sábado, 12 de novembro de 2022

Entregar a tribunais a aplicação em concreto da lei não é de saudar

 

Por iniciativa do Chega está em marcha um processo de revisão da Constituição da República Portuguesa (CRP), que não criará, pelos vistos, um amplo debate no Parlamento e muito menos na sociedade portuguesa, quiçá ficando entre umas quantas alterações cirúrgicas e uma revisão parcelar com algum significado, mas com poucas consequências.

O que salta à vista de inédito e abstruso é, do meu ponto de vista, a possibilidade de, em situação de emergência sanitária, ser decretado um confinamento obrigatório sem declaração do estado de emergência, mas com possibilidade de recurso judicial urgente.

A proposta de revisão constitucional do Partido Socialista (PS), entregue a 11 de novembro, mexe em direitos fundamentais para tentar resolver problemas de saúde pública e de acesso a dados para investigação judicial.

No âmbito dos direitos, liberdades e garantias, o PS troca o termo “raça” pelo termo “etnia”, substitui a expressão “direitos do homem” por “direitos humanos” (formas de expressão mais consentâneas, mas que não urgem revisão constitucional), cria o direito à alimentação (assegurado pelo Estado e pelas autarquias) e garante o acesso universal à água, ao saneamento e aostransporte público, tal como abre a possibilidade de haver número único de cidadão.

Já temos o direito constitucional à habitação, ao trabalho, à segurança social e à saúde. Porém, o preço da casa (propriedade ou renda) torna-a inacessível a tantos cidadãos; o desemprego, a precariedade e a falta de condições e de valorização do trabalho crescem a olhos vistos; a proteção na invalidez e na velhice é mais que insuficiente; e o acesso à saúde colide com a ambição negocial dos privados e com a depauperação do serviço público de saúde.  

Ainda no quadro dos dados pessoais, a proposta socialista abre a possibilidade de haver um número único de cidadão em vez do que sucede hoje com um número de identificação de cidadão, um número de identificação fiscal, um para a segurança social e outro como utente dos serviços de saúde. A CRP proíbe a atribuição de um número nacional único ao cidadão, o que o PS revoga.

Outra norma constitucional que os socialistas querem tirar da lei fundamental é o princípio de que deve o Estado a assegurar a rede de educação pré-escolar. “Criar um sistema público e desenvolver o sistema geral de educação pré-escolar”, lê-se no artigo relativo ao direito à educação. O PS entende que o Estado deve assegurá-lo, mas não necessariamente através do sistema público e resolve o direito ao acesso incluindo a educação pré-escolar e o ensino secundário na alínea que garante o ensino universal, obrigatório e gratuito e onde atualmente só é referido o “ensino básico”.

Também se inscreverão nos deveres do Estado a lutas contra as alterações climáticas. Não vejo que tal inscrição na CRP traga mais-valia significativa. Não se ameaçam com a Constituição os exploradores dos recursos fósseis, o uso do automóvel, do avião ou do navio, bem como a praga incendiária, ou a desflorestação em barda. Basta a lei, a aplicação e a sanção.

No âmbito da saúde pública, o PS quer a possibilidade de decidir confinamentos obrigatórios em caso de “doença contagiosa grave ou relativamente à qual exista fundado receio de propagação de doença ou de infeção grave” sem necessidade de ser decretado estado de emergência, mas com “garantia de recurso urgente à autoridade judicial”. É a formulação encontrada para abrir caminho a nova lei de emergência em saúde pública. A alteração é introduzida num dos artigos relativos aos direitos e liberdades fundamentais, no atinente ao “direito à liberdade e à segurança”, que já tem exceções, como a detenção em flagrante delito ou a prisão preventiva. A proposta acrescenta-lhes a separação de portador de “doença contagiosa grave ou relativamente à qual exista fundado receio de propagação de doença ou infeção graves, determinada pela autoridade de saúde, por decisão fundamentada, pelo tempo estritamente necessário, em caso de emergência de saúde pública, com garantia de recurso urgente à autoridade judicial”. É a judicialização das leis.

Com a garantia de possibilidade de recurso urgente à autoridade judicial, a proposta do PS tenta sossegar os receios de limitação de alguns direitos fundamentais. Com efeito, a única exceção que a lei fundamental já prevê para a limitação de liberdade em questões de saúde implica uma decisão judicial prévia e não só a possibilidade de recurso. Tal é o caso do “internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente”.

E, no atinente, ao acesso a dados para investigação judicial – como é o caso dos metadados, já que o Tribunal Constitucional (TC) declarou inconstitucional a lei vigente, no encalço de decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) e não há garantias de que nova lei passe no TC – o PS tenta resolver o assunto mexendo em vários artigos relativos a direitos fundamentais, a começar pelo direito à inviolabilidade do domicílio, da correspondência e das comunicações.

Aí, propõe a introdução de normas a permitir a vigilância eletrónica do domicílio ainda que só com autorização judicial: “A vigilância eletrónica do domicílio só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstos na lei”; e a proibir “toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal”.

Contudo, logo a seguir, virá um novo artigo a excetuar essa proibição: “Excetua-se do disposto no número anterior o acesso, mediante autorização judicial, pelos serviços de informações a dados de base, de tráfego e de localização de equipamento, bem como a sua conservação, para efeitos de produção de informações necessárias à salvaguarda da defesa nacional, da segurança interna de prevenção de atos de sabotagem, espionagem, terrorismo, proliferação de armas de destruição maciça e criminalidade altamente organizada, nos termos a definir pela lei.”

Será sobretudo com esta norma que o PS quer resolver o problema do acesso e uso a metadados – os dados de tráfego e localização de equipamentos eletrónicos como telemóveis e computadores e não dados de conteúdo dessas comunicações – pelos serviços de informação. Uma lei desse teor foi declarada inconstitucional em 2015. Tinha sido aprovada por PSD, PS e CDS, mas Cavaco Silva enviou-a para o TC, embora dizendo concordar com esta alteração legislativa por questões de segurança nacional. Porém, o TC declarou-a inconstitucional. Os juízes constitucionais voltaram a pronunciar-se no mesmo sentido em 2019, depois de nova aprovação da lei por maioria alargada e de o Presidente da República a ter promulgado, sem recurso ao TC. E o PCP, apoiado pelo Bloco de Esquerda, usando a possibilidade de um décimo de os deputados eleitos (23) pedirem fiscalização sucessiva de leis ao TC, usou dessa prerrogativa.

O uso de metadados pelos serviços secretos ficou vedado, mas o uso para efeitos de investigação criminal era possível até que o TC declarou inconstitucional também essa parte, decisão que provocou problemas a processos judiciais em curso, bem como a investigações em curso.

Foram os metadados e a emergência sanitária que levaram o Presidente da República a pressionar o Parlamento para a revisão da CRP, esquecendo que a iniciativa da revisão cabe em exclusivo aos deputados. Recordo que, por essa razão, um discurso de Cavaco Silva foi duramente criticado por ter sugerido pontos que deveriam ser objeto de revisão constitucional.

A proposta de revisão constitucional do PS tem cerca de 40 alterações, algumas mais substanciais como as relativas à saúde pública, outras de formulação e de adaptação da linguagem aos tempos atuais, no que António Costa disse ser uma iniciativa de modernização, recusando a discussão de questões institucionais como propõe o Partido Social Democrata (PSD), cuja proposta inclui alterações, por exemplo: no mandato do Presidente da República (único de sete anos) e nos demais (de cinco anos em vez dos quatro atuais), na redução do número de deputados para 181 e na designação de dois dos juízes do TC pelo Presidente da República.

Outras propostas são: acrescentar às tarefas fundamentais do Estado o desenvolvimento sustentável, a erradicação da pobreza, o combate às alterações climáticas, as necessidades de desenvolvimento específicas do interior do País, a promoção da igualdade entre homens e mulheres e a promoção dos laços com as comunidades portuguesas residentes no estrangeiro; eliminar a palavra “raça”, substituindo-a por “etnia” no artigo relativo ao princípio da igualdade, no qual introduz a identidade de género (faz o mesmo no relativo aos direitos dos trabalhadores); acrescentar a integridade psíquica no artigo que garante a inviolabilidade da integridade moral e física das pessoas; introduzir as “garantias de defesa em processo disciplinar” nos direitos dos trabalhadores; incluir o princípio de que “salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei, incluindo a salvaguarda do montante e condições de pagamento contratualmente acordados”; garantir que “o trabalho assalariado só pode ser prestado com base em contrato livremente celebrado”; proibir o trabalho forçado e o trabalho infantil; introduzir, no artigo relativo aos direitos dos consumidores, a noção de “serviços de interesse económico geral” e elencá-los: fornecimento de água, de saneamento, de energia, de transportes coletivos urbanos, de telecomunicações, de correio (“Quando se trate de atividades abertas à atividade privada, a lei estabelece as necessárias obrigações de serviço público às empresas encarregadas da sua prestação”); acrescentar a medicina reprodutiva e paliativa nos cuidados de saúde que o Estado deve garantir; ndireito à habitação incluir um novo artigo: “Estabelecer medidas de proteção especial dirigidas a jovens, cidadãos com deficiência, pessoas idosas, e famílias com menores, monoparentais ou numerosas, bem como às pessoas e famílias em situação de especial vulnerabilidade, nomeadamente as que se encontram em situação de sem abrigo, os menores que sejam vítimas de abandono ou maus-tratos, as vítimas de violência doméstica e as vítimas de discriminação ou marginalização habitacional.”; incluir o bem-estar animal, a gestão racional e eficiente de resíduos e a promoção das energias renováveis no artigo sobre ambiente; e promover a literacia digital de todas as camadas da população e promover os direitos fundamentais e os valores consagrados na Constituição, em todos os graus de ensino.

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Sendo a mais duradoura das seis constituições nos dois séculos de constitucionalismo (1822-2022), a CRP logrou o maior período de estabilidade constitucional desde 1896, por não sofrer alterações em 17 anos, desde 2005. Entendendo-se o PSD e o PS (fazem maioria de dois terços), há condições para revisão que garanta mais 50 anos à CRP. Porém, como o PS não quer mexer na organização do poder político, tal desiderato fica diminuído. Se excetuarmos o perfecionismo redacional, praticamente ficamos na mesma.

E não é bom fazer depender do juiz a aplicação em concreto duma disposição legal. Cabe-lhe, em princípio, julgar do cumprimento da lei, não da sua obrigatoriedade ou da sua dispensa.  

2022.11.12 – Louro de Carvalho

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