segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Pela nossa perseverança salvaremos as nossas almas

 

 

É uma boa lição a colher da meditação da Palavra da Liturgia do 33.º domingo do Tempo Comum no Ano C, que induz a reflexão sobre o sentido da história da salvação, sendo a meta final da nossa caminhada o novo céu e a nova terra da felicidade em plenitude. Este quadro, que deve ser o horizonte da contemplação quotidiana da nossa peregrinação no mundo, faz nascer em nós a esperança, donde brota a coragem para enfrentar a adversidade e lutar pelo advento do Reino.

Na primeira leitura (Ml 4,1-2 ou 3,19-20, conforme as versões), um mensageiro de Deus anuncia à comunidade desanimada e apática que Javé não abandonou o Povo. Como libertador vai intervir no mundo, para derrotar o opressor, fazendo que nasça o “sol da justiça”, portador da salvação.

O Evangelho (Lc 21,5-19) leva-nos a refletir sobre o percurso que a Igreja é chamada a percorrer até à última vinda de Jesus. A missão dos discípulos em caminhada na história é o compromisso na transformação do mundo, para que desapareça a velha realidade e nasça o Reino. Essa rota apresentará dificuldades e perseguições, mas os discípulos terão sempre a ajuda e a força de Deus.

A segunda leitura (2Ts 3,7-12) reforça a ideia de que, na espera da vida definitiva, não temos o direito de nos instalarmos na preguiça, alheando-nos das grandes questões do mundo e sonegando o nosso contributo para a construção e para a difusão do Reino Deus, em atitude perseverante.

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Em rigor, “Malaquias” não é nome próprio, mas significa “o meu mensageiro”. É o título de um profeta anónimo, de quem pouco sabemos e que se apresenta como “mensageiro” de Deus. É um profeta do pós-exílio, em que o Templo já tinha sido reconstruído (cf Ml 1,10) e o culto já funcionava, embora mal (cf Ml 1,7-9.12-13). Porém, o entusiasmo pela reconstrução estava apagado e imperava o desânimo por se ver que as antigas promessas de Deus não se cumpriam. O Povo, caído na apatia religiosa e na falta de confiança em Deus, duvidava do amor de Deus e da sua justiça. E este ceticismo repercutia-se no culto e na ética, dando azo à multiplicação das injustiças e das arbitrariedades. Era a primeira metade do século V a.C. (480-450 a.C.).

Este “mensageiro de Deus” reagiu vigorosamente contra a situação em que o Povo estava a cair. Fez sentir a cada um as suas responsabilidades para com Javé e para com o próximo e instou à conversão do Povo e à reforma da vida cultual. Se o Povo se obstinar nas vias da infidelidade à Aliança, voltará à infelicidade e à morte; mas se se voltar para Deus e cumprir os mandamentos, voltará a gozar da vida e da felicidade que Deus oferece aos que seguem os seus caminhos.

O trecho em referência refere-se ao “dia do julgamento”, o dia em que o Senhor intervirá na história para abolir o mal, a injustiça e a opressão, e fazer triunfar o bem, a justiça e a verdade. Ante o fogo do Senhor que purifica e renova, “serão como palha os soberbos e malfeitores” e ficarão sem raiz e sem ramos; mas, para os que se mantêm na rota da Aliança e dos mandamentos, “nascerá o sol da justiça, trazendo nos seus raios a salvação”.

O referido “mensageiro” de Deus não fala do “fim do mundo”, mas do “Dia do Senhor”, uma categoria recorrente na literatura profética para designar o momento da intervenção de Deus na história a oferecer ao Povo a salvação definitiva. O profeta, em linguagem e imagens tipicamente proféticas, exorta os concidadãos a não desanimarem, pois Deus vai intervir no mundo para fazer surgiu um mundo outro. É o apelo à esperança e à fidelidade, contra a situação caótica vigente.

Quem olhar para o mundo que nos cerca e vê destruição, fogo de guerra e praga incendiária, em vez de se transportar para o futuro negro anunciado por Malaquias, deve pensar e sentir que a Palavra de Deus, conquanto proferida e escrita num determinado contexto cultural e histórico, tem perfeita atualidade. Porém, em vez de levarmos à letra as imagens do “fogo” devorador e da “palha” integralmente queimada – imagens bíblicas muito comuns na época, sobretudo entre os autores apocalípticos – teremos de as entender pelo ângulo profético do seu significado, ou seja, pelo ângulo da iminente e libertadora intervenção de Deus no mundo das pessoas e dos povos.

Os cristãos entendem esta profecia de Malaquias à luz da intervenção libertadora de Jesus, o “sol de justiça” que brilha no mundo e nos insere na dinâmica de um mundo novo, o Reino de Deus.

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Em Jerusalém, nos últimos dias antes da Paixão, como os outros sinóticos (cf Mt 24-25; Mc 13), Lucas conclui a pregação de Jesus com o discurso escatológico que mescla referências à queda de Jerusalém e ao “fim dos tempos”. Na versão lucana, Jesus está nos átrios do Templo com os discípulos. E a contemplação daquelas belas pedras leva Jesus a esta catequese.

Este discurso escatológico é uma apresentação teológica com três momentos da história da salvação em pano de fundo: a destruição de Jerusalém, o tempo da missão da Igreja e a vinda do Filho do Homem (que encerra o “tempo da Igreja” e traz a plenitude do “Reino”).

O trecho (Lc 21,5-19) começa com o anúncio da destruição de Jerusalém. Na ótica profética, Jerusalém é o lugar onde deve irromper a salvação de Deus e para onde convergirão todos os povos empenhados em aceder à salvação. Como Jerusalém recusou a salvação que Jesus trouxe, a destruição da cidade e do Templo significa que Jerusalém deixou de ser o lugar exclusivo e definitivo da salvação. A Boa Nova de Jesus vai, portanto, deixar Jerusalém e partir ao encontro de todos os povos. Começa, pois, outra fase da história da salvação: o “tempo da Igreja”, em que a comunidade dos discípulos, caminhando na história, testemunhará a salvação a todos os povos.

O “tempo da Igreja”, que culminará com a última vinda de Jesus, é marcado, após a destruição de Jerusalém, pelo aparecimento de falsos messias e visionários que anunciarão o fim (vulgar em épocas de crise e de catástrofe). Porém, visto que “não será logo o fim”, o Senhor avisa: “não sigais atrás deles.” De facto, a destruição de Jerusalém no ano 70 pelas tropas de Tito pareceu aos cristãos o prenúncio da vinda de Jesus, ilusão que alguns pregadores populares alimentavam. Todavia, Lucas, escrevendo nos anos 80, aposta na eliminação do frenesim escatológico crescente em certos setores cristãos: em vez de viverem obcecados com o fim, os cristãos devem preocupar-se em viver uma vida fortemente comprometida com a transformação do mundo.

A seguir, Lucas diz aos cristãos o que acontecerá nesse “tempo de espera”: irá surgir um mundo novo. Para dizer isto, Lucas recorre a imagens apocalípticas (“há de erguer-se povo contra povo e reino contra reino”; haverá guerras; “haverá grandes terramotos e, em diversos lugares, fome e epidemias; haverá fenómenos espantosos e grandes sinais no céu”), usadas pelos pregadores populares da época para falar da queda do mundo velho, o mundo do pecado, do egoísmo e da exploração, a substituir pelo mundo novo que surgirá.

Frente a estes cenários levanta-se a questão do tempo que medeia entre a queda de Jerusalém e a segunda vinda de Jesus. A isso ninguém responde. Mas sabe-se que o “Reino de Deus” se vai manifestando e tornando novo o mundo. Não obstante, os cristãos não devem encostar-se à espera preguiçosa e comodista, contando que Deus faça tudo: devem empenhar-se na construção desse mundo novo, convictos de que a libertação plena se consumará com a segunda vinda de Jesus.

Por fim, Lucas põe os crentes de sobreaviso para as dificuldades e perseguições que marcarão a caminhada histórica da Igreja. Contudo, não estarão sós, pois Deus estará sempre presente; será com a força de Deus que enfrentarão os adversários, resistirão à tortura, à prisão e à morte e até ultrapassarão a dor de serem atraiçoados pelos próprios familiares e amigos,

O discurso escatológico define, pois, a missão da Igreja na história até à última vinda de Jesus: dar testemunho jubiloso da Boa Nova e construir o Reino, com perseverança, que é nela, segundo a palavra de Cristo, que salvaremos a nossas almas.

Os cenários apocalípticos evocados neste passo evangélico mostram, pela semelhança com o que se passa hoje (falsos messias, cataclismos, guerras, divisão de famílias e de povos, perseguição, epidemias, tortura e morte, previsões do fim do mundo), levam a acatar a atualidade da Palavra de Deus e devem estimular-nos a perscrutar, não os sinais do mal, mas a mão e os sinais de Deus.

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Os Tessalonicenses eram uma comunidade que vivia com entusiasmo a fé e que dá um testemunho vigoroso e comprometido de adesão ao Evangelho, mesmo nas dificuldades e nas perseguições. Porém, a partida precipitada de Paulo (fugiu a cilada armada pelos judeus da cidade) não deixou completa a catequese, ficando algumas questões de fé insuficientemente desenvolvidas e não amadurecidas. Uma delas era a da segunda vinda do Senhor.

Na segunda carta aos Tessalonicenses, vê-se que alguns cristãos, convictos de que estava próxima a vinda do Senhor, negligenciavam os deveres de todos os dias (2Ts 2,1-2). O que fazia sentido – segundo eles – era cruzar os braços e ter os olhos e o coração no céu, esperando, em júbilo, a última vinda, a da glória do Senhor, o que se compreende à luz da antropologia grega, pela qual o homem deve viver voltado para o mundo ideal e espiritual, fugindo do terreno e material. Nesta ótica, é de evitar o trabalho manual, por ser degradante e sem valor para a edificação da pessoa.

O autor da carta (em 2Ts 3,7-12) rejeita, em absoluto, esta conceção e a atitude dos que, alegando a desculpa da iminente vinda do Senhor, vivem na ociosidade e não fazem nada de útil. Percebe-se a linha de inspiração semita, que ensina que a condição corporal do homem não é um castigo. Por isso, o trabalho manual não envelhece, mas dignifica.

Assim, o autor da carta dá como exemplo o próprio Paulo: nunca escolheu a ociosidade, nem viveu à custa de quem quer que fosse (“trabalhamos noite e dia com esforço e fadiga, para não sermos pesados a nenhum de vós”); até durante as suas viagens missionárias, nunca aceitou qualquer pagamento, o que mostra que o seu amor pelos cristãos e pelas comunidades é sincero e nunca teve qualquer interesse material.

O tom desta passagem é exigente e solene, pois está em jogo a harmonia da comunidade. Se a comunidade albergar parasitas, depressa atingirá uma situação insustentável: romper-se-á o equilíbrio, surgirão os conflitos, campearão as acusações e evidenciar-se-ão as divisões, o que fará da fraternidade uma miragem. A vida comunitária postula a repartição equitativa dos recursos da comunidade, a par da responsabilização de todos os membros, para todos porem ao serviço dos irmãos os próprios dons e contribuírem para a comum construção, o equilíbrio e a harmonia na comunidade.

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Em Dia Mundial dos Pobres encontra-se mais uma razão para o trabalho: produzir riqueza para que possa ser distribuída equitativamente, de modo que não haja ninguém necessitado. Isso postula dedicação, afinco, equilíbrio, guerra ao egoísmo, perseverança, colocação da economia – produção, distribuição circulação e consumo – ao serviço do homem, ao serviço da comunidade e a abolição das guerras e dos interesses instalados.

2022.11.13 – Louro de Carvalho

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