terça-feira, 1 de novembro de 2022

É cada vez mais pertinente celebrar a Solenidade de Todos os Santos

 

A Solenidade de Todos os Santos, que celebramos a cada dia 1 de novembro, é uma das marcas mais significativas do cristianismo. Com efeito, celebra a santidade das pessoas e do povo cristão a que pertencem.

Pela natureza divina de Jesus Cristo e por vocação, a Igreja é santa na sua essência e origem, muito embora tenha a apoquentá-la, quase em regime de permanência o pecado e até o crime. Neste sentido, a Igreja, que é santa na sua origem e na sua finalidade, alberga, no seu seio, pecadores e é servida por pecadores, que se servem, não raro, do seu estatuto de cristãos, traindo o ADN da própria Igreja como Cristo a concebeu e deu à luz.

Celebrar Todos os Santos não pode jamais circunscrever-se aos inscritos no catálogo dos/as canonizados/as ou no dos/as beatos/as. Nem mesmo abrange também só aqueles e aquelas que estão no céu. A Solenidade de Todos os Santos é a festa holística da Igreja, santa na sua origem e na sua vocação. Com efeito, até à fundação das comunidades dos seguidores de Cristo em Antioquia, todos os que aderiam à pregação dos apóstolos e tentavam seguir os caminhos ditados pela fé eram chamados “santos”. Só a partir de Antioquia é que os seguidores de Jesus Cristo passaram a usar o apelativo de cristãos, porque o verdadeiro Santo de Deus é Jesus Cristo. Contudo, nem por isso os cristãos deixam de ser considerados radicalmente santos, visto que, pelo Batismo, participam no mistério da morte, ressurreição e acessão do Senhor. E esse é o mistério pascal, o mistério de santidade, que refulge no/a cristão/ã e na Igreja, enquanto comunidade querida e gerada por Cristo, apesar das inúmeras mazelas e crimes que afetem os seus membros.

Não vale, pois, contabilizar os casos de pecado e de crime, por poucos que fossem ou por muitos que sejam (e são), que podem manchar o rosto cristão de qualquer um/a e que, seja qual for o tempo, o lugar ou o agente, envergonham a comunidade, que deve promover o arrependimento e o pedido de perdão, acompanhados da emenda de vida e da adequada reparação, segundo a Justiça misericordiosa de Deus e segundo a justiça humana, se for o caso de crime.

É preciso referir que, muito embora os casos de crime, na Igreja e fora dela, tenham sido apreciados segundo os critérios do tempo em que ocorreram (porque a justiça não soube ou não quis agir segundo o direito), o juízo moral e social deve ser o da condenação da ação errada e criminosa. A não ser assim, justificaríamos a pena de morte, a escravatura, a tortura, o tráfico de pessoas ou de órgãos, a guerra, a defesa da honra com a morte de membros da família, etc.

Em todo o caso, celebrar Todos os Santos postula que se reserve lugar especial para aqueles e para aquelas que já estão no Céu, mormente os/as que foram propostos pela autoridade eclesial à veneração de toda a Igreja e de algumas das suas comunidades locais, que funcionam como chamariz para a nossa ascensão, de que não podemos distrair-nos enquanto peregrinamos neste mundo. Na verdade, o prefácio da Solenidade faz-nos rezar: “Hoje nos dais a alegria de celebrar a cidade santa, a nossa mãe, a Jerusalém celeste, onde a assembleia dos santos, nossos irmãos, glorifica eternamente o vosso nome. Peregrinos dessa cidade santa, para ela caminhamos na fé e na alegria, ao vermos glorificados os ilustres membros da Igreja, que nos destes como exemplo e auxílio para a nossa fragilidade.”

Celebrar Todos os Santos é pertinente para contrapor a santidade efetiva à iniquidade que tenta minar, a cada passo, a vida e a atuação da Igreja, fazendo eclipsar tanto bem que se vem fazendo em prol do bem comum, no aperfeiçoamento das pessoas, a consolidação das comunidades, na promoção do bem-estar e no progresso harmonioso de todos, no combate ao analfabetismo, na luta por saúde, educação, habitação, trabalho, proteção social e segurança pessoal para todos.

Celebrar Todos os Santos é sentirmos a fraternidade entre todos, vivos e defuntos, sentirmo-nos filhos de Deus, graças ao amor que decidiu ter por nós, assumirmos como nosso o património as bem-aventuranças, esperarmos ser recebidos no reino eterno, porque tivemos a ousadia de procurar o Senhor e de branquear as nossas túnicas no sangue do Cordeiro. É ter fé na Igreja, que tem origem divina, o que lhe dá a garantia da perpetuidade ao serviço do Reino de Deus.

Se a avaliássemos só pelas ações dos homens e das mulheres, nomeadamente pelos crimes de abuso sexual de menores, pela Inquisição ou pelo comportamento de Papas e Cardeais do Renascimento e seus colaboradores e colaboradoras, mais a assimilaríamos a um ninho de víboras. Ou seja, pelas asneiras e erros de muitos dos seus servidores, se não fosse a mão de Deus, já teria sucumbido há muito tempo. Attamen, praevalebit!    

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A celebração de Todos os Santos é uma solenidade, o grau supremo de festividade na Igreja Católica, no rito romano, acima das festas, que vêm a seguir, e das memórias, que vêm por último. E, para a Igreja em Portugal, como em muitos países de tradição cristã, é dia Santo de preceito. Quer dizer, os cristãos são santificados pela participação na Eucaristia e dão glória a Deus pela participação na Eucaristia. É um dia como dizemos de “ir à missa”, mas em que devemos assumir que “todos somos chamados à santidade”.

O padre João Peixoto, liturgista a diocese do Porto, afirma que “a Igreja há já muitos séculos que promove celebrações conjuntas de Todos os Santos”, mas frisa que as “pioneiras foram as Igrejas do Oriente já no século IV”, quando, no contexto do tempo pascal, ou na semana subsequente, “os cristãos do Oriente celebravam conjuntamente todos os santos, com destaque para os mártires que são o modelo mais sublime da nossa participação da Páscoa do Senhor”. E explicitou: “No Ocidente foi nos inícios do século VII com a dedicação do Panteão – lugar de culto pagão a todas as divindades do Olimpo – como um lugar de culto cristão, como uma Igreja que a celebração ganhou dimensão.”

O liturgista disse, a 1 de novembro, à Rádio Renascença que o “Panteão foi dedicado à Santíssima Virgem e a todos os mártires, em 13 de maio de 610” e que, “a partir daí, essa data começou a ser comemorada anualmente”. Portanto, “o dia 13 de maio era o Dia de Todos os Santos Mártires e dia da Santíssima Virgem, porque era o aniversário da dedicação dessa Igreja”. Depois, as Igrejas locais começaram a fazer, em datas diferentes, celebrações com o mesmo conteúdo, alargando a todos os santos e inclusive aos santos não canonizados e aos não beatificados.

A data de 1 de novembro foi adotada, primeiro, na Inglaterra no século VIII e passou, depois, ao império de Carlos Magno, talvez por influência do “ministro Alcuíno” (Alcuíno de Iorque foi um monge, poeta, matemático e professor inglês), que era de origem britânica. E é então que a data se tornou obrigatória no reino dos Francos e, depois, se alargou a toda a Igreja, por vontade do Papa Gregório III, celebrando os santos canonizados e os não canonizados. E é a festa da felicidade, das bem-aventuranças, em conformidade com o Evangelho do dia (MT 5,1-12a).

Para o Catecismo da Igreja Católica, “todos os fiéis cristãos, de qualquer estado ou ordem, são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade. Todos são chamados à santidade.”

Já a Comemoração dos Fiéis Defuntos “é uma celebração de conteúdo diferente e até fica bem na sequência”, segundo o padre João Peixoto, que lamenta o facto de, “infelizmente, na nossa prática” haver “uma sobreposição pelo facto de o dia 2 de novembro não ser feriado, ao contrário do dia 1, o que leva as pessoas a aproveitar para ir aos cemitérios de véspera”.

O liturgista sublinha a ideia de que a Igreja nunca omite “a comemoração dos fiéis que já partiram deste mundo marcados com o sinal da fé e que agora dormem o sono da paz”, como se reza no Cânone Romano ou Oração Eucarística I, porque “não há nenhuma celebração da eucaristia em que não sejam recordados ‘todos os fiéis defuntos, todos os que nos precederam desde o princípio do mundo’”, como diz a Oração Eucarística II – outro lado da santidade nos membros da Igreja.

Diz o antigo professor de Liturgia da Faculdade de Teologia da Universidade Católica (Centro Regional do Porto, a ideia de consagrar um dia à oração pelos defuntos se terá desenvolvido em ambiente monástico, tendo sido o abade de Cluny, Santo Odilão, quem, já em finais do século X, determinou que todos os mosteiros da sua ordem fizessem a comemoração de todos os Fiéis Defuntos no dia a seguir ao da Solenidade de Todos os Santos.

O sacerdote adianta que “o costume se generalizou” e que “Roma o oficializou no século XIV”.

Segundo o ensinamento da Igreja, a intenção catequética da Solenidade de Todos os Santos releva o chamamento de Cristo a cada pessoa para O seguir e ser santa à imagem de Deus, a imagem em que foi criada e para a qual deve continuar a caminhar em amor. Isto não só faz ver que há santos vivos (não só os do passado) e que cada pessoa o pode ser, mas sobretudo faz entender que são inúmeros os santos que não são conhecidos, que do mesmo jeito que os canonizados igualmente veem Deus face a face, têm plena felicidade e intercedem por nós. Nesta celebração, o povo católico é conduzido à contemplação do que dizia São João Henrique Newman: não somos simplesmente pessoas imperfeitas em necessidade de melhorias, mas rebeldes pecadores que devem render-se, aceitando a vida com Deus, e realizar isso é a santidade aos olhos de Deus.

2022.11.01 – Louro de Carvalho

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