domingo, 6 de novembro de 2022

“Com a morte, a vida humana não acaba, apenas se transforma”

 

No segundo livro dos Macabeus, ressalta o testemunho de sete irmãos deram a vida pela sua fé, durante a perseguição movida contra os judeus por Antíoco IV Epífanes (2Mac 7,1-2.9-14). E o que os motivou e lhes deu força para enfrentar a tortura e a morte foi a certeza de que Deus reserva a vida eterna aos que percorrem, com fidelidade, os seus caminhos nesta peregrinação terrestre.

Também Jesus, no Evangelho de Lucas, garante que a ressurreição é a realidade que nos espera (Lc 20,27-38). Porém, não vale a pena imaginar essa realidade à luz das categorias que marcam a nossa existência finita e limitada. Não se trata de simples reanimação ou de reencarnação noutro corpo de pessoa ou de animal ou numa planta. Antes, a nossa vida de ressuscitados será uma existência plena, totalmente nova. E, embora a forma como isso acontecerá seja um mistério, a ressurreição dos mortos é uma certeza absoluta no horizonte do crente.

É esta a temática decorrente da proclamação festiva e da meditação interiorizada da Palavra de Deus que nos propicia a Liturgia da Palavra do 32.º domingo do Tempo Comum no Ano C.

Vejamos o contexto do passo bíblico veterotestamentário acima indicado.

Em 323 a.C., com a morte de Alexandre, o Grande, o império foi dividido pelos seus generais (“diádokhoi”). E a Palestina (integrada no império desde 333 a.C.) ficou, inicialmente, nas mãos dos Ptolomeus (que dominavam o Egipto e a Fenícia). Depois, no ano 200 a.C., com a batalha das “fontes do Jordão”, passou para as mãos dos Selêucidas. E, enquanto, o poder ptolomaico foi tolerante, respeitando as tradições e a fé do Povo de Deus, sob a égide dos Selêucidas, a cultura helénica tornou-se agressiva, ameaçando a sobrevivência do judaísmo. Sobretudo, no reinado de Antíoco IV Epífanes (175-164 a.C.), o helenismo foi imposto, mesmo pela força, ao Povo de Deus, pelo que muitos judeus, firmes nas suas tradições, foram perseguidos, torturados e mortos.

O trecho veterotestamentário em referência relata o martírio de uma mãe e dos sete filhos, por se recusarem a violar a fé e as tradições judaicas. Tratar-se-á de uma tradição popular (embora com substrato histórico), transmitida oralmente antes de ser integrada naquele livro dos Macabeus.  

Não temos informação do lugar do martírio, nem do nome dos sete irmãos. Sabemos, porém, que o rei pretendia coagir, pela tortura, uma família de sete irmãos e da mãe a abandonar a fé e a comer carne de porco, proibida por ser de um animal “impuro”. Todavia, como o trecho o releva, foram claras e corajosas as respostas destes irmãos, apostados na fidelidade aos valores judaicos e à fé dos pais e pouco preocupados com as ameaças régias.

Segundo as explicações colocadas pelo hagiógrafo na boca destes heróis, o que lhes dá a coragem para enfrentar as exigências dos algozes é a fé na ressurreição ou, literalmente, na revivificação eterna de vida. Tiveram a coragem de defender a fé até à morte, porque acreditavam que Deus lhes devolveria a vida, uma vida semelhante à que lhes ia ser tirada. De acordo com a catequese aqui plasmada, o Deus criador tem, o poder de ressuscitar os mártires para a vida eterna. Não se trata, ainda, da noção neotestamentária de ressurreição (vida nova, plena, transformada e elevada à máxima potencialidade); é a ideia de revivificação, da reaquisição, no Além, de uma vida semelhante à que foi tirada ao homem, embora se cresse que, nesse mundo de Deus, não haveria pranto, nem sofrimento, nem morte. Seja como for, está patente a ideia de imortalidade. Não obstante, o texto não ensina a revivificação de todos os homens, mas só a dos justos.

É a primeira vez que a doutrina da ressurreição é biblicamente explicitada. A partir daqui, a ideia desenvolver-se-á até ser completamente iluminada pela palavra e pelo exemplo de Jesus.

O trecho evangélico em causa situa-nos em Jerusalém, antes da morte de Jesus, no contexto das grandes controvérsias com os líderes judaicos, que representam, na ótica lucana, a última oportunidade de acolher a salvação que Deus dá ao seu Povo. Nas sucessivas discussões, vê-se que os líderes rejeitam a proposta de Jesus e sobressai o quadro da paixão e da morte na cruz.

Os adversários de Jesus são, nesta perícopa evangélica, os saduceus. Os saduceus eram um grupo aristocrático, recrutado sobretudo entre os sacerdotes da classe superior. Exerciam o poder à volta do Templo e dominavam o Sinédrio, embora, nessa instituição, a sua autoridade não fosse absoluta a partir da chegada dos fariseus aí. Ainda que limitada pela presença do procurador romano, a sua importância política era real. Entendiam-se bem com o opressor, já que pretendiam manter a situação, para não perderem os seus benefícios políticos, sociais e económicos.

No âmbito religioso, apenas lhes interessava a Lei escrita, a “Torah”, negando qualquer valor à “Mishnah” (a Lei oral), essencial para os fariseus. Por consequência, negavam algumas crenças e doutrinas admitidas nos ambientes populares frequentados pelos fariseus. Assim, não aceitavam a ressurreição dos mortos, já que nenhum versículo da “Torah” a mencionava. Porém, no conflito com os fariseus, estava em causa uma determinada visão da sociedade e do poder. Os fariseus contestavam a “democratização” da Lei promovida pelos fariseus e pelos escribas, visto que tirava aos sacerdotes a autoridade de intérpretes da Lei. E, diante do povo, mostravam-se distantes, severos, intocáveis.

A questão central do trecho em causa gravitava à volta da ressurreição, tema que nada significava para os saduceus. Sentindo o pensamento de Jesus próximo do dos fariseus, apresentaram uma hipótese académica, a ridicularizar a crença na ressurreição: uma mulher casou, sucessivamente, com sete irmãos, cumprindo a lei do levirato (o irmão do defunto que morreu sem filhos devia casar com a viúva, para dar descendência ao falecido e para impedir que os bens da família fossem parar a mãos estranhas. Quando ressuscitarem, de qual dos irmãos será esposa? Foi a pergunta.

Antes de mais, Jesus afirma que a ressurreição não é, como pensavam os fariseus, uma simples continuação da vida deste mundo (uma revivificação, como em 2Mac 7,1-2.9-14), mas uma vida nova e distinta, de plenitude, que dificilmente podemos entender a partir das nossas realidades. Então, não se porá o problema do casamento. A expressão “são semelhantes aos anjos” não é de depreciação do matrimónio, mas a afirmação de que, nessa vida, a única preocupação é servir e louvar a Deus. O poder de Deus, que chama os homens da morte à vida, transforma e assume a totalidade do ser humano, pois nascemos para uma vida totalmente nova em que as nossas potencialidades serão elevadas à plenitude. A nossa capacidade de compreensão deste mistério é limitada, pois contemplamos e classificamos as coisas à luz das realidades terrenas, quando a ressurreição ultrapassa em absoluto a nossa realidade terrena.

Depois, a resposta de Jesus constitui a afirmação da certeza da ressurreição. E, porque não valia a pena apoiar-se em passagens recentes da Escritura (como Dn 12,2-3) que sugeriam a fé na ressurreição (esses textos não tinham valor para os saduceus), cita-lhes a “Torah” (cf Ex 3,6): no episódio da sarça-ardente, Javé revelou-Se a Moisés como “o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob”. Ora, se Deus Se apresenta assim – muitos anos depois de Abraão, Isaac e Jacob terem desaparecido – é porque os patriarcas não estão mortos. Com efeito um “morto”, ou seja, um homem reduzido a sombra inconsciente e privada de vida no “sheol”, segundo a lógica semita, perdeu a proteção de Deus, pois já não existia como homem vivo e consciente. Porém, na ótica de Jesus, os patriarcas não estão reduzidos a sombras na obscuridade absoluta do “sheol”, mas vivem em Deus. Portanto, se Abraão, Isaac e Jacob estão vivos, podemos falar em ressurreição.

E Jesus, que ressuscitou dos mortos ao terceiro dia, tinha garantido: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem vida eterna, e Eu o ressuscitarei no último dia.” (Jo 6,54) E não só. Afirmou-se como a antonomásia da ressurreição ao dizer a Marta, interpelando-a sobre a sua fé, antes da ressurreição de Lázaro: “Eu sou a ressurreição e a vida; quem acredita em mim, ainda que tenha morrido, viverá; e todo aquele que vive e crê em mim jamais morrerá para sempre. Acreditas nisto?” (Jo 11,25-26).

Num tempo em que se tem receio de contradizer a morte de Deus e, por consequência, de sustentar o facto da sua revelação em Jesus Cristo, há ideia ténue sobre a ressurreição. Muitos, mesmo dos que se dizem crentes, são tentados a pensar que a vida termina no cemitério ou no crematório. Outros pensam na reanimação do corpo ou na reencarnação noutro corpo humano ou animal ou numa planta. Pensam que a ressurreição de Jesus não passa de metáfora. E, na evocação de um falecido, dizem: “Lá de onde quer que esteja nos vê e ouve e ficará muito contente connosco.”

É, assim, pertinente o enunciado paulino: “Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou! Mas, se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação e a vossa fé! E seríamos até considerados falsas testemunhas de Deus, porque teríamos dado testemunho contra Deus, ao dizer que ressuscitou Cristo, a quem não poderia ter ressuscitado, se os mortos não ressuscitam. É que se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, é inútil a vossa fé; estais ainda nos vossos pecados. E, portanto, também se perderam os que adormeceram em Cristo. Se esperamos em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens. Ora, Cristo ressuscitou de entre os mortos, como primícias dos que estão adormecidos.”  

Na verdade, tantos deram a vida pela fé em Cristo. E o núcleo da fé é a ressurreição e a vida plena.

***

Por fim, é de considerar, entre o referido texto veterotestamentário, assumido como primeira leitura, e o supradito trecho evangélico, um passo da Segunda Carta aos Tessalonicenses, que alguns admitem não ser de Paulo e que vem servindo de segunda leitura (2Ts 2,16-3,5).

A carta coloca-nos ante uma comunidade cristã que vive, com empenho e generosidade, o seu compromisso cristão apesar das provações, constituindo um modelo para as comunidades vizinhas. Contudo, tem dúvidas e inquietações em questões de doutrina, sobretudo no atinente ao “dia do Senhor” (segunda vinda de Jesus). E Paulo aproveita o ensejo para fazer alguns pedidos, para corrigir comportamentos e para exortar a uma fidelidade cada vez maior ao Evangelho.

Depois de apresentar a doutrina sobre a segunda vinda do Senhor, convida os tessalonicenses a assumir, entretanto, a atitude correta. Pede que guardem as tradições recebidas “de viva voz ou por carta”, isto é, que se mantenham fiéis ao Evangelho de Jesus que o apóstolo lhes transmitiu.

E esse convite vem acompanhado de uma súplica a Deus Pai e a Jesus Cristo, para que ajudem à fidelidade. Fica evidente que, no processo de salvação do homem, há dois planos: o dom de Deus e o esforço de fidelidade do homem, sendo o esforço do homem inútil sem a graça de Deus. Mas a fidelidade do Senhor alavanca a nossa esperança e postula a nossa perseverança.

Depois, há o pedido, aos destinatários da carta, de oração pelo apóstolo e pelo seu ministério, correspondente à prece do apóstolo em favor desses destinatários. Na verdade, a oração de uns pelos outros é preciosa forma de solidariedade cristã. De resto, os crentes que receberam a Palavra libertadora de Jesus devem solicitar a ajuda divina para que a salvação que Jesus trouxe e que a Igreja ficou encarregada de testemunhar chegue a todos os homens, sobretudo se as circunstâncias são adversas à proclamação e à vivência do Evangelho. Com efeito, o papel de Deus é central: sem a ajuda de Deus, será impossível o apóstolo dar testemunho. O testemunho é fulcral!

2022.11.06 – Louro de Carvalho

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