segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Relativizar os bens do mundo para participar no banquete do Senhor

 

A Liturgia da Palavra do 1.º domingo do Advento no Ano A, em que se proclamam, em quase todos os domingos, trechos do Evangelho de Mateus, contém um veemente apelo à vigilância da parte dos cristãos, que não podem instalar-se no comodismo e na indiferença, mas devem caminhar, sempre atentos e vigilantes, preparados para o acolhimento ao Senhor que vem e para a condigna resposta aos desafios que nos lança.

Os capítulos 24 e 25 do Evangelho de Mateus apresentam o último grande discurso de Jesus antes da paixão e morte. Para o compor, Mateus reelaborou o “discurso escatológico” presente em Marcos, ampliando-o e mudando-lhe o tema central, pois, enquanto, para Marcos, a questão principal é a dos sinais que precederão a destruição de Jerusalém e do Templo, para Mateus, a é a da vinda do Filho do homem e das atitudes com que os discípulos a devem preparar.

Tal mudança de perspetiva explica-se pela situação em que vivia a comunidade de Mateus. Na década de 80, ou seja, dez anos sobre a destruição de Jerusalém, não tinha ocorrido a segunda vinda de Jesus, o que desanimava os crentes. E o evangelista-apóstolo, olhando o desleixo, a rotina e o esfriamento que tendem a aparecer na comunidade, sente a necessidade de renovar a esperança e levar os crentes a comprometerem-se na história pela construção do Reino dos Céus. Por conseguinte, intui nas palavras de Jesus um profundo ensinamento e compõe uma exortação aos cristãos, fundamentada na profunda convicção de que a vinda do Filho do homem é certa, embora não seja para breve. E, como não se sabe o dia nem a hora, o foco deve pôr-se na preparação deste grande acontecimento, vivendo de acordo com o ensinamento de Jesus.

A linguagem, que é enigmática, insere-se no género apocalíptico usado por alguns judeus e cristãos da época de Jesus, para revelar algo escondido (verbo “apocaliptô”). Não raro, esta revelação é dirigida a comunidades que vivem em sofrimento, desespero e perseguição, com o objetivo de lhes avivar a esperança, mostrando que a vitória final será de Deus e dos seus fiéis.

A vinda do Senhor é certa e os crentes devem estar preparados e viver vigilantes e ativos. Para vincar esta ideia, o trecho evangélico em apreço (Mt 24,37-44) oferece-nos três cenários:

Antes de mais, o cenário da época de Noé: os homens viviam na alegre inconsciência, apenas preocupados com o gozo da vida. E, ao chegar o dilúvio, porque impreparados, ficaram surpresos. Ora, se o homem tiver como única prioridade o gozo da vida, arrisca-se a passar ao lado do que é importante e a não cumprir o seu papel no mundo. A seguir, o Evangelho põe-nos ante duas situações do quotidiano: o trabalho agrícola e a moagem do trigo. Obviamente têm de ser assumidos os compromissos e os trabalhos necessários à subsistência, mas de modo que não nos absorvam de tal sorte que negligenciemos o essencial: a preparação da vinda do Senhor, pela vigilância, pela oração e pelo testemunho. Por fim, somos confrontados com o exemplo do dono da casa que adormece e deixa que o ladrão lhe saqueie a casa. Ora, os crentes não podem deixar-se adormecer, visto que podem perder a oportunidade de encontrarem o Senhor que vem.

Assim, a questão fundamental é o crente estar sempre vigilante, atento e preparado para acolher o Senhor que vem. Não perde oportunidades, porque não se distrai com os bens do mundo, muito menos vive obcecado com eles, Antes, cumpre, no quotidiano, o papel que Deus lhe confiou, com empenho e com apurado sentido de responsabilidade.

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Na segunda leitura (Rm 13, 11-14), o Apóstolo quer que os crentes despertem da letargia em que estão presos no mundo de trevas, se revistam da luz e caminhem, com alegria e esperança, ao encontro da salvação. Paulo redige a Carta aos Romanos em Corinto, no termo da terceira viagem missionária (ano 57 ou 58). Terminada a sua missão no Oriente, quer levar o Evangelho ao Ocidente. Todavia, precisa de passar a Jerusalém com o produto da coleta que organizou na Macedónia e na Acaia em prol dos “santos de Jerusalém que estão na pobreza”.

O pretexto da carta é preparar a sua ida a Espanha. E Paulo aproveita para contactar a comunidade de Roma e apresentar aos romanos e aos crentes, em geral, os problemas que o preocupam. O perigo da divisão ameaça a Igreja: de um lado, as comunidades de origem judeo-cristã e, do outro, as pagano-cristãs. Umas e outras têm dificuldades de entendimento e há perigo real de cisão. Paulo escreve a vincar a unidade da fé e a chamar a atenção para a igualdade fundamental de todos – judeo-cristãos e pagano-cristãos – no processo da salvação.

A primeira parte (cf Rm 1,18-11,36), de índole dogmática, mostra que o Evangelho é a força que congrega e salva todo o crente; a segunda parte (cf Rm 12,1-15,13), de caráter prático, exorta judeo-cristãos e pagano-cristãos a viverem no amor.

O texto em referência nesta liturgia pertence à segunda parte. Depois de exortar ao amor mútuo os cristãos da comunidade de Roma, Paulo pede que estejam vigilantes, para acolherem o Senhor.

Quanto à hora que estão a viver, exorta a que se levantem “do sono, porque a salvação está agora mais perto”. Paulo pensava na vinda mais ou menos iminente de Cristo, para consumar a história da salvação. Porém, a ausência de especulações apocalípticas mostra que não lhe interessa quando e como será essa vinda, mas o seu significado e as consequências. Assim, importa que os cristãos, estando a viver os “últimos tempos” (iniciados quando Jesus deixou o mundo e constituiu os discípulos em testemunhas da salvação diante dos homens) antes da vinda de Jesus, têm de assumir as consequências desse estádio de vida.

Antes, os cristãos viviam nas trevas e tinham a vida marcada pelo egoísmo (excesso de comida e de bebida, devassidão, libertinagem, discórdia e ciúmes; mas, pelo Batismo, nasceram para a nova realidade, para a qual devem acordar em definitivo, enquanto esperam o Senhor que vem: quando o Senhor chegar, deve encontrá-los despidos do velho mundo das trevas, atentos, preparados e revestidos da vida nova que Jesus lhes ofereceu, vivendo na fé, no amor, no serviço.

O convite aos crentes é para que vivam este “tempo” como o tempo último e definitivo, que tem de ser de caminhada ao encontro de Jesus Cristo e ao encontro da salvação. E, à luz deste convite, o Advento que celebramos anualmente é o tempo de reaprendizagem deste sentido da vigilância, uma aprendizagem a marcar toda a vida cristã e eclesial.

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primeira leitura (Is 2,1-5), a interpretar à luz do Novo Testamento, convida os homens – de todas as raças e nações – a dirigirem-se ao monte onde mora o Senhor. É do encontro com o Senhor e com a sua Palavra que resultará um mundo de concórdia, de harmonia, de paz infinda.

O texto de Is 2,2-4 encontra-se – com variantes e uma adição – em Mi 4,1-3, o que presume a hipótese de fonte comum em que os redatores dos dois livros se terão inspirado, embora alguns defendam que o texto original é de Isaías e que Miqueias o reproduziu com variantes.

Tratar-se-á de um oráculo inspirado nas movimentações de peregrinos que, por ocasião das festas, subiam a Jerusalém. O profeta, contemplando, desde o monte Sião, a chegada das caravanas que avançavam em peregrinação para celebrar, por exemplo, a festa dos Tabernáculos, via que as caravanas provinham de todas as partes do território habitado pelo Povo de Deus e que elas convergiam para a cidade santa e subiam pela colina rumo ao Templo onde habita Deus. E, à medida que se aproximavam, o profeta ouvia os “cânticos de ascensão” com que os peregrinos saudavam o Senhor e pediam a paz para Jerusalém e para toda a nação. Depois, na fantasia poética do profeta, a cena transformou-se: num futuro sem data, uma multidão de povos de todas as raças e nações, atraídas pelo Senhor, rumam ao encontro da salvação de Deus.

Estamos perante um dos oráculos mais inspirados, profundos e belos do Antigo Testamento. É o poema da paz universal e da convergência e da reunião de todos os povos à volta de Deus.

Na visão do profeta, o monte do Senhor (o Templo) transforma-se no centro do mundo e sobressai entre todos os montes, não por ser o mais alto, mas por ser a morada do Senhor. De todas as partes do mundo convergem caravanas de povos e de nações que avançam, confluem e sobem montanha acima, ao encontro do Senhor. Vêm atraídos pela força da Palavra de Deus, querendo conhecer o seu ensinamento (Torah) e ser instruídos nos caminhos do Senhor. A Palavra libertadora de Deus atrai e agarra todos os povos que percorrem os caminhos do mundo, lança-os num movimento único e universal até que se reúnam todos à volta de Deus.

À medida que se juntam à volta de Deus, escutam a Palavra e aprendem os seus caminhos, desvanecem-se as divisões, as hostilidades e os conflitos. Primeiro, eles aceitam a arbitragem justa de Deus; depois, compreendem a não necessidade das armas (ao invés, as máquinas de guerra transformam-se em instrumentos pacíficos de trabalho e de vida); e, por fim, todos se regalam, no banquete universal, das mais saborosas e suculentas comidas, das mais saciantes bebidas e das melhores iguarias. Assim, se verificará que, do encontro com Deus e com a Palavra, provêm a harmonia, o progresso, o entendimento, a vida em abundância, a paz universal.

É o reverso da história da torre de Babel (cf Gn 11,1-9). Lá, os homens escolheram o confronto com Deus e a autossuficiência, do que resultou a divisão, o conflito, a confusão e a dispersão; aqui, os homens escolhem Deus e seguem os caminhos indicados por Ele, do que resultará a reunião de todos os povos, a harmonia, o progresso, a paz universal. É por isto e para isto que aguardamos em jubilosa esperança a última vinda de Cristo Salvador – o fim que almejamos.

2022.11.27 – Louro de Carvalho

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