segunda-feira, 21 de novembro de 2022

A ambígua relação com o regime do Catar

 

Estalou a polémica sobre as declarações do Presidente da República sobre a ida de algumas figuras gradas do poder político ao Catar (ou Qatar), para assistir ao primeiro jogo da Seleção Portuguesa de Futebol, no âmbito do Campeonato Mundial de Futebol, que ali se realiza pela primeira vez.

A questão não é nova, antes se levantou quando a FIFA (Federação Internacional de Futebol ou Federação Internacional de Futebol), ficando, pelo menos, no ar a suspeita de que a escolha fora obtida a troco de dinheiro, com sacrifício do evento, por se realizar no inverno.

É sabido que este país árabe – conhecido oficialmente como um emirado do Oriente Médio, ocupando a pequena Península do Catar, na costa nordeste da Península Arábica – viola sistematicamente os direitos humanos. Com efeito, trata-se de um emirado absolutista e hereditário liderado pela Casa de Thani desde meados do século XIX, sendo as posições mais importantes  do Estado ocupadas por membros ou grupos próximos da família al-Thani.

O nome Catar deriva de Qatara, provavelmente a antiga cidade de Zubarah, importante porto comercial e cidade da região. O termo “Qatara” aparece, pela primeira vez, num mapa do mundo árabe, de Ptolomeu. Os gentílicos de Catar são “catarense” e “catariano”.

Foi um protetorado britânico até à independência firmada em 1971. Em 1995, o xeque Hamad bins Khalifa Al Thani depôs o pai num golpe de Estado e guindou-se a emir.

Desde 1971, tornou-se um dos estados mais ricos da região, devido às receitas provindas do petróleo e do gás natural (possui a terceira maior reserva mundial de gás). O depósito de gás natural do Campo Norte, então o maior do mundo, foi descoberto por volta de 1976 e o país foi um dos primeiros a ter embarcações de gás natural liquefeito (GNL).

Antes da descoberta do petróleo, a economia baseava-se principalmente na extração de pérolas e no comércio marítimo. Na era do Califado Abássida, os navios que viajavam de Baçorá para a Índia e para a China  faziam escalas nos portos do Catar. Atualmente, segundo a revista Forbes, lidera a lista dos países mais ricos do mundo e está classificado em 41.º lugar (logo após Portugal), na lista das Nações Unidas de países com maior índice de desenvolvimento humano (IDH), e em terceiro, no mundo árabe. A Freedom Hause (FH) considera-o um país “não livre” e a Amnistia Internacional (AI) regista vários atropelos aos direitos humanos.

Desde a primeira Guerra do Golfo, em 1991, é um importante aliado militar dos Estados Unidos da América (EUA) e abriga uma importante base militar.

Da sua população, estimada em 2,8 milhões de habitantes, apenas 313 mil são nativos catarianos (cerca de 11,2%), sendo os demais trabalhadores estrangeiros, especialmente de outras nações árabes, do subcontinente indiano, do Sudoeste Asiático e de outros países.

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O embaixador de Portugal no Catar foi, por várias vezes, criticado por branquear ou desvalorizar a forma desumana como são tratadas as mulheres e as crianças, a perseguição sistemática aos e às homossexuais e a transexuais e as condições desumanas impostas aos trabalhadores, de que resulta o cansaço, a doença e a morte. Os números conhecidos de mortos em acidentes de trabalho (?), sobretudo na construção dos estádios para este campeonato mundial e na abertura de estradas, apontam para mais de 6500 mortos.  

São conhecidas as condições impostas a quem anda nas ruas e a quem entra nos estádios, exigências das autoridades do emirado, bem secundadas pela FIFA.

Apesar de várias situações de protesto e de não disponibilização de ecrãs gigantes em praças de alguns países, as várias seleções participam no evento.

Há uns anos a esta parte, as autoridades portuguesas habituaram-se a acompanhar a seleção nacional nestes certames internacionais. Quem não se lembra do apelo dramático de Ferro Rodrigues, então presidente do Parlamento, a que enchêssemos o estádio de Sevilha, em tempo de pandemia? É certo que recuou e nem ele nem o Presidente da República marcaram presença.

Agora, o problema não é a pandemia. O problema é a guerra e o petróleo. Não tenhamos dúvidas. Porém, enquanto a pandemia aconselhava a não encher os estádios, as circunstâncias atuais são apelativas ao seu enchimento.   

Por isso, apesar dos protestos das opiniões contrárias de alguns influenciadores, Marcelo Rebelo de Sousa, Augusto Santos Silva e António Luís Santos Costa – as três figuras cimeiras do Estado vão ao Catar “apoiar” a seleção nacional.

O presidente da Assembleia da República e o primeiro-ministro limitam-se ao foco na equipa, referindo que a sua atitude não significa aprovação do regime político em causa (o primeiro-ministro ainda declarou que a intenção de Marcelo não era menosprezar os direitos humanos: o Presidente agradece). Porém, o Presidente da República reconhece que há desrespeito dos direitos humanos, mas, num registo infeliz, ainda que informal, manda esquecer isso e focar-se na equipa. Depois, emendou a mão, referindo que sempre defendeu os direitos humanos e que, desta vez, também o fará ao participar num fórum sobre educação e saúde, promovido por uma ONG (organização não governamental).

Não vale dar o exemplo da China. Aí falou, apesar de o anfitrião ter feito orelhas moucas, mas era uma visita de Estado, em que dispunha, como tal, de uma certa liberalidade. Desta feita, não se trata de uma visita de Estado, mas de um apoio caseiro e de um fórum de âmbito privado.  

Quero dizer que, se o chefe de Estado não fosse tentado a falar ao virar da esquina, sem a suficiente reflexão, talvez não caísse em dizeres infelizes. Não é esta a primeira vez que isso acontece. E, se em relação ao futebol, se contivesse pela receção protocolar à seleção nacional, antes da partida e/ou antes da chegada, ou se assistisse a um evento destes realizado em Portugal, não estaríamos a discutir questões presidenciais de futebol.

Poderiam estas altas figuras do Estado invocar a política de não ingerência interna para a sã convivência internacional e para as relações diplomáticas, mas preferiram suspender a luta pelos direitos humanos. Aliás, o Ocidente, em nome dos valores, espia, fornece armas, faz a guerra, decreta sanções, mata sem julgamento. Há armas e mortes boas!    

Contudo, há um pormenor a registar. O Parlamento, pelos votos do Partido Socialista (PS), do Partido Social Democrata (PSD) e do Partido Comunista Português (PCP), dá assentimento a que o Presidente vá ao Catar.

A guerra na Ucrânia, iniciada pela Rússia, pôs em evidência a crónica dependência da Rússia por parte dos países da União Europeia (UE) quanto ao petróleo, ao gás natural e também a minérios e a cereais (neste aspeto, também da Ucrânia). As sanções impostas à Rússia pelo Ocidente (EUA, UE e Reino Unido) obrigam à demanda de outros fornecedores de petróleo e de GNL. Nada melhor do que não afrontar a autoridade do líder do potencial grande fornecedor de petróleo e de gás natural liquefeito.

Por ironia do destino, os direitos humanos cessam ou eclipsam-se ante o dinheiro e ante os bens de que a civilização necessita, pelo menos enquanto a descarbonização e a redução drástica dos combustíveis fósseis não se concretizam – concretização travada pela generalidade dos países, com exceção de Portugal, “nação valente e imortal”.

2022.11.21 – Louro de Carvalho    

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