quarta-feira, 9 de novembro de 2022

O Presidente não governa, mas deve conhecer a orgânica do Governo

 

O Presidente da República avisou, a 4 de novembro, a ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa, que estará “muito atento” e não lhe perdoará, caso descubra que a taxa de execução dos fundos europeus não é a que ele acha que deve ser.

No dia em que foram inaugurados os Paços do Concelho da Trofa, um município criado há 24 anos, o chefe de Estado começou o discurso dizendo “duas coisas” a Ana Abrunhosa: “E, como não tenho tido oportunidade de o dizer, digo-lhe hoje. Quando aceitamos funções políticas sabemos que é para o bom e para o mal. Não somos obrigados a aceitar. Sabemos que são difíceis, são árduas, que estão sujeitas a um controlo e a um escrutínio crescente – a democracia é isso – e há dias bons e dias maus, dias felizes e dias infelizes. A proporção é dois dias felizes por 10 dias infelizes.” E prosseguiu com um aviso sobre a execução dos fundos europeus: “Este é um dia superfeliz, mas há dias superinfelizes. E verdadeiramente superinfeliz para si será o dia em que eu descubra que a taxa de execução dos fundos europeus não é aquela que eu acho que deve ser. Nesse caso não lhe perdoo. Espero que esse dia não chegue, mas estarei atento para o caso de chegar.”

Mais tarde, já após a visita ao edifício dos Paços do Concelho, esclareceu: “Estava a pensar no PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] porque o resto sei que vai avançando. Mas o PRR é muito dinheiro que podemos utilizar, e chegar ao seu destino está a demorar.”

Ao lado, a ministra da Coesão Territorial, que não quis falar à margem, aos jornalistas, acenou com a cabeça e referiu: “Está tudo controlado.”

Já no dia 3, Marcelo Rebelo de Sousa, afirmou que, na atual conjuntura, a utilização dos fundos europeus, nomeadamente do PRR, é “urgente” e “imperdoável”, se não acontecer a tempo.

“Temos de tirar o máximo proveito possível daquilo que são fatores que são conjunturalmente, apesar de tudo, favoráveis. Um favor favorável é a disponibilidade de fundos que, pensados para compensar parcialmente a pandemia, estão disponíveis num período de guerra”, disse o chefe de Estado no seu discurso na cerimónia que assinalou o 50.º aniversário do grupo Solverde.

Destacando que o termo da guerra é “imprevisível”, na duração e na “balança de poderes”, o Presidente frisou que o país pode beneficiar de outro fator, o de “ser visto como um destino seguro” – “destino seguro, próximo, mas suficientemente distante da área de conflito, como se fosse uma ilha no Atlântico que é europeia, mas longínqua da área onde é arriscado escolher como destino de turismo”, “como destino de investimento externo” e “como local de residência duradoura”.

Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), dizendo que Portugal está a “beneficiar dessa situação”, lembrou, no entanto, que tal acarreta responsabilidades “para todos”, sendo esta é uma situação “transitória”, pelo que “deve ser aproveitada cabalmente”.

Advertindo que se trata de “uma oportunidade em algumas das suas facetas irrepetível”, sublinhou que o país tem “condições” para “cumprir” com estes desígnios. Com efeito, segundo garantiu, “dispomos de fundos europeus e condições de investimento externo”, bastando sabermos “fomentar as condições de investimento interno suficientes para enfrentar o período de guerra que estamos a viver”. E, vincando que “há condições para isso”, avisou que “deixará de haver, se formos relativamente tímidos ou incapazes no aproveitamento destas condições positivas”.

***

Ninguém pode condicionar o Presidente da República a tomar posição sobre qualquer matéria em causa no debate público. Todavia, pelo cargo que desempenha, deve ser mais contido e cordato para com todos. Não se quer dizer que não haja motivos de preocupação no atinente à gestão dos fundos comunitários, nomeadamente no que respeita ao PRR.

Porém, não dá para perceber a animosidade expressa nas palavras dirigidas a uma ministra que não tem responsabilidade direta sobre o PRR (essa cabe à ministra da Presidência) nem única sobre os fundos europeus, pois, no atinente às verbas alocáveis “aos Programas Regionais e aos Programas de Cooperação Territorial Europeia”, essa cabe à ministra da Coesão Territorial, mas em articulação com a ministra da Presidência.

Além disso, o tom utilizado no discurso é de todo irrecomendável. Quem é o chefe de Estado para não perdoar a um ministro o quer que seja, para se arrogar ao direito de julgar a taxa de execução de fundos ou de obra e mesmo para fiscalizar qualquer matéria da governação? A fiscalização política da governação cabe ao Parlamento (ver alínea a do art.º 162.º da CRP – Constituição da República Portuguesa)

O Presidente da República (PR) não governa. Cabe-lhe no sistema semipresidencialista – e não é pouco – garantir a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas” e ser, “por inerência, Comandante Supremo das Forças Armadas” (ver art.º 120.º da CRP). Em relação ao PRR, há uma estrutura de planeamento, monitorização e avaliação dos projetos. Além disso, o Tribunal de Contas (TdC) tem a palavra sobre a legalidade e a oportunidade da aplicação das verbas da conta do Estado.

Nenhuma norma constitucional permite ao chefe de Estado interferir diretamente na governação, nem mesmo na escolha de ministros e secretários de Estado, que nomeia e exonera, mas sob proposta do primeiro-ministro (ver alínea h do art.º 133.º da CRP) ou pelo veto a decretos-lei do Governo, que apenas significa discordância política sobre a matéria que versem, limitando-se a não os promulgar (ver n.º 4 do art.º 136.º da CRP), devendo informar por escrito o Governo.

A intervenção do PR na Trofa, como assinala o Professor Vital Moreira no blogue “Causa nossa”, a 7 de novembro, “dá a entender que o Governo é politicamente responsável perante o Presidente pela condução dos negócios públicos” e “ignora que o único interlocutor governamental de Belém é o primeiro-ministro, e não os ministros, que só respondem perante o chefe do Governo”.

“O Governo é o órgão de condução da política geral do país e o órgão superior da administração pública” (art.º 182.º da CP); “os membros do Governo estão vinculados ao programa do Governo e às deliberações tomadas em Conselho de Ministros” (art.º 189.º da CRP); e “e os ministros são responsáveis perante o Primeiro-Ministro e, no âmbito da responsabilidade política do Governo, perante a Assembleia da República” (n.º 3 do art.º 191.º da CRP). Ora, o Presidente sabe isto.

É certo que “o Primeiro-Ministro é responsável perante o Presidente da República e, no âmbito da responsabilidade política do Governo, perante a Assembleia da República” (n.º 1 do art.º 191.º da CRP). Contudo, os ministros não respondem diretamente perante o chefe de Estado.

Outros melhor ou pior, souberam influenciar os primeiros-ministros a manter membros do Governo ou a prescindir deles. Porém, nenhum criticou publicamente um governante em concreto. Já MRS pôs em causa Mário Centeno, a quem chamou a Belém, chegando a dizer que o ministro se mantinha em virtude da situação grave do país, tal como evidenciou, pela verrinosidade discursiva em outubro de 2017, a fragilidade de Constança Urbano de Sousa a propósito dos incêndios, o que não conseguiu fazer com Eduardo Cabrita, apesar dos azares deste.

É, pois, razoável o pensamento de Vital Moreira – já que, desta vez, “MRS ultrapassou as suas próprias marcas anteriores”, de que o Primeiro-Ministro deveria tomar duas medidas elementares de defesa da autonomia política e institucional do Governo(i) vedar aos ministros qualquer contacto bilateral com Belém; (ii) deixar de envolver o Presidente em inaugurações ou eventos governamentais em que não esteja o Primeiro-Ministro.” Com efeito, é tempo de “atalhar a esta progressiva subversão do sistema de governo constitucionalmente estabelecido”.

Concordando com a sugestão, penso que o PR deve mostrar que não ignora a orgânica do XXIII Governo Constitucional, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 32/2022, de 9 de maio, sendo clarividente o teor do n.º 3 do art.º 13.º: “A Ministra da Presidência tem como missão formular, conduzir e avaliar as estratégias de desenvolvimento económico e social, tendo em conta os objetivos da convergência e da coesão, assim como definir e executar a estratégia, as prioridades, as orientações, a monitorização, a avaliação e a gestão global dos programas financiados por fundos europeus, nomeadamente no âmbito da política de coesão da União Europeia.”

E o n.º 9 do art.º 28.º estabelece: “A ministra da Coesão Territorial exerce a superintendência sobre a Agência para o Desenvolvimento e Coesão, I. P., em matérias exclusivamente referentes à Política Regional, à cooperação territorial europeia, aos Programas Regionais e aos Programas de Cooperação Territorial Europeia, em coordenação com a Ministra da Presidência.”

Nenhuma destas normas foi alterada pelo Decreto-Lei n.º 65/2022, de 28 de setembro, que dá nova redação a alguns artigos do anterior.

Assim, embora se entenda que o Governo não crie ondas com o PR, é confrangedora a postura da ministra a limitar-se a assumir que a preocupação do Presidente é a do Governo ou a especificar que é a lei que rege a apresentação, aprovação e execução dos projetos. E é irónica e distrativa a reação do primeiro-ministro em classificar a intervenção de MRS como um dos seus momentos criativos. Não obstante, António Costa foi esclarecedor em relação ao processo.

Não sei se o PRR é cumprível, dada a carga burocrática e os constrangimentos que envolvem a execução e avaliação dos projetos. Com efeito, alguns críticos sabem-no – e fingem não saber – que um projeto aprovado tem uma primeira tranche de verbas europeias, depois do começo da sua execução (excecionalmente pode tê-la antes), e a última, após o pedido de saldo final e a avaliação. Além disso, a entidade respetiva deve dispor de verbas para adiantar pagamentos de aquisições, de mão-de-obra e de assessorias, podendo necessitar de financiamento bancário.

Por outro lado, foi espinhoso o processo aprovação do Decreto-Lei n.º 78/2022, de 7 de novembro, que simplifica os procedimentos administrativos da prossecução de atividades de investigação e desenvolvimento. Foram tantas as objeções!

É preciso haver paciência e honestidade a governar, sagacidade e esperteza na oposição.

2022.11.09 – Louro de Carvalho

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