domingo, 20 de novembro de 2022

A realeza baseia-se na aliança e está ao serviço dos outros

 

A 20 de novembro, 34.º e último domingo do Tempo Comum, por conseguinte, último domingo do ano litúrgico (neste ano, foram proclamados os textos bíblicos do Ano C), celebrou-se a solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, assim designada a partir da reforma litúrgica de 1969, operada em obediência ao Concílio Vaticano II, sobretudo à Constituição Sacrosanctum Concilium, sobre a Sagrada Liturgia.

Na verdade, no ano 325, o primeiro Concílio Ecuménico de Niceia, cidade da Ásia Menor, definiu a divindade de Cristo contra as heresias de Ario: “Cristo é Deus, Luz da luz, Deus verdadeiro do Deus verdadeiro”. Em 1925, ou seja, 1600 anos depois, Pio XI instituiu a festa de Cristo Rei, porque o reconhecimento da realeza de Cristo é o modo mais eloquente de superar as injustiças, justificando: “Porque as festas têm maior eficácia do que qualquer documento do magistério eclesiástico, por captarem a atenção de todos, não só uma vez, mas o ano inteiro, atingem não só o espírito, mas também os corações.” (Encíclica Quas primas, 11 de dezembro 1925).

A data original da celebração era o último domingo de outubro, o domingo que precedia a festa de Todos os Santos, mas a reforma de 1969 transferiu-a para o último domingo do ano litúrgico. Assim, torna-se claro que Jesus Cristo, o Rei, é a meta da nossa peregrinação terrena. Os textos bíblicos mudam a cada três anos, para podermos conhecer, em pleno, a figura de Jesus.

Esta meta, que agora atingimos, foi-nos indicada no I domingo do Advento. Posto que o Ano Litúrgico representa a nossa vida em miniatura, esta experiência ensina-nos e recorda-nos que estamos a caminho do encontro com Jesus, o Esposo, que virá como Rei e Senhor da vida e da história. Será a sua segunda vinda: da primeira vez, veio como um humilde Menino, reclinado na manjedoura (Lc 2,7); da segunda, virá em glória, no fim dos tempos. Esta vinda celebra-se, liturgicamente, nesta solenidade. Não obstante, há outra vinda intermédia, a que vivemos agora e em que Jesus Se nos apresenta com a graça dos Sacramentos e nas pessoas dos ‘pequeninos’ do Evangelho: “Em verdade vos digo: ‘se não vos tornardes como criancinhas, não entrareis no Reino dos Céus’.” (Mt 18,2) Quer isto dizer que somos instados a ver Jesus na pessoa dos irmãos e das irmãs, a negociar os talentos recebidos, a assumir as nossas responsabilidades todos os dias. Ao longo desta caminhada, a liturgia apresenta-se-nos como escola de vida a educar-nos para o Senhor, presente na vida quotidiana, e a preparar-nos para a sua última vinda.

O ano litúrgico é o símbolo do caminho da nossa vida: com um início e um fim, rumo ao encontro com o Senhor Jesus no Reino dos Céus, quando entrarmos pela porta estreita, a da “irmã morte” (no dizer de São Francisco de Assis). E, no início do ano, foi-nos indicada a meta da caminhada. Foi-nos dado, por dom do Mestre, o questionário do nosso exame final, com os pensamentos que devemos seguir (Jesus, a Verdade) e a esperança que nos animará (Jesus, a Vida – cf Jo 14,6).

O passo evangélico da liturgia (Lc 23,35-43) apresenta-nos o Rei na cruz, entre dois ladrões. Se recordarmos a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, entre cantos e danças (cf Lc 19,28-40), ficamos admirados pelo modo como é apresentado no trono da Cruz. Tal como os sacerdotes e os soldados, um dos ladrões zomba da sua realeza: “Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo e salva-nos!”. Porém, o outro diz: “Jesus, lembra-Te de mim, quando tiveres entrado no teu Reino!”.

O ladrão arrependido sabe, como Jesus, que a realeza não está ao serviço do próprio rei, mas ao dos outros. Não está para criar a sujeição humana, mas a promoção humana. E isto vale para todos os detentores do poder (político, económico, financeiro, social, religioso…). Se Jesus saltasse da cruz e deixasse abandonados os pecadores, que veio salvar, trair-se-ia a si próprio e não cumpriria o desígnio do Pai: a salvação de todos. A força da realeza de Jesus está no que o “bom ladrão” disse: o amor sem confins, misericordioso, reflexo da realeza com que Jesus foi acolhido em Jerusalém: “Eis que vem a ti o teu rei, justo e vitorioso; vem montado num jumento.” (Zc 9,9)

Jesus não pôs “a sua pessoa” antes de tudo e de todos, como os seus acusadores queriam. Com efeito, Jesus não veio para Se servir a Si mesmo, mas para servir; não veio para Se servir do seu poder, mas para se doar, totalmente, aos outros, para os salvar.

Por outro lado, Jesus disse a Pilatos, admirado por Se deixar entregar pelos seus conterrâneos sendo rei, que o seu reino não é deste mundo (cf Jo 18,36). Mas isto não quer dizer que o Reino não está já neste mundo. O bom ladrão pediu que Se lembrasse dele quando viesse com a sua realeza. Porém, Jesus atalhou: “Em verdade te digo: ‘hoje mesmo estarás comigo no Paraíso’.” (Lc 23,43). O reino não é deste mundo, mas já está presente nele. Não fica limitado a este mundo, pois continua no outro, onde se consumará.

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O Evangelho situa-nos “lugar do Crânio” (a forma da rocha que dominava o lugar lembra um crânio). É o final da caminhada terrena de Jesus, a configurar uma vida gasta ao serviço da construção do Reino, cujas bases já estão lançadas. Jesus é apresentado como Rei que preside a esse Reino que veio propor aos homens. A cena mostra Jesus crucificado, dois malfeitores também crucificados, os chefes dos judeus que “zombavam de Jesus”, os soldados que troçavam dos condenados e o povo silencioso, perplexo e expectante. No topo da cruz de Jesus, está escrito: “ho basileùs tôn Ioudaíôn oûtos” (“este é o rei dos judeus”).

O quadro é dominado pelo tema da realeza de Jesus. A inscrição no topo da cruz é irónica: o rei não está sentado num trono convencional, mas pregado numa cruz; não rodeado de súbditos fiéis que O incensam, mas dos chefes dos judeus que O insultam e dos soldados que O escarnecem; não a exercer poder de vida ou de morte sobre milhões de homens, mas indefeso e condenado a morte infamante. Todavia, a inscrição – irónica aos olhos dos homens – descreve a situação de Jesus, na perspetiva de Deus: Ele é o “rei” que, da cruz, preside ao reino de serviço, de amor, de entrega, de dom da vida.

Ao lado de Jesus estão dois “malfeitores”, crucificados como Ele. Enquanto um O insulta (este representa os que recusam o reino), o outro pede: “Jesus, lembra-Te de mim quando vieres com a tua realeza”. A resposta de Jesus a este pedido é: “Eu te digo: hoje mesmo estarás comigo no paraíso”. Jesus é o Rei que apresenta aos homens a salvação e que, da cruz, oferece a vida. O “estar hoje no paraíso” não é cronológico, mas indicativo da salvação definitiva que se faz realidade a partir da cruz. Esta realeza é perdão, renovação do homem, vida plena; e abarca todos os homens – mesmo os condenados – que acolhem a salvação.

Os discípulos perceberam que Jesus é o Messias (cf Mc 8,29; Mt 16,16; Lc 9,20) – título que O ligava às promessas proféticas e a David. Contudo, Jesus não assumiu com clareza o título, para evitar equívocos: na Palestina em ebulição, o título de Messias era ambíguo, por estar ligado a perspetivas nacionalistas e a sonhos de luta política contra o ocupante romano. O messianismo de Jesus não passa pelo trono, mas assume a lógica de Deus, a do serviço, a do amor, a do dom.

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A primeira leitura (2Sm 5,1-3) estabelece a base contratual da realeza. O reino de Saul (do norte e do centro) sofreu rude golpe com a morte do rei e de Jónatas (filho e sucessor de Saul). Então já David, que fora ungido rei pelo enviado de Deus, reinava sobre as tribos do sul. Ishboshet, filho de Saul, foi escolhido para suceder ao pai e reinou dois anos, mas Abner, chefe dos exércitos, ofereceu a David o reino de Saul. Abner foi assassinado por Joab, general de David, e, pouco depois, também Ishboshet foi assassinado. Finalmente, os anciãos do norte – procurando um líder forte que lhes permitisse resistir aos filisteus – pediram a David, que estava em Hebron, capital das tribos do sul, que aceitasse dirigir também as tribos do norte e do centro.

O catequista deuteronomista faz uma leitura teológica desta história. Põem na boca dos anciãos de Israel a frase: “O Senhor disse-te: ‘Tu apascentarás o meu Povo de Israel, tu serás rei de Israel’.” A realeza de David aparece, então, como querida por Deus. E David fez de Israel e de Judá um reino que se sobrepôs aos inimigos tradicionais e ficou na memória do Povo de Deus como um tempo ideal de paz e de abundância.

É a outra perspetiva da realeza: a aliança ou acordo contratual está na sua base. Tal como Deus fez aliança com o Povo – Deus estabelece as leis a cumprir e promete proteção; o Povo promete cumprir a vontade do Senhor – David estabelece as normas e garante a integridade do reino e os povos do norte do centro cumprem. Também a monarquia visigótica era eletiva; e os pensadores modernos e da contemporaneidade sustentam que a base do poder está no contrato social entre os representantes que os povos escolhem para exercer o poder e o povo representado. Mas estes, não raro, traem a confiança neles depositada e servem-se em vez de servirem. Denigrem a política!

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A segunda leitura (Cl 1,12-20) começa com o convite à ação de graças, porque Deus transferiu os Colossenses “para o Reino do seu filho muito amado”; a seguir, Paulo apresenta um hino que celebra a supremacia absoluta de Cristo na criação e na redenção. Ele é a “imagem de Deus invisível”, a “cabeça da Igreja, que é o seu corpo” e o “princípio, o primogénito de entre os mortos”. Nele reside toda a plenitude. Ele reina e o seu reinado é serviço. Ele é exemplo de como é servir: dando a vida, se necessário for. Tanto que temos a aprender!

 2022.11.20 – Louro de Carvalho

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