terça-feira, 1 de novembro de 2022

O ‘General Inverno’ em nova versão

O Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, na sigla inglesa) defendeu que a Rússia deverá manter operações convencionais na Ucrânia – provavelmente sem recorrer a armas nucleares e sem promover um conflito direto com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO/OTAN) – e apostar no colapso do apoio ocidental durante o inverno.

Na sua mais recente avaliação diária sobre a guerra na Ucrânia, publicada no dia 30 de outubro, à noite, aquele centro de estudos norte-americano considerou pouco provável que o presidente russo, Vladimir Putin, recorra a armas nucleares e promova um conflito direto com a NATO, embora insista na ameaça “como parte do seu esforço para quebrar a vontade ocidental de continuar a apoiar a Ucrânia”. O cenário de utilização da força tática nuclear só se colocaria, com o “súbito colapso” das forças russas que permitisse às forças ucranianas “avanços descontrolados em todo o teatro de operações”. E o ISW justificou os cenários que equaciona com a avaliação de que Putin continuará a enviar tropas mal preparadas para a Ucrânia após a mobilização de 300.000  reservistas, “em vez de parar as operações para reconstituir forças militares eficazes”. Por outro lado, a teoria da vitória de Putin depende da utilização do inverno rigoroso para “quebrar a vontade da Europa”. É a saga do ‘General Inverno’ em versão atual.

A invasão da Ucrânia pela Rússia, a 24 de fevereiro, lançou a Europa na mais grave crise de segurança desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Além de um número de baixas militares e civis por determinar e de milhões de refugiados, provocou uma crise energética na Europa, não só pela destruição de infraestruturas vitais, como por consequência das sanções contra Moscovo. Por isso, vários analistas têm antecipado que a Rússia aposta que a crise energética torne difícil a vida dos europeus durante o inverno, levando a pressões para que os governos diminuam o apoio a Kiev e aliviem as sanções contra Moscovo. Por outro lado, a guerra tem como consequência a subida de preços de bens essenciais e a perturbação dos mercados alimentares devido à suspensão das exportações ucranianas e russas de produtos agrícolas e de fertilizantes.

Na sua avaliação diária sobre a guerra, de 31 de outubro, o Ministério da Defesa do Reino Unido aludiu ao envio de milhares de reservistas russos para a Ucrânia desde meados desse mês, “em muitos casos mal equipados” e até mal treinados. E disse, com base nos serviços de inteligência militar, que imagens de satélite sugerem que os reservistas levam espingardas AKM, “arma introduzida pela primeira vez em 1959”, estando muitas, provavelmente, em condições de sofrível utilização, após deficiente armazenamento.

A AKM usa munições de 7,62 milímetros (mm), “enquanto as unidades de combate regulares da Rússia estão, na sua maioria, equipadas com espingardas AK-74M ou AK-12 de 5,45 mm. Assim, as forças armadas russas terão de enviar dois tipos de munições de armas ligeiras para as posições da linha da frente, em vez de um, o que pode complicar ainda mais os sistemas logísticos já sob tensão da Rússia.

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A 31 de outubro, Iryna Vereshchuk, vice-primeira-ministra da Ucrânia, aconselhou os cidadãos que fugiram do país, aquando da invasão da Rússia, a não regressarem a casa neste inverno, pois há apagões causados por ataques à rede elétrica.

O racionamento da eletricidade tornou-se realidade sombria, à medida que a Rússia destrói a capacidade económica da Ucrânia e força os seus líderes a sentarem-se à mesa das negociações, hipótese que a Ucrânia vem afastando, embora pareça estar a seguir as indicações do Presidente da Turquia com vista a conversações entre Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky.

A Rússia atingiu infraestruturas críticas da Ucrânia com uma série de ataques com mísseis e com drones nas últimas semanas (30% das centrais elétricas foram destruídas, segundo Zelensky).

O ministro da Energia avisou que a Ucrânia pode precisar de importar eletricidade para sobreviver ao inverno, quando, até há pouco tempo, exportava eletricidade para a União Europeia (UE).

O fraco desempenho do exército russo, particularmente nos últimos meses, fez com que Putin e os seus generais mudassem de tática. À medida que as forças ucranianas avançam para recuperar Kherson, cidade estrategicamente importante, a campanha militar russa passou a privar civis de eletricidade e de aquecimento. E, enquanto a Ucrânia se mune de velas e lenha em preparação para cortes de energia durante as temperaturas de inverno que regularmente caem abaixo de 20 graus negativos, os líderes ocidentais têm de ponderar sobre o que podem fazer para impedir Putin de atingir civis ucranianos e criar uma catástrofe humanitária.

Os países europeus receiam que a devastação das infraestruturas energéticas da Ucrânia afete em muito a economia e aumente drasticamente o número de refugiados rumo ao ocidente. Estima-se que oito milhões de ucranianos tenham fugido para países da UE por causa da guerra.

Cada vez mais Putin terá de combater a guerra com novos meios assimétricos, porque o exército russo corre o risco de perder no campo de batalha e de se tornar mais desmoralizado. A retirada das forças destacadas no nordeste da Ucrânia foi um indicador da fragilidade russa. Ao invés, o exército ucraniano mostra uma resistência maior à que o Kremlin esperava. Os países ocidentais forneceram equipamento e formação suficientes para a Ucrânia criar uma forte contraofensiva e recuperar todo o território capturado desde o início da invasão.

A recente mobilização da Rússia de cerca de 300 mil soldados, que aparenta ser desordenada, pode tornar-se em desvantagem. Para a população russa, essa mobilização significa que o conflito não é uma abstração vista na televisão sob a forma de uma “operação militar especial”, mas uma guerra em que se espera que os russos morram por razões que não são convincentes.

O facto de Moscovo atacar centrais elétricas é clara violação do direito internacional. O objetivo é provocar sofrimento à população civil e persuadir os ucranianos de que o preço de continuarem a combater é demasiado elevado. Porém, apesar do transtorno inicial, que levou à escassez de gasóleo e gasolina em Kiev e noutras cidades, a Ucrânia encontrou fornecimentos alternativos de vários países da UE que até agora se mantêm firmes. E a Alemanha – a maior economia europeia que importou 55% do seu gás da Rússia antes da guerra – tem agora gás suficiente armazenado de outras fontes para suportar o inverno sem grandes perturbações. Todavia, para enfrentar a mais recente escalada de Putin, os governos europeus têm de estar prontos para aceitar mais refugiados a curto prazo. E os países da NATO devem fornecer mais armamento para reforçar as defesas aéreas da Ucrânia e fornecer os recursos necessários para ajudar os engenheiros ucranianos a reparar os danos causados às centrais elétricas.

Moscovo intimida o Ocidente com a possibilidade de poder lançar uma arma nuclear na Ucrânia, mas escolheu uma estratégia convencional para tentar inverter a sua sorte no campo de batalha.

Até agora, a Ucrânia lidou bem com os efeitos económicos da guerra e, apesar da desvalorização de 30%, a moeda não entrou em colapso. No entanto, o défice orçamental dispara e deverá atingir os 40 mil milhões de dólares até ao fim do ano – 30 a 40% do seu produto interno bruto (PIB).

O verdadeiro teste do compromisso com a Ucrânia está por vir. Para a Ucrânia sair vencedora, os governos ocidentais terão de fornecer os recursos militares e financeiros adequados.

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O cruel e implacável inverno russo – conhecido por ‘General Inverno’, mas detendo também outras designações, como ‘General Gelo’ e ‘General Neve’ – foi uma poderosa arma com a qual a Rússia contou contra os inimigos, geralmente acostumados aos invernos europeus mais amenos, embora tenha havido casos em que se voltou caprichosamente contra o seu aliado.

Foi em 1812 que o nome ‘General Inverno’ foi utilizado pela primeira vez num texto britânico sobre a catastrófica campanha russa de Napoleão. Aí, o piadista britânico escreveu: “General Inverno barbeando o pequeno Boney.” E o nome pegou.

Os generais de Napoleão escreveram nas suas memórias que o inverno russo foi a principal razão da derrota do Grande Exército. Porém, isto foi sobretudo um truque para salvar as aparências. Com efeito, as tropas francesas foram esmagadas pela coragem dos Russos, nos confrontos com guerrilheiros e pela estratégia do comando russo. Não obstante, é inegável que o ‘General Inverno’ desferiu golpe mortal contra o inimigo. A forte geada fez-se sentir na retirada da Rússia por parte do mal preparado Grande Exército. Apenas algumas dezenas de milhares dos 600 mil soldados franceses voltaram para casa, mercê do rigor hiemal.

Já um século antes, em 1708, durante a Grande Guerra do Norte, entre a Suécia e a Rússia, o ‘General Inverno’ fez das suas contra o exército de Carlos XII, que enfrentou o inverno na Ucrânia – o mais frio que a Europa registara em 500 anos. Para os guerreiros escandinavos, o frio intenso não era novidade, mas o desse ano era ímpar em relação aos que já tinham passado. Quase metade dos soldados e cavalos suecos morreram congelados, o que ajudou grandemente o tzar Pedro, o Grande, na batalha decisiva de Poltava, em que as tropas inimigas foram esmagadas.

Porém, o ‘General Inverno’ não esteve sempre do lado russo. Por exemplo, na Guerra de Inverno, as tropas soviéticas enfrentaram um dos invernos mais cruéis do século XX. Divisões inteiras isoladas e cercadas pelos Finlandeses morreram congeladas no meio da neve profunda. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) venceu a guerra, mas pagou um alto preço, com mais de 126 mil mortos, contra 25 mil mortos entre os finlandeses.

Também na Batalha de Moscovo, dificilmente o inverno russo pôde ser considerado aliado da URSS. Os generais da Wehrmacht alegaram que o frio intenso de -30ºC e até -50ºC interrompera a sua ofensiva. Todavia, os dados meteorológicos mostram que o novembro de 1941 foi moderado e propício ao avanço. O frio, congelando o solo, ajudou as divisões blindadas alemãs a manobrar.

Como lembrou o marechal Konstantin Rokossovski, nas suas memórias, o frio congelou os pântanos, ficando os tanques e as unidades motorizadas alemãs mais livres para se locomoverem e começaram a usar tanques “fora das estradas”. E, quando as tropas soviéticas partiram para a contraofensiva, em dezembro e janeiro, um clima extremamente frio provocou muitos estragos. Os soldados soviéticos que avançavam acabaram por congelar nos campos e afundar-se na neve profunda, enquanto os alemães se firmavam nas suas posições nos assentamentos tomados nos entornos de Moscovo.

No entanto, em geral, o inverno russo ajudou os Soviéticos na defesa da pátria. As tropas alemãs não tinham uniformes de inverno suficientemente quentes e o seu equipamento militar ficava preso no frio cortante. O ‘General Inverno’ destruiu literalmente o 6.º Exército na Batalha de Estalinegrado, o que representou a reviravolta no conflito. E, após a capitulação das tropas alemãs, em 31 de janeiro e em 2 de fevereiro, 91 mil sobreviventes tornaram-se prisioneiros de guerra.

E deve assinalar-se que o ‘General Inverno’ contou com uma poderosa aliada, a General Lama. Para o inimigo que avançava, o outono russo não era melhor do que o inverno russo. As tropas eram obrigadas a marchar com lama até aos joelhos ​​por via das chuvas persistentes. Considerando as condições precárias das estradas, os avanços pelo interior eram verdadeiros pesadelos.

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Agora, o ‘General Inverno’ tem contornos diferentes, de efeitos quase planetários.


2022.11.01 – Louro de Carvalho

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