sábado, 26 de novembro de 2022

Desgaste e cansaço presidencial, uma hipótese em equação

 
As declarações do Presidente da República (PR) a propósito da sua ida ao Catar, por ocasião do Mundial de Futebol 2022, aumentaram críticas ao chefe de Estado.
O atual inquilino de Belém cumprirá, a 9 de março próximo, o sétimo ano da sua primeira tomada de posse como Presidente da República, cargo para que foi eleito, pela primeira vez, a 24 de janeiro de 2016, com 52% dos votos na primeira volta, proeza que repetiu a 24 de janeiro de 2021, mas, desta feita, com 60,66% dos votos, também na primeira volta.
Há mais de 20 anos, quando liderava o Partido Social Democrata (PSD), Marcelo Rebelo de Sousa sustentava a ideia de o mandato presidencial ser único e durar sete anos. E disse-o, sem margem para dúvidas, em janeiro de 2014, em conversa com Judite de Sousa na TVI: “Dez anos para um Presidente [são] demais.” Mas na, Assembleia Constituinte, defendera os dois mandatos.
Estava, então, em análise o desempenho presidencial de Cavaco Silva, cuja popularidade estava em declínio, mercê de algumas declarações proferidas no âmbito da crise (por exemplo, sobre a exiguidade da reforma do casal presidencial, sobre a eventualidade da saída da Grécia da Zona Euro, etc.), da forma como os governantes respondiam às dificuldades, da sua geral cumplicidade com os diplomas do Parlamento e do Governo, pela via da promulgação, e pela forma como pensava resolver a crise política gerada pela demissão “irrevogável” de Paulo Portas, na sequência da estrondosa demissão de Vítor Gaspar da pasta das Finanças e da indigitação de Maria Luís Albuquerque para lhe suceder, sem consulta prévia ao líder do segundo partido que integrava o Governo. Porém, o que vale para uns tem de valer para outros, pois os tempos mudaram.
A ideia do mandato único de sete anos parece vir a propósito do presente desempenho do cargo por Marcelo Rebelo de Sousa.
O que disse e a forma como o fez à ministra da Coesão Territorial mostram um uso do poder, que não lhe compete, e um, pelo menos aparente, desconhecimento da orgânica do Governo:
“Queria dizer-lhe duas coisas. Este é um dia superfeliz, mas há dias superinfelizes. E verdadeiramente superinfeliz para si será o dia em que eu descubra que a taxa de execução dos fundos europeus não é aquela que eu acho que deve ser. Nesse caso não lhe perdoo.”
O ministro não responde diretamente perante o chefe de Estado, mas perante o primeiro-ministro, que tem a obrigação de informar periodicamente o Presidente da República sobre a governação. Ademais, cabe ao Parlamento e ao Tribunal de Contas a fiscalização da execução física e financeira dos projetos que envolvem dinheiro público, não à Presidência da República. Qualquer crítica que lhe apraza fazer tem lugar nos contactos institucionais com o primeiro-ministro e no recurso a mensagens a enviar ao Parlamento.
Como é seu hábito, quando notou que não esteve bem, disse aos jornalistas que se referia ao PRR (Plano de Recuperação e Resiliência), cuja monitorização cabe à ministra da Presidência, que não à destinatária do esquisito e equívoco ralhete. Todavia, não é a primeira vez que o PR põe em questão ministros. Fê-lo claramente com Mário Centeno, de forma estrondosa e “bem-sucedida”, com Constança Urbano de Sousa e, de forma hesitante e sem êxito, com Eduardo Cabrita.
Sobre os abusos na Igreja alvitrou, ao virar da esquina: “Haver 400 casos não me parece que seja particularmente elevado.” Passados alguns dias, emendou o que não devia ter comentado: “A minha intenção não foi ofender quando disse o que disse, mas, se porventura entenderam, uma que seja das vítimas que está ofendida, eu peço desculpa por isso.”
Não se tratava de falta de entendimento, mas de não dever comentar e de não se atrelar a números, quando está em causa a dignidade das pessoas.
A propósito do Mundial de Futebol 2022, comentou: “O Catar não respeita os direitos humanos. Toda a construção dos estádios e tal, mas, enfim, esqueçamos isto. É criticável, mas concentremo-nos na equipa” Porém, ante o chorrilho de críticas – umas convictas, outras hipócritas – emendou a mão: “Naturalmente, eu, depois de manhã, estarei a falar de direitos humanos no Catar.”
Até falou dos direitos humanos, mas não perante individualidades dos Catar. Fê-lo a propósito da educação e da saúde, em reunião com os representantes do Gana e dando testemunho do que se faz em Portugal nestas áreas. Enfim, tratou o Catar com pezinhos de lã não falou para o Catar.
Aliás, como era possível as autoridades máximas do país criticarem, agora, a falta de respeito pelos direitos humanos, quando aceitaram acriticamente a decisão da Federação Internacional de Futebol (FIFA) de realizar o Mundial naquele país, credenciaram a participação da seleção nacional e, como tantos outros países do Ocidente, sabem que têm lá as empresas a rasgar estradas e a contruir os estádios, provavelmente a engrossar a falta de respeito pelos direitos humanos, pelo menos na área do trabalho?     
É também hábito do PR ser fácil em comentar o mérito ou o demérito do Governo nesta ou naquela matéria e, passado algum tempo, vir emendar a mão ou dizer, precisamente, o contrário. E facilmente promulga um diploma oriundo do Parlamento ou do Governo com reservas expressas publicamente, quase dando razões que tornariam difícil a promulgação.
Fez cair o látego da ameaça da dissolução parlamentar aquando da discussão na generalidade do Orçamento do Estado para 2022, como o fez confrontado com a hipótese – prontamente rejeitada – de o primeiro-ministro assumir um cargo europeu em 2024.    
Não raro se lê que o PR se banaliza e banaliza a função, que esbanja a “gravitas” do cargo, que fala e torna a falar, que não o levam a sério, que diz que não disse o que disse, mas não queria dizer, que está velho e cansado, que faz o que não deve e não faz o que deve.
Todavia, as sondagens não confirmam o teor dos comentários da nossa praça. Antes, a queda da popularidade dos políticos, registada em outubro pela Aximage, mantinha o PR como o político mais popular, acima dos 60%. No entanto, a teoria do número sete aguenta-se e é o próprio chefe de Estado a sustentá-la, de modo que o PSD a incluiu no seu projeto de revisão constitucional.
O PR, que referiu, na campanha eleitoral, que se recandidatara por causa da pandemia, reiterou-o recentemente a Francisco Pinto Balsemão, no podcast “Deixar o Mundo Melhor”, justificando que “a renovação é uma caraterística da democracia” e os anos do primeiro mandato “foram cinco anos brutais”. Por isso, entendia dever “dar lugar a outra pessoa, com a idade que já tinha”, com a forma como exerce a presidência: “com proximidade, que é um esforço físico brutal”.
Quem lhe acompanhou o final do primeiro mandato confirma que sempre partilhou dúvidas sobre se iria a um segundo mandato, mas há quem nunca tenha visto pouca verdade nisso, como há quem tenha percebido hesitações genuínas na cabeça do PR. Quem o segue de perto legitima a tese do desgaste e do cansaço. Aliás, é o que apontam aos primeiros-ministros mais duráveis: Cavaco Silva, António Guterres e, agora, António Costa. Chegaram desgastados aos sete anos.
É caso para perguntarmos como estará o país, a 9 de março de 2023, sete anos depois da sua entrada na chefatura do Estado. Estará à vista o fim da crise social, que parece estar a piorar, a insuficiência da aplicação dos milhões de fundos da União Europeia (UE), a pobreza, que tem cada vez mais pacientes, a falta de habitação e a incerteza do futuro dos jovens? E que fará o PR a partir de março de 2023? Marcelo Rebelo de Sousa não desiste, antes garante exigência, atenção e vigilância. Está a fazer aquilo de que gosta e que programou desde há muito.
Nos sete anos que chama de “brutais” e que foram singulares, herdou a geringonça, ajudou a segurar o sistema financeiro e a estabilizar a imagem do país na UE, levou com os fogos e com o líder, “otimista irritante”, de dois governos minoritários, que cederam o lugar a um governo maioritário do Partido Socialista (PS), por vontade inequívoca do eleitorado. Chegou a pandemia, o PSD, perdido em lutas internas e na ambiguidade, marcava passo, o Chega crescia e o Partido do Centro Democrático Social (CDS) ficou sem assento parlamentar e veio a guerra e a inflação histórica. Marcelo crê encontrar suplemento anímico “na espontaneidade e junto do povo”.
A ex-deputada do CDS, Inês Teotónio Pereira, no Diário de Notícias, coloriu o quadro assim: “Num país de fado, de inflação, de filas de trânsito, de gente chata e queixosa, Marcelo é o único que se diverte e que nos diverte. É como uma criança aos saltos, feliz da vida, num dia de chuva e cinzento. Ele é gafe atrás de gafe, é um livro de aventuras, uma série de suspense, uma sitcom, é o enredo vivo de revista à portuguesa sobre política.”
Já não tem nenhum desafio eleitoral pela frente. Provavelmente, seguirá o exemplo de Mário Soares, que fez dura magistratura de oposição ao cavaquismo, que se desgastou e se esvaziou. A agenda política do PR, por maior que seja o apoio institucional ao Governo, não faz esquecer o quadrante político de onde é oriundo. E, nos últimos tempos, tem aproveitado a maré.
O Presidente nem disfarça os planos que tem para quando deixar o palácio: viajar pelo mundo, voltar ao voluntariado, ser cuidador informal, puxar pelos jovens.
Entretanto, o tempo que lhe resta de mandato pode-lhe dar o ensejo de ver um PS desgastado e de poder acompanhar e até de estimular uma reviravolta à direita que vire o jogo político, desde que o PSD clarifique o programa e a metodologia. Seja como for, Marcelo Rebelo de Sousa, segundo o qual mais do que cinco anos é mau, vai cumprir os dez, arriscando a sua associação a uma década de sucessivas crises, com o PS ao leme e sem garantias de deixar um país muito diferente, ou vindo a gloriar-se de ter instalado em São Bento um poder legislativo e um poder executivo liderado pela “direita social”. Porém, o sonho é acabar como o “Presidente do povo”.
Luís Montenegro, evitando entrar na onda de críticas, escuda-se na prática de não comentar as declarações do chefe de Estado. E o primeiro-ministro tem vindo em socorro do PR, mesmo nos casos mais delicados e nas suas atitudes mais verrinosas (apontando-lhe os diversos “momentos criativos” ou reconhecendo ao PR o direito de falar do que entender). Por sua vez, o chefe de Estado vem sendo gentil com António Costa, como sucedeu ao defendê-lo das acusações do ex-governador do Banco de Portugal.
No entanto, é pertinente o aviso que fez a Ana Abrunhosa, no sentido de que a política exige sacrifícios, ninguém é obrigado a esta atividade e quem a aceita tem de contar com isso, não podendo queixar-se. E, se aplicar a si o aviso, em vez de se queixar ou de se afirmar cansado, pode mudar de atuação e até renunciar. Não tem que, repetidamente, levantar o látego da dissolução parlamentar, como não tem de elogiar ou de cominar o Governo.  

2022.11.26 – Louro de Carvalho

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