quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Assentimento parlamentar a viagens presidenciais ao estrangeiro

 

A norma constitucional que obriga ao assentimento da Assembleia da República (AR) para os presidentes da República viajarem para o estrangeiro tem merecido interpretações diferentes dos partidos, dos analistas e dos próprios chefes de Estado.
Nos termos do n.º 1 do artigo 129.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), “o Presidente da República não pode ausentar-se do território nacional sem o assentimento da Assembleia da República ou da sua Comissão Permanente, se aquela não estiver em funcionamento”. O n.º 2 estabelece que “o assentimento é dispensado nos casos de passagem em trânsito ou de viagem sem caráter oficial de duração não superior a cinco dias, devendo, porém, o Presidente da República dar prévio conhecimento delas à Assembleia da República”. E o n.º 3 estabelece que “a inobservância do disposto no n.º 1 envolve, de pleno direito, a perda do cargo”.
Porém, não cabe à AR decretar a perda do cargo, mas ao Tribunal Constitucional a pedido da AR.
Se o ex-Presidente Jorge Sampaio, em fevereiro de 1999, não arriscou viajar para a Jordânia, por não ter autorização dos deputados, o atual Presidente da República (PR) não deixou de se deslocar a Luanda em agosto passado, antes ainda do assentimento da AR.
A deslocação do PR a Luanda para participar nas cerimónias fúnebres do ex-Presidente angolano José Eduardo dos Santos, em 28 de agosto, só foi autorizada pela AR a 7 de setembro, uma semana depois. Marcelo Rebelo de Sousa tinha enviado o pedido a 23 de agosto, mas, como os deputados estavam em férias parlamentares, o assentimento foi dado pela Comissão Permanente em sessão de 7 de setembro, quando o chefe de Estado já tinha regressado. Na sessão, o presidente da AR, informou os deputados que, face à excecionalidade da situação e à ausência de trabalhos, reuniu o consenso dos líderes parlamentares dos partidos e dos deputados únicos para a autorização.
Esta decisão do PR contrasta com a referida de Jorge Sampaio, que não quis incumprir com a norma constitucional. O então presidente da AR, António Almeida Santos, disse-lhe que fizesse a deslocação, “garantindo-lhe que não levantaria qualquer tipo de problema”, mas ele recusou por considerar que seria um “precedente grave”, embora, na presidência de Mário Soares, fosse recorrente a aprovação das deslocações após a sua ocorrência.
E foi António Costa, atual primeiro-ministro e, na altura, ministro dos Assuntos Parlamentares, a ser mandatado para representar Portugal nas cerimónias fúnebres. Em Portugal, soube-se da morte do rei da Jordânia ao meio-dia de domingo. Para poder participar nas cerimónias fúnebres, Jorge Sampaio teria de partir no mesmo dia. Mas a sua ausência significou, para alguns setores, que a representação do Estado não fora insuficientemente digna.
Depois do seu dilema constitucional, que resultou na ausência do PR de um funeral onde se encontraram muitos dos principais líderes mundiais, Jorge Sampaio escreveu a Almeida Santos uma carta em que observava que a norma constitucional não se aplicava à realidade e propunha que esta passasse a prever situações de emergência. Porém, a norma mantém-se na íntegra e, estando aberto um processo de revisão constitucional, o Partido Socialista (PS) não faz qualquer referência a esta questão no projeto de revisão que entregou na AR.
Eurico Brilhante Dias, líder parlamentar do PS, recorreu à História para explicar o contexto da norma: “Esta norma que encontramos na Constituição recua a 1822, quando se determinava que o rei não podia sair do território nacional.” E é de recordar que, em 1999, o constitucionalista Jorge Miranda recordava, ao Público: “As cortes, que ficaram em Lisboa [durante e após as invasões napoleónicas], desejavam a presença do rei na capital do país, o que acabou por acontecer em 1821. Daí ter aparecido nas constituições que os reis e, depois, os presidentes da República, não poderiam ausentar-se sem autorização dos parlamentos.”
O alcance e enquadramento da norma surgiram no debate quando a AR tratou o pedido do PR de deslocação ao Catar, para assistir ao desafio Portugal-Gana do Campeonato do Mundo de Futebol.
Eurico Brilhante Dias, do PS, defendeu que a AR não se constitui para caucionar as opções políticas de viagens e de relações internacionais do PR, (trata-se de “caução constitucional”) justificando a norma com o “funcionamento das instituições”. Tiago Moreira de Sá, do Partido Social Democrata (PSD), alertou que se entraria em “campos perigosos” se o Parlamento pudesse “definir a agenda política do Presidente da República”. E Diogo Pacheco de Amorim, do Chega, admitiu que “não faz sentido” que a AR se pronuncie sobre as viagens do PR, apesar de considerar que, uma vez que a Constituição assim o determina, “não cabe aos partidos assinarem de cruz”.
Porém, a líder parlamentar do Partido Comunista Português (PCP), Paula Santos, exprimiu a condenação do seu partido pela exploração dos trabalhadores no Catar, mas considerou que esta posição “não tem de passar por opções de boicote da participação ou acompanhamento institucional” à seleção no Mundial do Catar. Rodrigo Saraiva, da Iniciativa Liberal (IL), observou que a AR “tem de se pronunciar politicamente” sobre as deslocações presidenciais. A mesma avaliação fez o deputado do Bloco de Esquerda (BE), José Soeiro, para quem, se a AR é chamada a pronunciar-se sobre as deslocações, deve “fazer uma avaliação política”.
Inês Sousa Real, do Partido Pessoas, Animais e Natureza (PAN), sustentou que o Catar não respeita os direitos humanos, das mulheres ou da comunidade LGBTI, sendo essa a razão pela qual o seu partido jamais poderia acompanhar com voto favorável a deslocação do PR àquele emirado. E Rui Tavares, do Livre, criticou o facto de nenhum partido ter condenado a “corrupção na FIFA”, salientando que Portugal, ao decidir acompanhar institucionalmente o Mundial do Catar, é “cúmplice de uma decisão” corrupta (intervenção que mereceu os aplausos das deputadas socialistas Alexandra Leitão e Isabel Moreira, que votaram contra a deslocação do PR).
***
Qualquer “ausência do território nacional” do PR tem de ser aprovada pela AR, exceto se for “sem caráter oficial” e “de duração não superior a cinco dias”. É assim há 200 anos, graças a uma norma presente na Constituição de 1822 que lembra a fuga da família real para o Brasil. Porém, mesmo com posição contra a “tradição constitucional” de aprovação dos pedidos de deslocação oficial do PR ao estrangeiro – votos “contra” de Livre, BE, IL, PAN e de quatro deputados do PS –, o PR foi ao Catar ao Mundial de futebol, assim como Santos Silva e António Costa.
Em 1806, Napoleão Bonaparte decretou um bloqueio continental que obrigava os países europeus a fecharem os portos aos navios de Inglaterra. Para respeitar a história de cooperação entre Portugueses e Britânicos, o príncipe regente, futuro D. João VI, não seguiu a ordem napoleónica. Por isso, em 1807, Portugal sofreu a invasão francesa – com novas investidas em 1809 e em 1810. Mal foi anunciada a entrada de militares franceses em solo português, D. João VI ordenou que toda a família real fosse para o Brasil. Apesar do ato patriótico que visava “impedir a sua captura”,  como explica o constitucionalista Jorge Miranda, o rei permaneceu “14 anos no Brasil”, até 1821. Esta ausência causou “insatisfação” nos súbditos por a capital “ter sido transferida para o Brasil” e as Cortes Constituintes exerceram pressão para que este regressasse. “Portugal sentia-se uma colónia do Brasil”, reforça o constitucionalista Paulo Otero.
Para evitar, no futuro, que o rei partisse e não quisesse regressar, foi introduzida, na Constituição de 1822, a norma que obriga a que as ausências de território nacional do Chefe de Estado sejam, prévia e obrigatoriamente, aprovadas pelo Parlamento, o que prevalece ainda hoje.
Paulo Otero destaca a “imperatividade” da norma, podendo o seu desrespeito pelo PR levar à “perda do cargo”. Porém, em casos onde não é possível à AR votar o pedido de deslocação do PR a tempo – as reuniões plenárias são convocadas com a antecedência mínima de 24 horas, segundo o regimento da AR –, é possível recorrer a “assentimento a posteriori” com “fim ratificativo”.
Embora o artigo 129.º da CRP permita à AR vetar os pedidos de deslocação oficial do PR ao estrangeiro, criou-se a “tradição de a AR aprovar sempre”, vinca Jorge Miranda. Esta tendência voltou-se a verificar na votação da ida de Marcelo ao Catar – apesar dos votos contra de quatro partidos e de deputados do próprio PS –, onde os líderes parlamentares do PS e PSD, que votaram favoravelmente, escudaram as suas posições na tradição constitucional de a AR aceder aos pedidos de ausência de território nacional do Chefe de Estado.
Apesar da aparente prescindibilidade da lei nos dias de hoje, Paulo Otero admite que esta “ainda pode fazer sentido”, pois, quando a solicitação de ausência de território nacional por parte do PR não é aprovada por “unanimidade”, isso pode significar uma “censura” ou “desagrado” político ao “destino ou propósito” da viagem. Neste caso, o que está em causa não é o propósito, mas o destino, por se tratar do Catar, um país que não respeita os direitos humanos.
E Jorge Miranda defende que “faz sentido o que está na Constituição” por se tratar de “relação de interdependência dos órgãos de soberania”, que procura a “preservação da independência nacional”. O antigo deputado da Assembleia Constituinte alega que a “tradição” de aprovação das viagens ao estrangeiro do Chefe de Estado deve “ser mantida” em “condições normais”, não sendo esse o caso do Catar: “Nem o PR, nem o primeiro-ministro nem o presidente da AR deviam ir ao Catar.” Para Jorge Miranda, “é uma vergonha” a ida dos representantes políticos, pois “acabam por dar apoio ao regime autocrático”, onde há “enorme discriminação”.
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Penso que a manutenção da norma faz sentido, até pela índole saltitante do atual PR. Mas ela tem pleno cabimento no sistema semipresidencialista, em que a legitimidade do PR e a da AR radicam na eleição direta pelos cidadãos eleitores e com a perspetiva da interdependência dos poderes, complementar da separação. Não parece que esteja em causa o facto de o PR não ser substituído nas suas ausências, pois a generalização do digital possibilita a leitura e a assinatura dos diplomas onde quer que o PR esteja. Por conseguinte, a autorização parlamentar não é mera formalidade, nem mero ato instrumental, mas verdadeiro exercício de poder e de escrutínio, significando um Nihil obstat político à deslocação presidencial (não há prejuízo para a dignidade e para a imagem do Estado), que não, necessariamente, a concordância total.       

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2022.11.24 – Louro de Carvalho

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