, mais 35% face à média dos últimos cinco anos, e registou 13.285 queixas, um aumento de 6,3%, tendo ainda apreendido 279 armas relacionadas com este tipo de crime. E a GNR registou, até 30 de setembro, 11 176 crimes de violência doméstica e efetuou 1 167 detenções na sua área de responsabilidade, segundo um balanço provisório.
Não é só pelo papel que desempenham na sociedade, mas, principalmente porque são pessoas e porque são cidadãs. Nestes termos, enquanto houver uma mulher vítima de violência, seja por que forma for, não se pode dizer que “fica tudo bem”.

2022.11.25 – Louro de Carvalho